Nagala escrita por Andre Scutieri


Capítulo 1
Capítulo Único




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No ano da graça de Nosso Senhor, 1582, segundo o novo calendário instituido por Sua Santidade, e tendo completado os dias do ajuste[1], eu, Marco, atraquei no Reino de Bisnegar, também chamado de Império Vijayanagara, para iniciar meu exílio. De minha terra à Veneza, até o Egito, seguindo o estreito por terra até a Arábia, donde encontramos um capitão disposto a nos levar pelos estreitos do Mar Vermelho, até as costas amargas Somália e então à quase infinita permanência no navio até chegarmos a esta malfadada terra, somei quase dois anos e meio de viagem, carregado por ventos fortuitos e pelas mãos fortes de meus irmãos cristãos, dos quais sei que me despeço por uma vida.

Não há homens da fé nesta terra esquecida por Deus, entregue aos pagãos e aos seus ídolos de ouro e pedra. A visagem companheira das torres de nossas igrejas, e a forma conhecida das cruzes de Nosso Senhor é agora uma lembrança de minha vida anterior, substituida cruelmente por estas edificações coloridas dedicadas aos filhos de Satanás. Pelas ruas da cidade portuária de nome indizível encontro esses mendigos descalços trajados de amarelo brilhante, as mangas arregaçadas até os cotovelos, carregando espadas cimitarrescas e grandes escudos redondos d’alguma treliça e bronze, tão grandes quanto seu torso, pobres diabos que se fazem de guardas e exército entre estes selvagens. Nos mercados, vejo aí velhos barbudos trajando estas estranhas braças de pano enroladas sobre a cabeça, e túnicas como as que romanas, de brilhante laranja, profundo vermelho ou mesmo azul, preto, verde ou roxo. Suas mulheres de olhos escuros e perigosos se trajam dos mesmos panos, os pequenos pés descalços sobre o calçamento de pedra, adornadas de ouro (ou bronze, quando pobres) nos braços, tornozelos e pescoços, com longos brincos agarrados às orelhas, todas exalando doces perfumes, de certo almíscar traiçoeiro, tal como a canela e o cravo que carregam em grandes cestos sobre as cabeças, e cujas cores negras e amadeiradas lhes adorna a pele quente do sol indomável.

Vimos também nos mercados estes infiéis islamistas, que rosnaram ao divisarem nossos trajes e nossas cruzes. Esperei até mesmo por espadas sendo puxadas, mas a multidão colorida ao nosso redor nos engolfou neste momento, e quando conseguimos nos desvencilhar, já os havíamos perdido de vista. Trotamos com o máximo de dignidade possível ente a turba, até alcançarmos a casa de nosso patrocinador, um inglês também exilado de nome George, que vivia numa mansão de madeira e pedra com as varandas viradas para o mercado. Destacava-se como um paraíso europeu entre as residências altas de pedra dos nativos, com rochas adornadas de vacas e cobras esculpidas espalhadas diante de suas portas.

Éramos oito, sendo Gusmão o mais velho entre nós, com quase quarenta anos. Fomos recebidos por uma nativa, travestida de serviçal, que nos anunciou num inglês alquebrado pelos estranhos tons de sua língua original. Tobias, o mais jovem, derramou-se em olhos de raposa sobre a menina, tentando engajá-la em alguma conversa banal enquanto esperávamos nosso patrocinador, mas ela apenas o encarou com olhos vacantes, seu corpo em desenvolvimento subitamente rígido, e o ignorou.

Nosso patrocinador emergiu d’alguma sala superior, e nos cumprimentou alegremente. Com um safanão, despachou a nativa, um sorriso zombeteiro nos lábios ao encarar nosso jovem poeta malfadado, e nos guiou até uma antessala de painéis de madeira.

Devo confessar agora que nossa situação não era das melhores no momento. Depois de tantas viagens, de meses no amaldiçoado navio e de várias pequenas aventuras nada dignas, tínhamos só a roupa do corpo, e a carta de recomendação de Sua Majestade. Trazia também Gusmão, como nosso porta-voz, uma bolsa de couro oleado com duzentas peças de ouro, já que desconhecíamos a moeda selvagem que usavam aqui. Agora, diante de nosso possível patrocinador, comecei a sentir o suor escorrer pelas costas de minha casaca de lã, tão amarelada depois de nossa longuíssima viagem. Diferente do homem a nossa frente, não tínhamos perucas cobertas de talco, nem bengala, nem sapatos lustrosos de couro. Usei o calcanhar da bota para coçar a canela da outra perna, tentando ficar atrás dos outros, sentindo a pobreza atroz de nosso grupo.

“Bobagem” Dizia o inglês, me puxando de volta para o presente, me fazendo perceber que havia perdido o início de nossa conversa. “Não há pouso ou taberna digna de tão ilustres visitantes daqui até a Arábia, guarde seu dinheiro e, por favor, aceitem minha humilde residência como hospedagem”.

O inglês passou os dedos por um comprido bigode, abrindo um sorriso caloroso. Senti um certo alívio baixar sobre meus ossos abusados e cansados, a ideia de dormir numa cama de verdade repentinamente encantadora. Depois de trocarmos algumas trivialidades e nos apresentarmos propriamente, ele nos conduziu até luxuosos quartos adornados de ouro e prata e nos deixou ao serviço de uma meia dúzia de suas pequenas serviçais cor de canela.

Adentrei meu quarto, a vidraça límpida me conferindo uma visão espetacular do mercado lá fora, a grande sacada carregada de exóticas flores encarnadas, vibrantes como todas as coisas neste terra. Lavei as mãos numa bacia de marfim, enquanto a empregada de olhos baixos derramava água gelada de uma jarra de cristal. Com o líquido acumulado da bacia, lavei o rosto e o pescoço, tirando a poeira grudenta da longa viagem. Depois de pentear os cabelos e aparar o bigode com uma minúscula tesoura de prata oferecida por minha serviçal, estava me sentindo civilizado novamente.

À noite, fomos servidos num terraço, sob estrelas cintilantes. O calor da tarde não se abrandara nem com o pôr do sol, mas continuava sobre nós como um apertado cobertor de pelos. Confesso que, depois do delicado guisado e de umas três ou cinco taças de vinho francês obtido pelo nosso amigo inglês, até experimentei algumas das iguarias selvagens típicas, trazidas por suas incontáveis jovens serviçais. Tão ricas de especiarias eram estes estranhos pratos que juro por nosso Senhor que senti como se minha língua fosse devorada por místicos fogos infernais, a garganta se fechando e os olhos transbordando de lágrimas, tal o mais leve toque destes quitutes em minha boca.

