Animicida escrita por MsBrightside


Capítulo 1
Capítulo único.


Notas iniciais do capítulo

Alguns conceitos importantes:

MISANTROPIA - aversão aos seres humanos.
ATELOFOBIA - A Atelofobia é um tipo de fobia caracterizada pelo medo de não ser bom o bastante ou não se sentir suficiente.

Boa leitura!



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Estava me afogando nas minhas próprias concepções.

E como elas me doíam.

— Ela nunca será boa, você não vê? — a Sra. Atelofobia riu, escarnosa. Pareceu duvidosa. — Fraca demais, se importa demais e come demais. Escapes, tão desnecessários. — concluiu, decepcionada.

— Mas ela não precisa, não é, preciosa? — zombou nos seus sonhos, a Dona Misantropia. — Ela é misantrópica, como eu, logo eu, a própria definição. Não se importa com seus próximos.

— Se fosse, não se importaria… — ralhou, Atelofobia, enquanto observava a menina que dormia, ou quase isso, chorava — Esquece, não quero ficar falando dessa fedelha. Podemos jogar cartas?

O espaço girou, mudou sua rota, vomitei as palavras dele, o despertador tocou, já estava na hora. Coloquei em órbita tudo aquilo que me fez mal por esse tempo, os dias se passaram copiosamente, era muita coisa.

Julguei o fato de como, certas vezes, minhas decisões remexiam meu humor. Irritadiça, falha, preguiçosa e rebelde dentro do próprio coração. O tipo que chora sorrindo. O tipo que nunca fez sucesso, nem nas piores histórias. Um dos meus objetivos era pensar nos rostos, nas vozes, nas promessas quebradas como um copo de vidro por falta de cuidado. Ainda vomitava os olhos presunçosos e os sorrisos oblíquos. Eles eram como Capitu, mas tão falsos.

Estava um passo à frente deles, de todos eles e por incrível que pareça eu estava feliz porque carregar aquela mochila cheia de passados e toda minha ação de removê-la foi cansativo. Minhas costas doíam como se eu estivesse levado um chute. Mas era tudo uma ilusão, eu havia levado uns três, ou mesmo isso multiplicado por seis milhões, duzentos e trinta e sete mil, quinhentos e sessenta.

Talvez um pouco menos, mas a Atelofobia me disse que não. Ou talvez que sim, mas eu costumava distorcer tudo.

Distorção era um problema, mas as minhas fobias eram desgastantes.

Principalmente aquelas que me diziam que eu nunca seria boa o suficiente, independente do que isso signifique pra você.

— Desgastante, chocante, como um tapa no rosto, — minhas concepções afirmaram, elas nunca presenciaram algo tão duradouro — ela está viva, afinal.

— Mas ela continua colocando para fora, — disse o bom senso — incrível, nós temos um avanço aqui, Sr. Medo.

— Não durará tanto, um dia ela se arrepende e engole tudo. Vai cair como bomba, não se come algo que coloca pra fora com prazer.

Eles estavam enganados, porque isso foi exatamente o que fizera durante a vida. Eu comi de talheres brilhantes tudo o que vomitavam no meu prato, era usada, degustada mas não dizia absolutamente nada, porque tinha medo de perder as pessoas, mal sabia eu que elas nunca eram encontradas.

Engoli todo o ódio e repudia e eles desceram rasgando.

Engoli toda a inglória. Toda a falta de humor e o excesso dele que caiu como lágrimas.

Lágrimas que caiam como bomba.

Destruíram tudo dentro de mim e a minha promessa era reconstruir cada simplório pedaço, porque não aguentaria o amortecer das minhas alegrias e nem dos meus sonhos. Sorte a minha, mas esqueceram uma luz ligada. Uma faísca que incendiaria novamente todas as que foram sopradas com um sussurro no ar. Sem valor absoluto.

Meu plano tinha falhas, claro, todos têm. Tinha medo de que fosse uma revolta passageira como o expresso das seis. Tinha medo de me tornar uma tola como eles.

Ser tola era tudo o que eu não queria ser.

O cabo da escova de dente dançou nos castelos de minha garganta, me incentivando a continuar colocando para fora. Agora era hora de eliminar seus olhares cortantes, olhares de lobo que pairaram sobre mim mesmo quando eram imaginários. Mesmo quando fui vítima de mim. Olhares que me disseram, em uma tarde nublada, que eu não poderia ser nada diferente do que eles quiseram para mim.

Eles me disseram que eu não seria nada, mas eu não obedeci, nunca disse que o faria.

Vieram furiosos, mas não pude recebê-los, porque eu queria amor e nunca poderiam me dar.

O amor me lembrou, depois de passar o café ardente pelas minhas estranhas, de vomitá-lo, de uma vez por todas. Mas eu tive a perspicácia de deixar os sentimentos bons. Avivadores. Não sou odiosa com o amor, sou odiosa com quem o usa. Não deveria ser algo digno de oriundos do pó como nós. O amor foi sujo, agora era absorto. Vivi algum tempo pensando em como seria bom ter todo esse amor que diziam viver para e viver de. Não conheci, você conheceu? Duvido um pouco, talvez eles tenham mentido, porque nada é tão intenso assim quando se trata de imundos, como nós.

