Infinite escrita por Jéssica Sanz


Capítulo 1
Despertar




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/628839/chapter/1

Meu primeiro impulso é respirar. Mas o ar não vem.

Ah, é. Eu não respiro pelo nariz.

Me concentro em achar luz solar. Ah, que bom, estou coberta dela. Todas as partes do meu corpo respiram por mim. Isso é um grande alívio.

Abro os olhos com cuidado, pensando em todo o sol que está ao meu redor. Tudo o que vejo é uma cobertura meio alaranjada, brilhante como se estivesse irradiando a luz do sol. A mesma cobertura que estava quando eu dormi. Sinto que estou de lado, mas meu corpo está preso à terra. A maior parte de mim não está enterrada, mas eu sinto que estou firmemente presa à terra. Tento me soltar, então penso que podem ser minhas raízes. Concentro-me em recolhê-las, e dá certo. O encontro entra a parede laranja e a base onde a terra deveria estar apresenta uma brecha. A cápsula está aberta, talvez quebrada. Por quanto tempo eu dormi?

Devagar, tento abrir a capsula com as mãos. Mesmo estando um pouco travada, ela acaba cedendo. Com cuidado, saio da cápsula, e encontro um lugar aparentemente desconhecido.

O chão é de pedra, completamente quebrado e coberto com cacos de vidro. No teto e nas paredes, excetuando a direita, há apenas resquícios de armações de ferro. Onde deveria estar a parede direita, havia um amontoado de pedras, como se tivesse desmoronado. Ah, não.

Eu lembro desse lugar. Onde eu fui posta para dormir. O chão é uma parede. E aquele amontoado de pedras é o chão. O lugar está de lado e destruído. Como?

Percebo outros detalhes. Pequenos montes de terra com cacos de cerâmica e plantas mortas. Aqui era a estufa, no terraço do laboratório. Nesse caso, suponho que não só a estufa, mas todo o laboratório tenha ruído. Isso parece tão impossível...

Volto à cápsula. Não me falaram nada sobre ela, apenas me colocaram e fecharam, e eu dormi. Mas lembro que havia uma base de terra e uma cobertura laranja. A terra deslizou quando o prédio desabou. Encontro um objeto plano meio enterrado. Parece ser um papel. Eu o pego. É uma foto. De uma pessoa que eu conheço só de vista, um cara do laboratório. O que a foto dele estava fazendo na estufa?

Ando pelo que um dia havia sido o prédio. Quase todas as paredes desmoronaram. As que não, estão rachadas e parecem que vão cair a qualquer momento. O laboratório está completamente irreconhecível, então decido parar de vasculhá-lo e andar pela cidade.

Está muito diferente. Não há ninguém nas ruas, as lojas estão fechadas, os asfaltos rachados. De repente me animo, quando vejo uma luz dentro de uma loja de roupas. A loja está abandonada e arrombada. Ao me aproximar, percebo que a luz é uma pequena fogueira, e há um garoto loiro tentando se aquecer.

— Ah, que alívio!

Não consigo conter minha emoção. Estava começando a temer que não houvesse restado ninguém. Quando abro a porta, o garoto toma um susto, quase pula de onde está.

— Desculpe se te assustei, eu...

Nem tenho tempo de reagir. O menino grita, levanta e começa a recuar. Tateia as paredes e o balcão, procurando algo para se defender. Finalmente, ele acha um guarda-chuva e o aponta pra mim.

— Fique longe de mim!

— O quê? Calma! Eu não vou fazer nada com você.

— Vou cair nessa! Quer me levar para que os vegetais tenham a honra de me matar!

— Vegetais? Não sei do que está falando.

— Pare de tentar me enganar! Sei o que você é e o que você quer, eu não vou me render!

Repentinamente, o menino corre até mim e começa a me bater com o guarda-chuva.

— Ai! O que está fazendo, maluco? Para com isso! - Impaciente, seguro o guarda-chuva e o tomo. O menino arregala os olhos e corre para trás do balcão.

— Ah não! Por favor, não me leva!

— Te levar? Eu não quero te levar, menino maluco. Eu não quero machucar você, ouviu? Só quero entender o que está acontecendo.

— Não caio nessa!

— É sério. Me diga, o que aconteceu com essa cidade?