Quando o cricrilar dos bichos da rua já silenciava, e a lua nos vigiava do topo dos céus, nosso amigo inglês bateu palmas três vezes, e uma nativa de olhos de ágata se postou diante de nós, os pés nus, cujos tornozelos eram cerrados em grossas pulseiras de ouro maciço, sobre a mesa onde tivéramos nosso repasto. Estava trajada de diáfanos tecidos, os seios nus, inúmeras pulseiras nos braços, e uma gargantilha qual uma coleira de um cão, embora da mais fina e intricada prata, um véu sobre o rosto. Trazia um pequeno tamborim, enquanto outra serviçal mais infantil carregava tal como um flautim.

Ela dançou por anos, ou assim me pareceu. Girou sob as estrelas, a luz das tochas do pátio fazendo seu metal brilhar e faiscar, seus olhos pesados de exóticos pecados nos devorando como as tempestades do oceano. O suor que brotava de sua pele almiscarada e era lançado ao ar pelo balançar de seus cabelos tinha cheiro e gosto de canela, de pimenta, de cravo e dos segredos selvagens de seu povo.

Quando a música, uma sinfonia de misteriosos tons adocicados, finalmente terminou, ela estava, d’alguma maneira que não consegui divisar, já no colo de Gusmão, seus lábios de cereja desaparecendo entre sua pesada barba de marinheiro. Nosso amigo inglês riu, bateu palmas, e levantou-se depois de piscar jovialmente para nós, enquanto Gusmão deixava sua cadeira e carregava a mulher consigo, as pernas longas e morenas da dançarina se trançando ao redor de sua cintura, os pequenos pés repousando na cavidade no fim de sua coluna como se ali pertencessem. Sorri, abestalhado pelo vinho, e soltei vivas com os outros, feito um moleque em sua primeira visita ao bordel.

Foi a última vez que vi Gusmão.

No meio da madrugada, fui arrancado de minha cama por dois brutamontes selvagens, e atirado à rua. Dois de meus companheiros me aguardavam, caídos contra as pedras. Três dos guardas daquela terra, desta vez sem seus bizarros escudos gigantes, me esperavam. Desceram sobre mim com paus, e só pararam quando eu já me encontrava quase morto.

A cara inchada, fechando um dos olhos, os dedos da mão esquerda quebrados e com terríveis dificuldades de respirar, vi o inglês nos observando da varanda. Tinha nas mãos uma bolsa de couro oleado, e um estranho sorriso nos lábios, o rosto cheio de sombras diante da luz das tochas. Ele nos deu um aceno sarcástico, balançando a bolsa com todo nosso dinheiro, antes de se afastar e retornar a sua casa. Nus da cintura pra cima, os pés descalços contra a pedra dura, trotamos feito cães chutados para longe de nosso ardiloso hóspede. Não perguntamos em voz alta o que acontecera com nossos outros companheiros, mas sabendo da ferocidade nata de Gusmão e dos outros marinheiros, sabíamos que não iriam para a rua sem botar algum tipo de luta. Pela dor que sentia da surra que levei de um galho de madeira, e por lembrar das espadas que os nativos levavam, podia arriscar uma adivinha sobre o destino de meus antigos companheiros.

Abatidos e alquebrados, agradecidos pelo calor infindável desta terra que nos permitiu vagar pela noite sem morrermos congelados por culpa de nossos parcos trajes, vimos o sol lamber o horizonte do Império. Todas nossas posses estavam nas mãos agora do traiçoeiro inglês e duvidávamos que as reaveríamos. Devagar, tal como cães lambendo nossas próprias feridas, nos debruçamos uns sobre os outros, enquanto o mercado ganhava vida a nossa volta, e nos botamos a tramar.

“Sem dinheiro, teremos que trabalhar como escravos nesse lugar esquecido por Deus” Sussurrou o marinheiro de cabelos dourados, que carregava desde a infância a alcunha de Sarrafo. “Eu não vim para esse lugar infernal para cair morto numa vala, de tanto trabalhar para esses selvagens”.

“Não vamos trabalhar para ninguém” Respondeu Simão, o menor e mais ardiloso de meus companheiros, ainda que não o mais jovem. “Estamos exilados nesse rincão, mas não seremos tratados algo menos que reis”.

“Sua Alteza então pode bolar uma saída, pois não vejo nenhuma.” Respondi, talvez mais ríspido do que desejava.

Foi Sarrafo quem respondeu, ao invés, apontando um dedo do tamanho de uma linguiça para uma alta construção colorida, ao fim da rua do mercado.

“Ouvi os outros marinheiros dizendo que os templos dessa gente são feitos de ouro por dentro”.

Simão assentiu com a cabeça morena, subitamente animado.

“Também ouvi, também ouvi. Ídolos pagãos feitos de puro ouro e prata, pesados como vacas. Máscaras douradas, tapeçarias tecidas com fios preciosos, tudo esperando para ser roubado”.

“Não vamos roubar ninguém” Respondi. “Vamos cumprir os ensinamentos de Nosso Senhor e destruir esses símbolos satânicos. Derreteremos tudo e transformaremos em moedas com a cruz e a éfige de Sua Alteza Real”.

Rimos juntos, até mesmo a dor de nossos ferimentos cedendo um pouco. Mas a rua do mercado já estava cheia demais, corpos imundos destes adoradores do bode roçando em nossas costas. Nos dirigimos até a saída da cidade, fugindo do sol inclemente sobre nossa pele nua. Nos deitamos na sombra do portal, Sarrafo com um galho nas mãos. Usando uma pedra afiada, desbastou toda a madeira, até ficar mais ou menos reta e lisa. Fez o mesmo com mais outros dois pedaços, cada um com pouco mais de um metro de comprimento, grossos como um braço de mulher.

Ao meio dia, fizemos fogo num canto afastado, beirando a estrada. Tostamos a madeira, tirando dela toda a seiva, até ficar dura e rígida como pedra. Ao anoitecer, nos postamos na entrada, carregando os paus em nossos ombros. Espreitamos por talvez duas horas, até que finalmente uma nativa de vestes laranjas passou, trazendo duas crianças e um grande jarro d’água sobre a cabeça de negros cabelos.

Não digo aqui o que fizemos. Tais coisas vis não merecem a tinta gasta para botá-las no papel. Somente o fato de saber que estes pagãos não são gente de verdade, tementes a Nosso Senhor, que me deixaram dormir naquela noite. Ainda que a mãe fora divertida, Sarrafo tinha estranhos gostos de marinheiro, e deitamos à terra duas coisas que não podiam ser chamadas de corpos. Ficamos com o menino mais velho, talvez de uns doze anos, e não o ferimos muito. Usamos as vestes da mãe para fazemos cordas rústicas, que usamos para atar seus pulsos às costas, e unimos seus pés com um pedaço curto, o suficiente para que andasse, todavia não para que corresse.

