Ovelhas Negras escrita por Bianca Vivas


Capítulo 10
Felipe faz o que quer




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/629483/chapter/10

Felipe

O menino não conseguia parar de sorrir. Era involuntário. Os músculos do rosto puxavam automaticamente a boca para cima, num conhecido sinal de felicidade. O dia, como que para combinar com seu humor, estava belo. Ou talvez fosse seu olhar que deixava o sol mais brilhante e as cores mais bonitas. Até as árvores pareciam mais vivas — o que era bem raro, devido ao péssimo cuidado que recebiam.

Seu coração estava transbordando dos mais magníficos sentimentos. Como que para comprovar isso, seu corpo começou a dançar no meio da rua. Na falta de transeuntes, os postes eram seu par. A plateia, as casas pelo caminho. E a música? Ah, a música era o som da bela voz de Maria de Lourdes concordando em ser sua namorada — de mentirinha, é verdade, mas ainda sua namorada. Naquele momento, Felipe tivera certeza, porque a felicidade que estava sentindo só podia significar uma coisa, ele havia se apaixonado por Lola. E não fazia ideia de como aquilo foi acontecer.

Passou todo o caminho de volta para casa relembrando aqueles momentos no quarto da garota. Ela era tão única no mundo. Ele a admirava, acima de tudo. A garota tão diferente que escondia tantas qualidades, tantos defeitos e possuía o olhar mais fascinante que Felipe já vira. Era mais que atração física aquilo que estava sentindo — talvez nem fosse atração —, era a sua alma necessitando dela e daquela personalidade tão diferente.

Ao chegar à porta de casa, se decidiu. Iria chamar seu pai e sua mãe para uma conversa séria naquele momento. Enquanto pegava as chaves, criava um pequeno texto com tudo o que queria falar. Quando entrou e viu a sala vazia, perdeu um pouco a coragem, mas sabia, em seu íntimo, que teria de continuar.

— Mãe! Pai! — Saiu gritando pela casa sem, entretanto, achá-los em lugar algum.

Deu uma segunda volta pela casa e foi aí que, por puro acaso, notou um pequeno bilhete pregado na geladeira. Dizia:

“Fomos ao Victrola. Nos encontre lá.”

Felipe amassou o papelzinho na mão e o jogou na mesa da cozinha. Saiu correndo atrás do telefone. Ligou para um táxi e, de tão ansioso, ficou esperando na calçada. Suas mãos batiam nas pernas, num batuque. Os pés mal paravam quietos, já haviam criado um pequeno ritmo no chão, tantas eram as vezes que estava batendo ali. Queria que o taxista chegasse logo. Precisava encontrar seus pais o mais rápido possível. Não aguentava mais esperar.

Um carro branco virou a esquina e Felipe correu de encontro a ele. Nem deu “Bom dia” ou cumprimentou quem estava dirigindo, apenas abriu a porta e entrou. Deu o endereço e viu o carro ser guiado, através das ruazinhas antigas, para fora da cidade.

O Victrola, restaurante preferido de sua mãe, na verdade não era bem um restaurante. Apesar de ter uma extensa carta de vinhos a disposição de seus clientes, sua maior atração eram os cantores de blues e jazz, além, é claro, dos finos petiscos que serviam. Além de tudo, ficava fora da cidade, na parte bucólica do município.

O estabelecimento era alojado numa grande fazenda, pertencente à família que fundara a cidade. Era enorme o local. Ali havia um hotel, um memorial, uma pequena igreja de pedra e mais dois restaurantes — o Maison e o Sabores da Terra. O primeiro era especializado em culinária francesa, enquanto o segundo servia a típica comida baiana com um toque gourmet — o que, na cabeça de Felipe, tirava toda a graça do acarajé, do vatapá e de todas as outras iguarias.

Fosse como fosse, era um ambiente restrito. Apenas a alta sociedade local o frequentava, tornando-o fino e elegante, porém bastante esnobe. Felipe não gostava dali. Não mais. Toda aquela pompa e formalidade perderam a graça depois de algum tempo — agora achava tudo cansativo demais. Se não fosse sua necessidade urgente de contar ao seu pai que não terminara o namoro, fingiria que não tinha visto o bilhete e iria almoçar na casa de Gabriel.

O carro estacionou e Felipe pagou a corrida. Saltou do banco o mais rápido possível e seguiu rumo à entrada. Havia um maître esperando na porta, que lhe perguntou para qual dos restaurantes ele iria.  Após ouvir a resposta, o homem guiou Felipe pela conhecida pontezinha de madeira que levava direto a uma entrada de pedra em forma de arco.

— Elana e Alberto Alcântara estão me esperando — disse Felipe, antes que o maître falasse algo.