Me assusto completamente quando um grupo de humanos adultos invade a loja.

— Deixe a criança em paz, vegetal imunda!

— Ahn? Calma aí, eu não sou do mal...

Percebo que os humanos portam armas. Mas não parecem revólveres comuns. São armas diferentes, grandes e pesadas, parecem funcionar com uma tecnologia avançada incomum. Quero dizer, não para mim. Estou acostumada com a alta tecnologia que testamos no laboratório. Ou testávamos.

— Ela está tentando nos enganar! – Disse o garoto. – Está fingindo que não sabe o que é.

— Não se preocupe, garoto! – Gritou uma mulher no grupo. – Ela não sairá viva! Fogo!

Tento me encobrir quando os humanos começam a atirar. No entanto, as balas ricocheteam em mim, sem me machucar muito. Após alguns segundos de tiros, eles param.

— Chega! – Grito. – Eu não quero mach...

Todos tampam os ouvidos com o estrondo: o vidro da vitrine se que quebra completamente.

— O que foi isso? – Grita um homem, desesperado.

Eu não perco tempo. Corro para a vitrine e salto pelo vão. Estou de volta à rua esburacada e rachada. Mas não sozinha. Um homem está à minha frente, portando uma arma um pouco mais simples que a do grupo. Provavelmente ela é responsável pela vitrine. Mas o que realmente me surpreende é a aparência do homem. É incrivelmente semelhante ao que encontrei da última vez que olhei no espelho.

Pele verde claro. Cabelos e olhos verdes escuros. Roupas formadas pelo próprio corpo a partir de casca de árvore. E o símbolo do Infinito do pescoço.

— Aí está você. Venha, é melhor sairmos daqui. Logo.

— Nem pensar. Eu nem te conheço...

— Ei! – Os humanos abrem a porta da loja e saem. Se colocam em fileira em frente à loja e apontam as armas para nós. O homem me puxa para trás dele. – Não se movam, vegetais!

Os humanos começam a atirar. Eu me escondo atrás do homem. Antes que as balas o atinjam, toda a parte frontal do seu corpo fica rígida, com uma grossa camada de casca de árvore.

— Corre! – Grita ele.

Eu não sei quem ele é. Mas é como eu, e não quer me matar. Quer me defender. Então é melhor eu fazer o que ele diz.

Corro o mais rápido que posso. Tentando me manter atrás do homem. Mesmo assim, algumas balas me atingem. Após alguns metros. Percebo que os tiros cessam. Acabaram as munições, elas precisam ser repostas. Olho para trás. O homem corre até mim. Alguns dos humanos repõem as munições, outros correm até nós.

— Continua, Amy!

Quê? Ele sabe meu nome? Pior, sabe meu apelido. Isso deve significar alguma coisa.

Continuo correndo, e ele me alcança depressa.

— Esquerda! – Grita.

Viramos na esquina seguinte. Tudo continua vazio e inabitado. O homem vai um pouco à minha frente para me guiar, e para em frente a uma gráfica. A porta é aberta facilmente. Pouco antes de entrarmos, os humanos viram na esquina. O homem fecha a porta.

— Vamos.

Ele me guia por uma escada caracol para o andar superior.

— Eles nos viram entrar. Eles vão vir pra cá.

— Relaxa. Tá no esquema.

Chegamos ao amplo andar superior. No canto, há uma escada embutida na parede.

— Vamos, por aqui.

O homem sobe rapidamente e passa pela claraboia superior. Enquanto subo, ouço os humanos entrando.

— Rápido! – Diz o homem. Ele me ajuda a subir para o terraço.

O terraço está vazio, a não ser por algumas caixas de madeira e entulhos. O homem vai até um canto, onde um objeto imenso está coberto por uma capa preta. Ele retira a capa, revelando uma imensa esfera de vidro. No interior, há uma poltrona com assento de terra e um painel de controle. O homem toca o vidro, e a parte superior se divide em duas e cada parte desliza para cima da parte inferior.

Uma bala atinge o vidro. Olho para trás, e vejo que o primeiro humano chegou ao terraço.

— Entre! – Grita o homem, e eu obedeço. Entramos com rapidez enquanto os humanos correm até nós. Eles chegam quando a esfera está terminando de fechar. Logo, estamos completamente cercados.

— Como essa coisa funciona? – Pergunto.