Sarrafo o esbofeteou algumas vezes até que ele superasse o medo o suficiente para poder ser interrogado. Falava algum árabe, que Simão entendia, de seus tempos de mercador. Levou tempo para nos fazermos entender, mas o trabalho não foi em vão.

Perguntamos sobre o maior templo da região, e a resposta impronunciável não sei escrever aqui. Mais tarde, quando já seguíamos viagem, Simão conseguiu soletrar aproximadamente a língua porca daquela gente: Templo Peruvudaiyar. Era o mais alto de toda a terra, e figura de muitas lendas do povo. Pouco de seu conhecimento o menino conseguia traduzir em seu fragmentado árabe, mas era isolado pois era sagrado, dedicado apenas às coroações dos imperadores da dinastia Tamil. Ficava também às margens de um rio, o que Simão acreditava ser uma maneira simples de deslocar o tesouro até a segurança. Mais importante de tudo, o menino sabia o caminho para lá.

Atacamos mais dois grupos na estrada, no dia seguinte. Sempre mulheres, crianças e idosos, e nunca grupos maiores de três pessoas. Andamos assim por quatro dias, seguindo uma estrada mercante, comendo frutos, bagas e raízes que o menino indicava. Claro que antes testávamos tudo em nosso pequeno guia, e só comíamos depois de uma hora após alimentá-lo. Confesso que tive de comer coisas indizíveis em tal viagem, embora algumas das frutas se parecessem com as de casa.

Na quinta noite de viagem, o garoto tentou fugir, rompendo de alguma forma as cordas de seus pés. Correu pouco mais de meia légua antes de Sarrafo alcançá-lo. Deu-lhe uns dez ou doze bofetões no rosto, até atordoá-lo. Dois dias depois tentou novamente a fuga. Desta vez ao pegá-lo pus seu corpo magro junto ao meu, sentei-o em meu colo, suas costas contra meu peito. Tomei uma mãozinha morena, e apertei-a entre meus dedos, enquanto segurava a outra mão contra sua boca. Só o soltei quando senti seus ossos se esmigalharem entre meus dedos. Depois dessa, não tentou fugir mais.

Ao completarmos nossa primeira noite da segunda semana de viagem, alcançamos o acampamento de dois mercadores árabes. Simão foi ter com eles, e convenceu-os que era também um mercador, recém-assaltado por ladrões. Pediu comida e água, e os infiéis tiveram de atender seu pedido, seguindo as ordens de sua religião imunda. Avançamos por trás deles enquanto se distraiam comendo, e acertamos suas cabeças com os paus que ainda carregávamos. Depois de matá-los, descobrimos nossa sorte grande: tinham uma carroça com dois cavalos magros.

Em seus tesouros encontrei um diário de capa de couro, onde escrevo este relato. Também obtivemos algum dinheiro, mas preferimos comer das rações dos árabes e depois novamente da estrada, do que arriscarmos nos aproximarmos de algum acampamento para comprar comida.

Nossa viagem foi curta perto do longo êxodo desde nossa terra até este lugar, mas ficamos satisfeitos ao chegarmos próximo ao templo. Conversamos baixo enquanto o menino dormia perto do fogo, conferindo se sabíamos o caminho de volta. Como ficamos quase todo o tempo na mesma estrada, ainda que sempre às margens, concluímos que não precisávamos mais dele. Matamos nosso pequeno guia em seu sono, demonstrando a compaixão que gratuitamente oferecemos a esse povo imundo que não a merece.

Ficamos próximos ao rio, e nossa noite foi longa e úmida. O calor ainda não abrandara, vis insetos nos rondavam, o leito arenoso, acostumado às longas secas, traiçoeiro sob nossos pés. Comemos pão árabe já duro e mofado, sonhando com carne salgada e cerveja. Ao amanhecer, vimos o templo pela primeira vez.

Era um gigante de pedra, formado por duas partes, claramente dispostas para nós, que o víamos pelo lado, já que estávamos ao rio. No que supomos ser a frente, era uma vasta construção cinzenta, quadrangular, com muitas colunas e entradas. Tinha um portal alto, com escadas tão grandes como as de qualquer basílica de minha terra. Alguns pequenos prédios de tetos bulbosos se destacavam em sua fachada, aqui e ali, talvez para guarda ou serviam como pequenas capelas para a religião deles. Não podíamos ver com exatidão, mas esta construção parecia muito simétrica, com os detalhes e colunas espalhados em igual distância. Mas o absurdo ficava atrás desta construção.

De primeiro acreditamos ser algum tipo de rocha ou estranha formação. Tinha talvez três ou quatro vezes a altura do prédio dianteiro, íngreme e piramidal, feito a cabeça de uma flecha. Percebemos que ali deveria ser o prédio principal, uma base perfeitamente quadrada que sustentava andares disformes, cada um pouco menor que o de baixo, até construir uma pirâmide terminada num bulbo janelado, talvez o ponto principal do templo. Ao topo do bulbo, um curto torreão, encimado por fogo, feito um farol.

Percebemos de imediato que o menino havia, de certa forma, nos enganado. O templo realmente era isolado, estabelecido em certo descampado, com apenas aqui e ali uma árvore decorativa, todas plantadas seguindo a forma de simetria do templo. Nada havia ao redor. No entanto, o próprio templo era vasto tal uma cidade, e fervilhava de movimento.

Pelos sons que o vento trazia para a margem do rio, havia um mercado dentro do templo. E, pelo cheiro, também criavam ou ao menos vendiam animais. Havia guardas nas entradas, muito mais bem armados que os pobres diabos descalços da cidade do porto. Carroças de mercadores amarradas à margem do rio, com tantas fogueiras de acampamento quanto estrelas no céu noturno.

Desanimados, dormimos durante boa parte do dia, sob nossa carroça. Ao anoitecer, vigiamos o templo em turno, esperando a hora abençoada que tudo adormeceria. Quando o sol raiou novamente, aprendemos que Peruvudaiyar era como a roda d’água que mói o trigo: eternamente em movimento.

Com cuidado, rondamos o templo, evitando a fachada. Foram seis horas para rondar todo o lado posterior, onde nos aproximamos o máximo até então da estrutura piramidal. Percebi então que cada andar do monumento parecia disforme ao longe pois era inteiramente esculpido, figuras demoníacas, chifrudas, com duas ou três cabeças, algumas cuspindo fogo ou raios, outras com faces animalescas de feras desconhecidas por nós, tudo rastejava sobre as paredes do monólito. Estremeci ao ver tal criação em homenagem ao demônio, e decidimos entre nós que era impossível que mãos humanas tivessem criado tal monstruosidade. Esta criação infernal era obra do próprio Satã, arrancada das brasas eternas do inferno e escarrada sobre esta terra amaldiçoada.