O homem assentiu e Felipe adentrou o restaurante. Andou por entre as mesas de madeira, procurando por seus pais. Levou um tempo, mas os encontrou no local próximo ao mural de fotos da Família Carvalho — que fundou a cidade. Não estavam sozinhos, contudo. Junto a eles, havia um homem que deveria ter a idade de seu pai, de cabelos grisalhos e sem barba.

— Bom dia — disse Felipe, educadamente, puxando uma cadeira e se sentando.

— Antônio... — disse Alberto, apontando para o menino. — Este é o meu filho, Felipe, de quem lhe falei.

O homem se levantou e Felipe o imitou. O garoto sentiu a mão de Antônio apertando a sua. Era quente, firme e pesada. Foi um cumprimento duro, seco, num estilo muito profissional.

— Este é Antônio Monteiro. ⸺ O pai de Felipe disse, e o garoto deduziu que aquele homem só poderia o pai de Luan. ⸺ Nós fomos colegas na época do colégio — começou Alberto, quando os dois se sentaram. — Agora ele vive em Brasília, dividido entre a política e o empreendimento com cavalos.

— Legal — Felipe falou, tentando esconder o nervosismo que acabara de se apossar dele.

Seu pai foi colega do pai de Luan, e o homem estava sentado à sua frente naquele exato momento.  Lola fingira para seu pai, que conhecia a família Monteiro, que era membro do clã deles. Por algum milagre, o homem havia acreditado, mas agora, com certeza isso iria mudar. Assim que mencionasse o nome de Lola, Alberto iria dizer que não tinha nenhuma parente com esse nome e a mentira seria descoberta. Ele estava muito ferrado.

— Antônio veio à cidade trazer o filho, Luan, para morar com a avó. Ele também vai cursar o terceiro ano, vocês já devem até ter se conhecido — começou Elana, toda animada. Quando Felipe confirmou que conhecia garoto, ela ficou ainda mais feliz. — Não é maravilhoso como o mundo é pequeno?

Felipe apenas assentiu, mas não via nada de maravilhoso naquilo. Até pensou em perguntar onde estava Luan, mas ele não gostava muito do menino. E agora, depois de descobrir que suas famílias se conheciam, detestava mais ainda Luan. Gostava muito menos de Alberto. Se não fosse pelas olhadelas que ele dava em direção a sua mãe, Felipe acharia que ele nem ao menos gostaria de estar ali.

Elana tentava disfarçar, para que seu pai não percebesse nada. O menino sabia que, por mais que Elana fosse uma mulher elegante e bem-educada, seu pai era rústico demais para aquele ambiente. Ternos e gravatas não lhe caiam bem, e menos ainda o controle emocional típico da alta sociedade. Se ele notasse os olhares de cobiça de seu colega e, provavelmente, futuro parceiro de negócios, uma confusão iria começar.

— Hm... Escute, mãe, pai... — Felipe começou a falar, interrompendo os sorrisos de Elana e os olhares de Alberto. — Eu tenho algo urgente para dizer para vocês. ⸺ Talvez se ele trouxesse o assunto à tona, seu pai ficasse tão furioso com sua atitude que nem mencionasse o suposto parentesco das duas.

Ele estava nervoso, apesar de decidido. Colocou as mãos no colo, porque além de estarem suando demais, começaram a tremer. O ambiente ficou, de repente, um pouco mais quente e ele sentiu pequenas gotas de suor se amontoarem em sua testa. Não sabia se era o momento certo, com aquele homem ali, por quem sentira enorme antipatia, todavia, queria que fosse o mais rápido possível. Não aguentava mais esperar.

— Diga — respondeu Elana, num tempo que, pareceu a Felipe, infinito.

O menino respirou. Repetiu mentalmente para si mesmo que, em pouco menos de um ano, seria maior de idade. Simplesmente não podia mais ter medo de tomar as próprias decisões e contrariar seus pais. Tinha que agir feito adulto agora.

— Bem... eu e a Maria de Lourdes... bem, nós vamos continuar juntos e eu não vou fazer o que vocês pediram — ele falou de uma vez, gaguejando um pouco, mas sem parar para respirar.

Com o canto dos olhos ele viu Antônio rindo por dentro, com o olhar nostálgico, como se estivesse se lembrando de algo. Quando prestou atenção na cena que se desenrolava à sua frente, entretanto, encontrou reações não tão calmas. Sua mãe estava pálida. Seus lábios pararam, abertos, no meio do que poderia ser uma frase. Olhava para ele com espanto, sem acreditar no que acabara de ouvir. Seu querido filho estava desafiando as leis dos próprios pais! Era um choque e tanto para ela, que queria ter a família perfeita.