— Você vai ver.

O homem opera no painel. Um elemento que eu não tinha notado antes começa a se mover. Um anel de metal que contorna a esfera começa a girar. Ela tem três propulsores de cada lado, provavelmente responsáveis pela locomoção. Os humanos socam a esfera de todos os lados. A esfera começa a se mover com velocidade pelo terraço, e logo o deixamos. Olho para os humanos embaixo, que atiram contra a esfera, me deixando preocupada.

— Não se preocupe – Diz ele, notando minha expressão. – Não é um vidro qualquer. Foi feito pra isso.

Olho para o rosto do homem.

— O que você é?

— O que nós somos, você quer dizer. Há muitos nomes para o que somos. Os humanos nos chamam de vegetais. Nosso nome científico é homo chlorotica. É um nome lindo, se quer saber. Mas nós costumamos nos chamar de infinite.

— Infinite? Por quê?

— É só olhar pro seu pescoço. - Penso no infinito no meu pescoço. – Nascemos com essa marca. Não somos realmente infinitos, mas tendemos a ser. Tudo o que precisamos para viver é água, sol e terra rica em nutrientes. Enquanto tivermos isso, respiramos, nos alimentamos, vivemos.

— Eu não sabia que havia mais como eu.

— Há muito mais como nós, Amy.

— Você sabe meu nome, mas eu não sei o seu.

— É Liam. Liam Henz. E eu sei muito mais sobre você do que você imagina.

— Notei isso quando me encontrou. Parecia estar me procurando.

— Eu estava te procurando.

— Então tem as respostas para as minhas perguntas.

— É. Você deve ter um monte delas. Mas antes, quero que me diga do que se lembra.

Olho para a frente, para a cidade.

— Eu me lembro de uma cidade diferente dessa. Eu sei que é a mesma. Tóquio, Japão. Ela não era assim da última vez que eu a vi, mas... A conheço bem demais para dizer que não é. Não faz sentido ser outra. Eu dormi aqui.

— Muita coisa mudou depois que você dormiu.

— Eu sei.

— Você é americana. Por que está aqui?

— Por causa das pesquisas. Lá em San Francisco, eu era uma das muitas no laboratório de Christina Mendez. Área genética. Então, as pesquisas levaram a uma chance de implantação de fotossíntese em humanos. Mas não tínhamos a tecnologia. Por isso, Christina escolheu seus melhores ajudantes para vir para Tóquio, e tentar aplicar a tecnologia japonesa aos nossos estudos. Depois de mais de um ano de tentativas, conseguimos um soro que funcionou em ratos, depois em outros animais. O soro foi desenvolvido com cloroplastos e cópias de genes fotossintéticos. Muitas pessoas se ofereceram como cobaias. Mas Christina não permitiu que civis testassem o soro. Alguns do laboratório se ofereceram, inclusive eu. E ela me escolheu. Ela aplicou o soro, e meu corpo o aceitou. Comecei a me sentir estranha, mudar de aparência, mas eram apenas efeitos colaterais, segundo o que ela me disse. Após alguns dias, eu fiquei com esta aparência, e todas as novas habilidades. Recolheram meu DNA e o examinaram. Aparentemente, tudo deu certo.

O laboratório divulgou a vitória. Houve várias entrevistas, um grande rebuliço. Uma parte pequena da população humana não aceitou muito bem isso. Mas a maioria estava contente com a descoberta. Todas as pessoas queriam testar. E Christina fez o primeiro teste com um civil. Um mulher chamada Reiko Sasaki. No início deu tudo bem, mas os efeitos colaterais foram mais fortes. Reiko não resistiu, e a notícia correu como o vento. As pessoas se alarmaram, muitos me acusaram de ser um truque, um blefe. Recolhemos o DNA de Reiko para tentar descobrir o que aconteceu, mas nada foi concluído. Um dos homens do laboratório se ofereceu para testar, mesmo com a morte suspeita. Ele também morreu. A notícia vazou. Começaram a inventar os boatos de que muitas pessoas haviam morrido antes do meu sucesso, e até mesmo que sabíamos que isso aconteceria. Houve manifestos, atentados ao laboratório. Não sabíamos mais o que fazer.