Caminhamos até a lateral, e refizemos nossos passos enquanto a noite caia. Finalmente divisamos, enquanto a luz morria, uma porta de madeira na face posterior do templo, única por seu material e por seu tamanho normal, enquanto todas as portas e entradas que víamos eram da pedra cinzenta da construção, altas e largas como se fossem passagens de gigantes e monstros.

“Podemos arrombar a porta e nos esgueirarmos para dentro” Sussurrou Simão, aquecendo as mãos na fogueira, naquela noite. “Num templo deste tamanho, é possível que tal entrada não seja vigiada: não pode haver homens nesse mundo o bastante para vigiar todas as portas desse lugar infernal”.

“E que isso nos adiantaria?” Retruquei. “Traríamos o butim de que maneira? Quanto podemos avançar até encontrarmos algum serviçal, ou sacerdote, ou guardião? Melhor seria desistir”.

Ainda que as palavras saíssem de minha própria boca, sabia que não havia retorno para nós. Seriamos piores que escravos, simples salteadores de beira de estrada. Já nos vestíamos em trapos árabes, misturados com panos locais, que usávamos como faixas na cabeça, ou para enrolarmos nossas mãos e pés. A pele descoberta estava vermelha de sol, inchada da picada dos insetos. Fedíamos, os pés cobertos de bolhas e pústulas, as unhas quebradas e os cabelos cheios de óleo e lama. Melhor a morte nesta terra estranha do que viver como selvagens entre selvagens.

Sarrafo, quase sempre silencioso e estupidamente complacente nos perguntou:

“Quanto valeria um vaso de ouro?”

“Um vaso?”

“Um vaso. Como os que vimos na casa do patrocinador. Do chão até a cintura de um homem, largo como uma dona de taverna. De ouro.”

“Valeria mais derretido” Murmurou Simão, lambendo os beiços flácidos. “Atrairia menos atenção. Fosse maciço, o suficiente para uma vida, ou com ao menos um centímetro de espessura, faríamos moedas ou barrilhas suficiente para um ano, talvez um ano e meio de conforto. Mas como meu pai me dizia, ‘ouro clama por ouro’: poderíamos usar parte do material para investir, talvez comprar sociedade num navio.”

“Posso carregar um vaso” Murmurou Sarrafo de volta. “Em dois, dá pra correr.”

Não era possível esperar mais uma noite. Nossa comida havia acabado, e tínhamos medo de lançar mão às raízes e frutos das plantas à margem do rio. Sem nosso pequeno guia para servir como teste, não tínhamos certeza do que era seguro para comer. Decidimos por invadir na mesma noite, e Sarrafo foi a catar alguma coisa para ajudar a arrombar a porta. Voltou com um toco grosso de raiz, mais um punhado de pedras que afiou umas contra as outras. Moldou o toco em quatro pedaços, de tamanhos variados, que transformou em cunhas. Também trouxe uma grande pedra pesada, enrolada num trapo para ser mais fácil de carregar. Segurou uma ponta enquanto eu segurava a outra, e Simão foi nosso guia pela noite que escurecia cada vez mais.

Chegando à porta, vimos que até mesmo as paredes do templo eram carregadas de estranhos demônios. Junto ao batente direito, um homem com cabeça de fera nos observava, uma cabeçorra inchada com imensas orelhas planas, um braço ou membro no lugar do nariz, chegando até sua cintura. Do outro lado, uma mulher com os seios de fora, com seis ou oito braços, os traços difíceis de compreender, cada mão fazendo um gesto.

Examinamos a tranca, mas os selvagens não devem trabalhar ferro: era uma simples porta de duas folhas com uma barra pelo lado de dentro. Nem estava perfeitamente encaixada no batente, havia um pequeno vão por onde podíamos ver a barra. Pela falta de elaborados enfeites na madeira, sua localização ignóbil e seu tamanho banal conjecturei ser uma porta de serviço. Sarrafo examinou atentamente seu desafio, antes de se acocorar na sombra, usando a pedra para esculpir a ponta da cunha mais comprida. Afinou a ponta ao máximo, antes de meter a vareta pelo vão, por baixo da barra. Devagar, inclinou a vara para baixo, forçando madeira contra madeira.

Com um baque surdo, a barra soltou de seu suporte e caiu ao chão, dentro do templo. A porta, que não devia estar bem equilibrada no eixo, abriu um pouco para dentro. Empurramos uma das folhas e trotamos silenciosamente para dentro do templo.

Na escuridão quase total, só divisamos os contornos das colunas. Um silêncio de túmulo nos cercava, enquanto tateávamos pelo vazio. Demônios disformes nos vigiavam das paredes, olhos frios de pedra a nos observar.

Senti os contornos de um vaso. Estava preso a parede, uma monstruosidade quase de minha altura, duas vezes mais largo que Sarrafo, o maior de nós. O toque frio do metal sob minhas mãos fez meu coração pular. Virei-me para chamar quietamente pelos outros.

Eu estava só.

Algo se moveu atrás de mim, virei-me como se o próprio diabo estivesse sentado sobre minha sombra. Um movimento rápido como um relâmpago em noites de tempestade, algo atingiu meu rosto com a força do punho de um gigante. Senti por um único instante o gosto metálico de sangue na boca. Nem percebi quando minhas pernas cederam e bati contra a pedra do chão.

Então foi só escuridão.

***

Recuperei os sentidos numa cela. Estava sentado contra a parede de pedra, os pulsos atados diante do corpo. A face esquerda parecia inchada e pulsava de dor, o olho novamente quase fechando. Percebi que estava molhado, os cabelos grudando contra o pescoço. Ainda assim, minha garganta cortava de tanta sede e meu estômago ardia de fome. Tentei morder o ombro de minha camisa encharcada, buscando sorver qualquer umidade que ainda houvesse, ainda que não soubesse se era segura ou não.

O movimento deve ter surpreendido o guarda que estava nas sombras, além das barras de minha cela. Não o vi, mas sua sombra pareceu ganhar vida contra a fraca luz de uma tocha na parede, e ouvi uma porta se abrir e fechar com ruído.

Até meus dentes doíam, e fechar o boca ao redor do pano imundo da camisa foi um esforço sobre-humano. Bebi algumas gotas de água suja, que nem de longe foram suficiente para aliviar minha sede. Cuspi no chão e vi sangue na saliva.

A porta voltou a se abrir, e um contingente entrou. Dois homenzarrões feito imensos macacos se aproximaram da cela, carregando lanças compridas. Percebi que minha prisão era minúscula: talvez houvesse um passo entre mim e as barras, e mais dois de cada lado. Atrás de mim e à direita as paredes eram cinza-escuro, e pensei que deveria ainda estar no templo, já que o lado externo era do mesmo material. À frente e à esquerda haviam barras de metal faiscante. Quando um rapaz alto de cabeça raspada se aproximou carregando uma tocha, percebi que as barras da cela eram de ouro.