A TV exibia mais uma daquelas programações forçadas sobre a adolescência, tratei de vomitá-las também. Tratei de eliminar qualquer coisa que fizesse influência negativa sobre mim. Quem eles pensavam que eram? Eu não precisava morrer para saber que estava viva, será que não sabem? Sórdidos, me faz doente pensar, porém me faz podre viver dentro de uma bolha imutável.

Elas eram tão artificiais que faziam os produtos na minha geladeira parecerem amadores. Quer dizer, tudo isso era realmente necessário? Me incendiei, me guiei na própria luz e pensei em como eram miseráveis, como precisavam de uma almofada gigante. Eles queriam abraçá-la e jogar dentro de seu corpo, para tampar seus vazios. A minha era macia e reconfortante, mas era bem maior que eu, não servia do mesmo jeito que nunca pensei em servir para nada.

Atelofobia gritou novamente, ficando feliz em ser invocada. Aquietei-a, lembrando de vomitá-la também. Sorri, vendo como era persistente. Suas pequenas garras se fincaram em meu estômago, mandando em sua frente todas as borboletas mortas e remexendo com o meu interior. Fiquei de ponta cabeça, pensei que enlouqueceria na minha calmaria, mas não desisti. Arrancou minha existência de dentro para fora, rompendo todos os meus filtros e barreiras, desafiando todas as amarras que sustentavam meu coração, levou tudo de si consigo e me deixou sangrando.

Foi a melhor overdose da qual pude provar.

Horas depois ela voltou, me depravando de fora para dentro. Não fora suficiente, eu teria que arrancar suas raízes, porém eu demoraria algum tempo para encontrá-las. Às vezes eu me perdia em mim.

Sabe aquele armário bagunçado, do qual você coloca várias roupas e outras coisas e um dia, quando você vai arrumá-lo, percebe o quanto perdeu ali? E o quanto de coisas você encontrou que agora não tem mais utilidade? Sou eu, sou o exemplo adequado. Perdi as melhores cores na minha nuance monocromática.

Ao olhar o céu de oceanos, lembrei-me dele. Nós. Os olhos já não se aguentavam quietos, então adquiririam o tom celeste, marejavam. Seus cabelos de espiral para baixo. Seus olhos de confusão mundado, sua boca profana e degradante, mas ainda sim seu cheiro de carro velho era agradável. Seu cheiro de velharia, de escárnio, de preguiça nos emaranhava em algo sombrio demais para ser bonito. Mas não nos importávamos porque aparências enganavam e não éramos tolos.

Me levava para casa em cada amanhã prometido, era esperançoso, mas me trazia de volta em cada pedra que tropeçava. Ele prometeu que desviaria e não cairia, mas caiu em absolutamente todas, me deixando no chão por onde passou.

Pisou em mim, cedi mais de cinco vezes, perdi as contas do quanto derramei por nós.

Foram litros. Uns cinco. Multiplicado por três bilhões, setecentos e vinte quatro milhões, cento e sessenta mil, novecentos e trinta e nove. Exatamente isso, sem tirar e sem colocar. Hoje a melancolia era certa, amanhã era provável e depois de tornava inevitável. Mas ninguém nos tirou o valor, porque fui boa o bastante em protegê-lo. Proteger-nos, mesmo que isso me custasse uma vida.

Aquilo se dissipou nos pulmões, mostrando o quanto cansada estava. Danificada. Ele era perigoso como um vírus, então chamei meus anticorpos. Chamei tudo o que poderia detê-lo e vomitei.

Desprendê-lo do meu estômago foi difícil, porque ele insistiu em criar borboletas que agitavam tudo e me faziam fraquejar, perder o equilíbrio e andar na ponta dos pés. Andar de pé juntos, jurando e pedindo que não me matasse. Juntei as forças, respirei o ar aliviante, vital e continuei puxando-o, até que agarrasse em meu coração. Eu sentia como se segurasse-o em suas unhas sujas e arrancasse-o de mim repetidas vezes, mas eu o combati e puxei de volta, como uma queda de braço, queda de coração, era até bem irônico.

Incendiamos, usamos nossos poderes mais fortes, porém eu ganhei. Porque aquilo não se tratava de ninguém além de mim, ele não tinha o direito, eu jurava que nunca mais teria.

Fraco, deixou meu peito livre se recuperar e se reconstruir das milhares de vezes que foi quebrado pelo mesmo. Agarrou em minha garganta, mas não teve força para se manter, gritei e esbravejei que aquilo acabou e o cuspi, junto com seus efeitos. Se dissipou no ar e afirmou nunca mais voltar.

Não sei bem se foi nessa ordem.

Pela primeira vez me sentir vazia foi bom. As flores mortas foram jogadas fora e agora eu era um vaso melhor, mas não sei bem dessa sensação, eu sentia tudo o que era bom, ou o que, pelo menos, me parecia bom. Senti a chuva e os fogos na mesma proporção, foi maravilhoso. Era como sentir tudo e nada. Ter certeza que poderia aproveitar tudo entre o céu e o inferno. Estava em casa, como nunca estive.

A dúvida agulhou meu coração, dizendo que não acreditava nas minhas sensações.

Mandei que se calasse e se aquietasse, porque eu jurei e depois de tudo aquilo, estava disposta.

Eu não devia nada a ninguém e isso foi a melhor coisa que poderia acontecer comigo.


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Notas finais do capítulo

Obrigada!