Seu pai, por sua vez, estava bem pior. O rosto do homem estava vermelho, deixando os fios brancos de sua barba e bigode bastante evidentes. Os olhos escuros quase saltaram da órbita e as sobrancelhas ficaram bastante arqueadas. Uma veia verde e grossa saltara do pescoço grosso. As mãos do homem, antes bem brancas, estavam em brasa. Alberto bateu com o punho fechado na mesa, chamando a atenção de alguns clientes e espantando Antônio.

— O que você disse? — A voz do homem estava embargada, com a raiva transbordando pelas palavras.

— Que nós vamos continuar juntos, mas eu não vou fazer o que você pediu — respondeu Felipe, tentando esconder o medo do pai e o nervosismo por trás de uma expressão tranquila.

— Você vai me desobedecer, Felipe? — Alberto levantou-se, quase gritando, e, dessa vez, até os garçons pararam o que estavam fazendo.

Felipe engoliu em seco. Já vira seu pai nervoso antes, mas nunca em público. Antônio ficara espantado também. Felipe viu o ex-colega do pai colocando o guardanapo na mesa novamente e se preparando para levantar e segurar Alberto, caso ele não se sentasse. Algo que seria muito necessário, caso Elana não segurasse o braço do marido, puxando-o para baixo.

Alberto sentou-se, mas não ficou mais calmo. Continuava com as feições raivosas e esperando a resposta do filho, que estava criando coragem para dizer algo.

— Eu gosto dela, pai. De verdade — foi a única coisa que conseguiu dizer, em meio a tanto estresse.

Antes que Elana ou Alberto argumentassem, Antônio tomou a frente da discussão.

— Deixe os dois namorarem, Alberto — o homem falou. — São jovens, merecem viver a vida.

Alberto nada respondeu, contudo Elana se pronunciou:

— Acontece que essa garota, a Maria de Lourdes, é uma péssima influência para meu filho, Antônio. — A mãe estava muito angustiada, tentando acalmar o marido e explicar a situação ao outro homem, sem revelar o pedido de Antônio a Felipe. — Ela vem de uma família desestruturada. Filha de pais separados. Não faz ideia do que quer da vida...

— E...? — Antônio perguntou. — São jovens, Elana. Você e Alberto já tiveram essa idade também, sabem bem como é. Deixe que vivam o momento. Esse tempo não volta.

— Não importa! Ele é meu filho, não eu! — Alberto quase gritou novamente, sendo contido pelo toque de Elana.

Felipe ficou sem saber o que fazer. Ele queria convencer seus pais a aceitarem Lola, mas agora não fazia mais ideia de como faria isso. Antônio, pelo que ele estava vendo, tentava ajudar. Até apelou para o passado. Contudo, aquilo parecia ter deixado seu pai ainda mais nervoso. Talvez suas esperanças tivessem acabado.

— Pai, mãe... eu realmente gosto dela e se vocês derem uma chance a ela, também gostarão! — Ele tentou convencê-los, mas não sabia se daria certo.

— Alberto, Elana, tenham bom senso — pediu Antônio, piscando de lado para Felipe.

Alberto virou o rosto e ficou calado. Sua palavra final estava dada. Ele não iria voltar atrás. Mas Elana era mais maleável. Ela fechou os olhos, como se fosse se arrepender, e Felipe soube que poderia comemorar. Quando os abriu, foi com um sorriso contido no rosto.

— Acho que poderíamos conhecer melhor a Maria de Lourdes antes de dar nossa palavra final — ela disse, olhando para o marido. — O que acha, querido?

— Que isso não será possível. Mas ninguém mais respeita minha opinião nessa família. — Alberto ainda estava com raiva e se levantou da mesa de novo. — Se me derem licença, eu vou tomar um ar.

Ele saiu do restaurante, batendo pé. Elana sorriu, tentando disfarçar a vergonha. Logo encontrou algum assunto para conversar com Antônio, enquanto esperavam por Alberto e esqueceram o ocorrido — ou fingiram esquecer. Felipe não se importava. Seu pai não daria o braço a torcer jamais, ele sabia disso, mas também não iria mais dizer nada com tanta gente contra ele.  Sua mãe era outra história. Bastava pressioná-la que ela cedia e, ele tinha de admitir, Antônio o ajudara bastante também. Suas colocações foram pertinentes, dando razão a Felipe. Talvez ele não fosse tão ruim quanto pensara.

No fim, ele não teria que terminar seu namoro falso com Maria de Lourdes, nem ajudar seu pai em um trabalho sujo. Não poderia se sentir melhor naquele momento. Estava tão bem que nem percebeu a volta do pai à mesa, ainda bufando de raiva, ou a chegada da comida fina demais. Um prato que ele nunca havia comido e que nem deveria ser tão bom, mas seu paladar o deixou com o melhor gosto do mundo. Enquanto comia, se sentia no paraíso.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Ovelhas Negras" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.