Quatro mulheres vieram, tão perfumadas que quase engasguei. Tinham o mesmo cheiro almiscarado da dançarina na casa do inglês, e carregavam longas braças de pano branco. O contingente abriu espaço, metade para cada lado. Os lanceiros baixaram suas armas, e meteram as lanças por entre o ouro de minha gaiola, as pontas de ferro batido paradas a centímetros de minha garganta. Prendi a respiração.

Ela veio em seguida.

Era a primeira vez que via alguém com tais vestes. Linho branco e fio de ouro, parecia vestir uma longa tira de pano. A saia até os pés, dobrada várias vezes na frente, fazendo um drapeado intrincado subia por sua barriga nua, numa faixa cuidadosamente ondulada em camadas, do quadril direito até se jogar por cima do ombro esquerdo, caindo às suas costas. Usava uma blusinha solta do mesmo linho branco, que lhe cobria apenas os pequenos seios e os ombros, cada movimento seu me deixando entrever seu pequeno e perfeito umbigo. Nos braços, dezenas, talvez centenas, de finíssimas pulseiras de ouro, argolas perfeitas da grossura de um fio de cabelo. Quando andava, elas tiniam umas contra as outras, feito pequeninos sinos a repicar. Seus cabelos eram tão negros que pareciam sorver a luz ao seu redor, presos numa longa trança atada com corrente de prata, chegando até seus joelhos. Se movia para lá e para cá, como o rabo de um felino selvagem, parecendo agir livremente, ao invés de estar relacionada ao movimento de sua cabeça. Das pequenas orelhas, pendiam brincos compridos, que imitavam serpentes. A ponta da cauda presa ao lóbulo, o ouro descendo até roçar nos ombros, antes de se dobrar para a frente, formando a cabeça pronta para o bote. Diferente das serpentes de minha terra, essas tinham como que um capuz, feito as cobras que vi no Egito em minha longa viagem.

Seu rosto era de um anjo selvagem. Tinha grandes olhos negros como a ágata, cílios longuíssimos e muito pretos, a boca pequena e pintada de escarlate, um nariz longo e fino, perfurado à esquerda por um anel de ouro. As maçãs das bochechas levemente salientes, o rosto oval e a pele cor de canela. Entre as duas sobrancelhas longas e finas, um ponto escarlate lhe agraciava a testa.

Era pouco mais que uma menina.

Quando entrou, todas as cabeças se curvaram, exceto a minha que ainda era ameaçada pelas lanças. No entanto, seus olhos negros estavam grudados em mim. Ela andou, silenciosa como uma cobra, até suas vestes roçarem no ouro das barras da cela. Sentado como estava, ela me olhava de cima, mas não por muito. Vi que os guardas se incomodaram com sua proximidade de mim, já que apertaram mais a lança contra meu pescoço, até tirarem sangue. Ela ergueu uma mãozinha adornada por pesados anéis, e eles afastaram as pontas de minha carne, imediatamente, ainda que parecessem não quererem fazê-lo.

Ela abriu a boca e sua voz cristalina fluiu por mim, sem que eu compreendesse uma única palavra. Tentei falar algo em resposta, mas minha língua seca parecia grudada no céu da boca. A menina soltou um risinho zombeteiro, antes de acenar para uma de suas acompanhantes. A mulher desenrolou o pano que carregava, revelando algo que parecia ser uma grande concha de pegar molho. O cabo devia ter quase cinco pés de comprimento. Ouvi o barulho de água, e ela se aproximou pela minha esquerda, antes de meter o objeto pelas barras, e trazer a concha até minha boca.

Ela virou a concha contra meu rosto, e pela posição ruim e sua falta de paciência, consegui tomar apenas dois goles, derramando a maior parte sobre meu peito. A selvagem princesa, pois assim ela parecia e assim eles lhe deferenciavam, esperou sem se mover. Quando a concha secou, a mulher a afastou de minha boca. A menina então repetiu sua fala. Mais uma vez não entendi.

“Não entendo” Disse, lambendo os beiços ressecados. “Não falo sua língua”.

Estranhamente, isso pareceu diverti-la mais. Soltou um risinho tilintante, antes de se aproximar mais ainda, colando seu pequenino corpo contra a cela. Os guardas tentaram se aproximar, mas um único olhar de relance dela os afastou novamente. Estendeu seu braço, fazendo as pulseiras repicarem loucamente, até que sua pequena mão tocou meu nariz. Fiquei completamente imóvel, temendo por minha vida caso fizesse algum movimento súbito. Ela alisou minha face com pequenos dedos quentes como brasas. Senti um estranho rubor subir por meu rosto, embora tal toque nada tinha de sensual. A pequena princesa parecia apenas curiosa com minhas formas estrangeiras, tocando minhas grossas sobrancelhas, meu bigode amarrotado, puxando de leve meu cabelo acastanhado. Raspou suas longas unhas pintadas de vermelho vivo na minha barba, logo abaixo do pomo-de-adão, onde os pelos eram curtos e grossos, e riu-se com a ríspida textura. Afastou-se, e cheirou sua mão.

Contorceu a face, e fez algum mínimo movimento para as mulheres. Elas revelaram entre seus fardos uma grande bacia de ouro, que encheram de água para que a menina lavasse as mãos. Com uma jarra de prata, derramaram líquido sobre seus dedos, pulsos e parte dos braços, esfregando vigorosamente até que ela se livrasse de meu fedor. Trouxeram uma toalha grossa, quase maior que ela inteira, e secaram cuidadosamente cada um de seus pequenos dedos anelados. Toda a água que derramaram sobre ela era perfumada, e o cheiro doce de flores e especiarias entrou por minhas narinas arranhadas.

“Onde estão meus companheiros?” Perguntei, mesmo sabendo ser inútil. Ela se retesou, quieta, as mulheres congelando em meio aos seus movimentos. Tentei repetir a pergunta em inglês, e então em árabe, embora não soubesse muito mais do que a palavra “amigos”. Ela me observou longamente, talvez por quase um minuto, calada e inexpressiva. Fez um gesto para uma de suas acompanhantes.

Jogaram sobre mim um balde d’água perfumada, e descobri porque já estava molhado. Antes que me recuperasse, me lançaram outra dose. Com os olhos queimando por culpa do perfume, vi a princesa me dar as costas e sair, o contingente a acompanhando. O rapaz apagou a tocha, e bateram a porta me deixando novamente na escuridão.

Perdi a conta dos minutos e das horas. Mas quando meu estômago parecia que ia se rasgar de tanta fome, um serviçal me trouxe uma bandeja. Havia uma espécie de pão, um pote de algo cremoso e uma pequena tigela de água. Sem cerimônia, se aproximou de minha cela, e jogou a comida por entre as barras, espalhando tudo ao chão. Foi-se embora sem uma palavra.