Então, Christina tomou uma decisão drástica. Se eu aceitasse, seria posta para dormir e escondida, até as coisas se acalmarem. Eu hesitei, mas ela disse que a hibernação era algo completamente possível para mim, e que uma cápsula especial estava sendo projetada. Eu aceitei. A cápsula ficou pronta. Foi construída com uma base coberta de terra que recebia nutrientes e água periodicamente, e uma estrutura superior que captava a luz solar e, além de retransmiti-la para o interior, fazia a cápsula funcionar. Além de luz solar, a cápsula jogava sonífero, e realizava trocas gasosas com o meio. A cápsula foi colocada na estufa no terraço do laboratório, e o acesso até lá ficou restrito.

Eu me lembro da despedida. Quando eu disse “até logo” à minha família. Deitei na cápsula. Christina me disse que tudo se resolveria, e que logo eu acordaria. Ela não fechou a cápsula enquanto eu não dormi, com o sonífero diretamente injetado em mim. Eu dormi com a cápsula aberta, mas olhando para aquela estrutura laranja, que evitaria que eu acordasse.

Liam, o soro só funcionou em mim. Então... Como você existe?

— Minha vez de contar o que aconteceu enquanto você dormia. Eu vim para Tóquio com sete anos. Minha mãe era aluna de intercâmbio. Eu vivi tudo isso que você disse. Lembro da sua propaganda, e de todo o rebuliço que os boatos causaram. Mas nunca acreditei neles. Lembro da notícia de que você seria adormecida, mas ninguém nunca soube mais do que isso. O resto era boato. O que sabemos é que as pesquisas continuaram. O pessoal do laboratório perseverou na tentativa de descobrir o erro. Muitas pessoas invadiam o laboratório, encontravam o soro em teste e injetavam. Isso causou muitas mortes. Pouco depois da morte de Christina, que foi por causas naturais, foi divulgado que haviam encontrado a solução. Não sei bem qual foi, mas o soro deu certo. O rebuliço tinha diminuído, mas voltou com força total. Havia quem era contra, havia quem queria ser um de nós. Como eu. Foi nesse momento que a população de Tóquio começou a ser segregada. O laboratório testou em seus próprios entes, e eles aceitaram o soro. Isso foi divulgado, e também a informação de que haveriam seleções para os civis que desejassem testar. Os primeiros foram um casal japonês, Seiji e Kori Hime. Seiji era dono da maior empresa de tecnologia da época, por isso ele e sua esposa foram escolhidos. Os que eram contra essa prática se revoltavam, mas o laboratório ignorou. No entanto, houve uma grande invasão, e todos no laboratório foram dizimados. Só não te mataram porque não sabiam que você estava lá. Assim, Seiji e Kori Hime se tornaram os únicos de nossa espécie, e sofreram vários ataques e ameaças. Eles se esconderam em uma nave secreta, a Nave Nyah. Seiji conseguiu tecnologia suficiente para reproduzir o soro. Aos poucos, encontrou humanos que queriam ser Infinite, e os levou para a nave. Assim eu me transformei, e assim foi contruída a população Infinite. Os humanos passaram a nos odiar e lutar contra sua extinção. Por isso chegamos a esse ponto.

— Entendo. Mas como eu acordei?

— Os humanos nunca pararam de tentar nos derrotar. O laboratório estava sendo resguardado por eles. A sua presença nunca foi descoberta. Ontem, os humanos ocuparam o térreo do laboratório e o implodiram. O prédio caiu, e a cápsula foi quebrada. Quando nossos radares encontraram presença infinitiana nos escombros, eu fui mandado para busca-la. Quando encontrei a cápsula, liguei os fatos. Você estava no laboratório esse tempo todo.

— Como seus radares não me encontraram antes?

— Supomos que seja a cápsula. Ela foi minusciosamente projetada não só para fazer você hibernar, mas também para te esconder. Quando eu te achei, você ainda estava dormindo. Eu fiquei com você durante muito tempo, tentando despertá-la. Saí para buscar suprimentos, e quando voltei, você tinha saído. Então eu a encontrei com os humanos e... Aqui estamos.

— Então você sabia a minha história.

— Boa parte dela. E agora você conhece a minha.

— É. Para onde estamos indo?

— Para onde é nosso refúgio desde o nosso surgimento. A Nave Nyah. E ela está logo ali.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Infinite" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.