Me debrucei sobre a comida, as pernas gritando de dor pelo movimento depois de tanto tempo imóveis, e tentei apanhar alguma coisa. Meus pulsos amarrados não me deixavam usar as mãos direito, e o espaço apertado demais dificultava o movimento. Resignado, arrastei o rosto contra o chão, feito um cão, e comi o que escorrera sobre a pedra. Lambi o creme e mordisquei o pão preto, dando graças ao meu Senhor pela tigela d’água só ter derramado metade de seu conteúdo. Ainda assim, raspei a língua contra a pedra suja, tentando sorver mais água da poça. Envergonhado de minha selvageria e esgotado, me recostei contra as barras de ouro e dormi um sono inquieto.

Acordei novamente com o som de badalos. Percebi que alguém batia nas barras, logo acima de minha cabeça, fazendo toda a cela ressoar. Retorci no lugar, até conseguir enxergar meu visitante. Para minha surpresa, era a menina princesa. Tinha uma tigela de comida nas mãos, e por olhar tantas vezes para a porta, percebi que não deveria estar ali. Algo dentro de mim dizia que já era tarde da noite, o que significava que ao menos um dia se passara desde minha captura.

Ela deslizou uma faca de cabo de marfim por entre as barras da cela, e cortou a corda que aprisionava minhas mãos. Então, parecendo deliciada ao fazê-lo, sentou-se no chão imundo. E entregou-me a comida.

Enfiei os dedos na pasta de polpa de fruta, e comi sem receio. Senti falta de algo mais substancioso, como pão ou carne, mas me alegrei com o que recebi. Comi devagar, não querendo enfiar comida no estômago frágil só para perde-la. Também percebera que não tinha latrina em minha cela e não me apetecia ficar preso, sentado sobre minhas próprias fezes.

Quando terminei de comer, me segurei bravamente para não lamber a tigela, ao invés pus a louça ao chão e, na falta de poder usar palavras em agradecimento, inclinei a cabeça como vi seus servos fazendo. Me ocorreu que agradecia a bondade de minha própria captora, mas, se para receber mais comida, qualquer lógica e orgulho que se danassem.

Ela me fitou em silêncio. Percebi que nada sabia sobre meus carcereiros, além de que ela parecia pertencer a alguma casta superior aos outros daquele lugar. Não sabia se minha pergunta sobre meus amigos a tinha irritado mais cedo, mas decidi que era hora de começar a perguntar.

“Qual o seu nome?”

Ela apenas elevou uma única sobrancelha perfeita. Suspirei, não sabendo por que achara que justamente isso ela entenderia. Pensei rapidamente, e levantei as mãos bem devagar, para não assustá-la. Bati contra meu próprio peito, suavemente e disse, claramente:

“Marco”.

Ela pareceu entender, mas ainda estava quieta. Repeti o gesto.

“Marco”.

Então, devagar, estendi as mãos para ela, apontando-a, e esperei.

Um sorrizinho terrivelmente zombeteiro tomou seu rosto, enquanto ela ergueu suas próprias mãos, batendo no peito, repetindo o meu gesto. Seus olhos negros dançavam com alguma diversão que eu não conseguia entender.

“Nagala”.

Senti meu coração parar. Finalmente fizera-me compreender. Perdido, encarcerado, faminto e quebrado eu ainda estava, mas agora tinha seu nome, e isso fora suficiente para aquecer meu peito ainda molhado. Senti necessidade de experimentar seu nome em meus próprios lábios.

“Nagala?” Repeti. Ela riu abertamente, um riso curto, mas cheio de camadas como mel quente. Senti-me subitamente constrangido, como uma criança que fala besteira.

“Nagala” Ela disse, bem devagar, como se para que eu entendesse alguma nuance oculta de seu nome, alguma cadência de sua língua de selvagem. Qualquer fosse o mistério, permaneceu-me oculto.

“Na… gala?” Tentei reforçar a primeira sílaba, todavia isso apenas a divertiu ainda mais. Balançou a cabeça, fazendo suas serpentes girarem loucamente, parecendo deliciada com minha brutalidade estúpida. Talvez fosse assim que os selvagens se sentissem o tempo todo diante de mim: bestas incivilizadas, incapazes de aprender o mais simples dos maneirismos humanos. A cela não me fazia bem, enchia minha cabeça de estranhos pensamentos.

Olhei para a vadiazinha selvagem, toda pretume imundo e seu nojento umbigo a mostra, tentando bolar alguma pergunta útil que seu minúsculo entendimento poderia entender. Me irritava comunicar-me por gestos e grunhidos como um macaco. A próxima pergunta seria a mais importante.

Gesticulei devagar, para que seu cérebrozinho pudesse entender. Fiz um arco com o braço, abarcando toda a sala, não só minha cela. Então, imitando o melhor que pude o sotaque que Simão usara, disse:

“Peruvudaiyar?”

Ela me fitou, séria e dura como a rocha das paredes. Levantou-se, batendo o pó de suas vestes brancas. Fechou os olhos, os longos cílios debruçando leves sombras sobre seu rosto. Assentiu rapidamente uma única vez, antes de me dar as costas e sair. Em seu silêncio, percebi que ela andava descalça, pulseiras como as dos braços ao redor dos tornozelos.

Dormi pouco, depois disso. Ainda estava no templo, embora desconhecesse uma igreja de minha terra que tivesse calabouços e celas de ouro. Mas sabia que nada se pode esperar dessa gente pagã. O que desejavam de mim ainda era um mistério, será apenas me manter encarcerado até minha morte? E onde estavam Simão e Sarrafo, saqueadores como eu? Será que só eu seria visitado aquela noite por Nagala e seus silêncios? Bom, Simão sabia mais línguas que eu, talvez pudesse se comunicar com esse povo.

Comecei então a contar o tempo por minhas refeições. E, como recebia apenas um breve repasto quando já sentia a fome me roubar até a última das forças, presumi que cada vez que o servo jogava minha comida no chão da cela, cada vez mais sujo, representava um dia de cárcere.

Nagala não me visitara mais.

No quinto dia de minha prisão, quando já considerava por fim a minha própria vida, ainda que isso me condenasse ao eterno limbo da alma, guardas visitaram minha cela, junto de três mulheres mais velhas, vestidas como as serviçais da princesa. Usavam o mesmo traje que ela, a faixa da saia jogada sobre o ombro, suas barrigas morenas a vista. Não tinham joia alguma, mas sim brincos grandes, em forma de folha, feitos de madeira e treliça, além de trazerem os cabelos soltos. Um guarda abriu minha cela, fazendo toda a frente da jaula girar para o lado, mas não vi que tipo de tranca tinha. Pôs a lança contra meu pescoço, mais uma vez, e grunhiu algo que presumi ser uma ordem para me comportar. Se perceberam que tinha os pulsos livres, nada disseram.

As mulheres arrancaram minha camisa imunda e os trapos dos meus pés. Depositaram grandes bacias cheias da água perfumada perto de mim, e se botaram a me lavar. Derramavam o líquido sobre mim, da cabeça aos pés, e então esfregavam minha pele com trapos alvos ou pequenas pedras porosas que desconhecia. Quando eu estava vermelho como um recém nascido, sem mácula da cintura pra cima ou dos joelhos pra baixo, trouxeram um toco de árvore para que me sentasse, e uma tábua a guisa de mesa.

Trouxeram-me um repasto mais reforçado, que em minha situação parecera um banquete. A polpa das frutas e mel, pão preto ainda quente do forno, legumes estranhos e um pequenino bife de algo que presumi ser frango. Por algum motivo nada tinha tempero, algo que acredito ser estranho naquela terra, sem mesmo sal. Comi devagar, com medo de vomitar depois de tanta fome. Depois, ao fim, me trouxeram um bolo marrom escuro, envolto em linho. Comi, era doce como um sonho.

Calçaram meus pés em sandálias de treliça, e me puseram de pé, a lança ainda perto de meu rosto. Amarraram meus pulsos e tornozelos com tiras de pano, para que eu andasse devagar e com dificuldade. Ao fim, me levaram para fora da sala.

Caminhei por um longo corredor de pedra, guardas a minha frente e nos meus flancos, enquanto as mulheres silenciosas me seguiam na retaguarda. De ambos os lados, apenas portas e tochas presas na pedra. Havia um certo cheiro de óleo, que presumi ser dos panos usados para manter o fogo aceso nos bastões de madeira. Não falei, nem tentei fugir.

Subimos um lance de escada, e paramos diante de uma pesada porta de madeira escura. O guarda bateu o lado cego da lança na porta, produzindo um som oco, três vezes. Alguém do outro lado abriu uma das folhas e passamos para dentro do templo.

Na escuridão de nosso saque, foi impossível ver muito do templo. Agora eu podia, e perdi o fôlego. Por dentro, estátuas se espalhavam aos milhares, corredores tão largos que cinco carroças podiam passar lado a lado. O piso era lustroso de tão limpo, e vasos de ouro se espalhavam, alguns com flores, outros com tampas lacradas com cera. Provavelmente, carregavam perfumes.

Onde demônios pagãos não tomavam as paredes, a pedra era pintada com cenas infernais, de batalhas e imundos milagres. Criaturas monstruosas faziam colheitas crescerem e traziam chuvas, desaguavam rios e vomitavam chamas sobre criaturas ainda mais grotescas. Não paramos de caminhar, mas levantei os olhos até o teto ricamente pintado com tinta e ouro, quase tropecei em meus próprios pés atados.

Passamos por tantos corredores que não consigo recordar todo o caminho. Em algum ponto, riquezas começaram a se misturar, e todas as esquinas que dobramos pareciam levar ao mesmo lugar, as cenas absurdas da religião brutal daquela raça se repetindo aos meus olhos. Finalmente, começamos a subir escadas novamente.

Subimos por eras. Eu estava tão cansado, minhas pernas como chumbo, me arrastava por degraus pétreos sem saber qual seria meu destino. Senti lágrimas escorrerem de meu rosto, mas não sabia por quê. Tropecei finalmente, caindo de joelhos. Sem palavra, os guardas me tomaram pelas axilas e me levantaram, uma lança no fim da minha coluna me fazendo andar novamente.

Tentei rezar. Mas os demônios daquele lugar me roubavam as palavras, mesmo dentro de minha própria cabeça. Não conseguia chegar ao fim do Pai-Nosso, mas repetia as mesmas palavras, até que por fim só pude implorar mentalmente por minha vida. Chegamos a uma porta, imensa tal como o lar de um gigante. Dez guardas aguardavam diante dela, e ao nos avistarem se botaram a abri-la.

Veias se destacavam contra seus imensos músculos, nus da cintura para cima e levemente oleados, seguraram os grunhidos que tentavam escapar por seu esforço. A pedra gritou, raspando contra o chão, fazendo minha cabeça doer. Se não tivéssemos subido tanto, acharia que estavam abrindo a porta do inferno para me entregar pessoalmente ao Cramunhão.

Ao invés, o sol queimou meus olhos. Senti o vento em meu rosto e pensei que estava livre. Que iam me botar pra fora, talvez com um safanão, como um garoto safado tentando roubar uma maçã no mercado. Desatei a chorar novamente. Mas meus olhos se acostumaram com a claridade, e vi onde me encontrava.

Estávamos num pequeno pátio, no que parecia o topo de uma montanha. Colunas nas bordas sustentavam um teto sobre nós, mas não havia nenhum parapeito ou corrimão, apenas uma queda considerável por todos os lados, sem muros ou paredes a nos segurar. Ao olhar para cima, pela forma bulbosa do teto, percebi onde estávamos, finalmente. No topo da estrutura piramidal, provavelmente no que deveria ser o coração do templo.

Ao centro, havia três pequenos palaques de ouro, cada um do tamanho de uma mesa de jantar, completamente quadrados. No da direita, ajoelhado e amarrado, estava Sarrafo. No da esquerda, Simão. O do meio se encontrava livre, e meu coração caiu no chão ao entender que ali seria meu posto.

O cheiro de perfume era forte, ainda com todo aquele vento. Um grupo de mulheres observava num dos flancos do palanque da direita, um grupo de homens observava à esquerda. Meus amigos estavam de costas para mim. E, contra o sol que se punha, Nagala sentava-se num trono de marfim, seus olhos sobre os meus.

Me levaram até meu palanque, me botaram de joelhos. Nada disse aos meus amigos, eles não se viraram para mim. Estavam de olhos fechados, e Sarrafo murmurava silenciosamente. Desejei que sua oração valesse por minha alma também, pois ainda me encontrava num estupor vazio que me impedia de rezar.

Levantei os olhos para Nagala, e finalmente algo dentro de mim se abriu, entendimento inundando minha mente. Errara ao pensar que ela era uma princesa. Estávamos num templo, a resposta seria óbvia. Os homens começaram a cantar, as mulheres batucavam tamborins. Estávamos num ritual.

E Nagala era a sacerdotisa.

Reparei que suas vestes eram mais brancas que as da sua visita, se isso era possível. Quando ela levantou-se, quatro homens fortes vieram e levaram seu trono. Ela começou um cântico longo e triste, balançando suavemente no lugar. O vento pareceu cessar enquanto ela cantava, cada palavra um diálogo inteiro, cada som uma vida desabrochando. Senti em minha alma seu sofrimento, sua dor e seu desespero.

Senti a dor de plantações perdidas e longas secas, da eterna espera por chuvas e pelas cheias dos rios. Senti o sofrer da labuta numa terra seca e infértil, as doenças e os terrores da noite reinando. Senti-me uma mulher com filhos fracos e famintos, os peitos sem leite para mantê-los vivos, os cabelos secos e o sari já sem cor ou vida. Senti seus maridos mortos em guerras ou nas mãos de ladrões. E senti-me seus próprios maridos, as mãos secas e cansadas de arar poeira e a vergonha de voltar para casa sem nada para comer. Senti-me um vaso quebrado, que não segura mais a água, um prato vazio, juntando sujeira, um baga de trigo sem água para sustentá-la.

Senti um desespero pelas mãos dos deuses, pelo abraço suave de Shakti, por seu peito farto que traria consolação e rejuvenescimento para a terra. Senti a adoração por seu rosto divino, por sua eterna maternidade de tudo que existe.

Nagala levantou os braços, devagar, enquanto o sol morria às suas costas.

E a Deusa estava nela, ou ao menos parte. A Deusa estaria nela até que ela se juntasse ao mundo dos mortos, e então estaria na próxima sacerdotisa, e na próxima, e na próxima, até que ciclo das almas se findasse, até que o mundo terminasse num beijo de despedida, até que Sanatana Dharma não fosse mais eterna, mas cumprida.

E a Deusa viria para a terra, trazendo a bênção das águas, trazendo filhos fortes e braços robustos para carregar armas, e traria pão para o prato, chá para o copo, ouro para o templo, maridos para suas casas, mulheres para suas famílias. Traria leite e mel e carne e fruto e amor. Shakti viria, por um preço.

Nagala moveu-se como a chuva sobre a pedra, como os rios que ainda se lembram quando eram neve, quando eram nuvem, quando são ciclo. Trazia uma faca, e postou-se diante do homem da direita, e o vento soprou como perfume.

Com um beijo de lâmina, o homem expirou, e a Deusa estava nela. E a Deusa viria. Seus olhos eram fogo, o fogo da criação e destruição. Seus pés não tocavam o chão, pois a Deusa não ainda estava na terra. Ainda havia o soldo a pagar. Ainda havia.

Com um beijo de lâmina, o homem expirou, e a Deusa estava nela. E a Deusa viria. Só eu restava agora, na espera, e o vento era um turbilhão com o perfume dos incensos. E Shakti estava na pedra e no metal, nas sombras do templo e nos olhos da mulher. E ela era alta como montanhas, como as árvores eternas, como as estrelas do céu, como as catedrais de minha terra.

Minha terra. Minha terra selvagem e distante, meu lar sem deusas e sem sacrifícios. Minha vida perdida, meu exílio e minha canção portuguesa.

Com um beijo de lâmina, caí para trás. Por um instante a deusa e Nagala se misturaram num cenho franzido em confusão. Os guardas hesitaram, rodopiei e me botei a trotar, mais pulando que andando, jogando os quadris pra frente para me movimentar. A cerimônia parecia lentamente desmontar, cada face como que acordando de um sonho. Me lancei contra as mulheres e seus tamborins, seus gritos de susto despedaçando o transe ritualístico. Abaixo de mim, apenas centenas de metros de morte.

Lancei-me ao vazio.

Caí por um segundo, o vento em meus ouvidos, soprando contra mim, como se quisesse me devolver ao templo e a morte eterna, e a deusa. Bati contra um dos demônios esculpidos da parede, e fiquei preso. Um de seus chifres se enrolou na faixa que amarrava meus pés. Tentei virar a cabeça para cima, e por um instante juro que vi seus olhos negros de ágata, me mirando com certa raiva, certo lento divertir, deusa e mulher pra sempre.

A faixa se rasgou, e caí novamente. Bati as costas contra a parede, rolei, fiquei preso em chifres e lanças, quebrei o pulso numa das quedas, minhas calças se rasgaram e continuei a cair, batendo contra as estátuas. Fiquei preso num braço estendido de uma das figuras. Despenquei para os últimos seis metros da base do monumento, o vento me jogou para o lado, e caí no rio, a água me roubando a consciência.

Devo minha vida ao Nosso Senhor, de quem sou eternamente devoto. Fui encontrado dois dias depois, quebrado e quase morto, quilômetros rio abaixo. Bons homens desta terra cuidaram de mim durante as vagas da febre, e conseguiram até por meu braço e minha perna em seus devidos lugares novamente. Curei-me devagar, durante quase um ano, onde trabalhei o barro para fazer vasos usando minha mão boa. Mantive silêncio por quase todo o tempo, mas aprendi algumas palavras de sua língua, embora nenhum tivesse o tom tilintante que me assombrava os sonhos inquietos.

Ao fim do inverno, vaguei ao porto, usando parte de meu dinheiro para alugar uma carroça árabe. Consegui arranjar com Sahid uma vaga de trabalho no navio de seu pai, que partiria com a carga da carroça duas noites depois. Cumpriria meu exílio no mar, como marinheiro, ou talvez na Arábia ou no Egito, como escravo, mercante, artesão, guarda, o que fosse.

Guardo minha Fé. Combato o bom combate, continuo a corrida. Faço minhas orações e reparto meu pão. Sou um homem de Nosso Senhor, batizado pela Água e pelo Fogo. Mas nas noites sombrias desta terra, lembro-me de Nagala, de seu templo e suas preces, do beijo da lâmina que traria vida nova a este povo, em troca da minha morte eterna.

Guardo as palavras do meu Senhor. Espero Seu retorno, cumpro Sua promessa. Mas sei que, mesmo se um dia eu me deitasse novamente em minha terra, sempre traria este lugar em meu peito, e este templo, e estas coisas todas que vi e agora escrevo. E escrevo em parte para exorcizá-las de mim, em parte para prevenir ao cristão que se aproxima desta terra. Guardo minha Fé. Mas guardo também o que vi. E vi olhos de ágata, cabelos como a asa do corvo, lábios zombeteiros de mulher, e palavras tilintantes. Vi o beijo da lâmina, vi meus companheiros serem sacrificados para renovar uma terra em lenta agonia.

E vi Deuses.

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[1] Quando o calendário Juliano, usado até então, foi substituído pelo nosso atual calendário, o Gregoriano, em 1582, o Papa Gregório XIII emitiu uma ordem, chamada de bula Inter Gravissimas, determinando que a quinta feira, 4 de outubro de 1582 seria imediatamente seguida pela sexta-feira, 15 de outubro, para compensar as diferenças entre o calendário juliano e as observações astronômicas.


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Notas finais do capítulo

Comentários, sempre são bem vindos :D

A maravilhosa capa é obra da Oficina Literária, que pode ser facilmente encontrada no Facebook. Também encomendei deles uma betagem, que está em produção. Em breve, atualizo.

Quem gostou da história, peço que visitem meu outro original, longshot, chamado Terminais. Link em meu perfil.

VALEU!



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