A Casa de Espelhos escrita por Asas de Prata


Capítulo 5
A Casa de Espelhos


Notas iniciais do capítulo

Amores e Amoras... Esse é o capítulo final... Sim, acabou! Espero que gostem.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/626700/chapter/5

Praticamente preciso empurrar Evan de volta para casa. Quando chegamos lá, vejo que minha mãe e Mathew terminaram de comer: a mesa está abandonada, moscas reunidas aos montes em volta de um prato de bananas fritas.

Empurro Evan para uma espreguiçadeira, onde ele se deita sem resistência, as mãos atrás da cabeça.

— Já volto — digo a Evan, apesar de ele mal parecer escutar.

Entro na casa pelas portas duplas. Não sei bem o que estou pensando agora...

Se implorar para minha mãe e Mathew será que nos levam para casa no próximo avião, interrompendo a viagem? Eles poderiam internar Evan em um hospital, qualquer coisa para levá-lo para longe, mesmo que Sarah tenha dito que não faria diferença alguma?

A porta do quarto deles está fechada; paro na frente dela com a mão levantada, pronta para bater. Posso escutar vozes do outro lado: Mathew gritando, minha mãe dizendo alguma coisa para tentar acalmá-lo, mas não adianta. A voz dele se eleva mais ainda enquanto a dela diminui até virar engasgos. Ela está chorando. Minha mão fica congelada no meio do movimento como a de uma estátua. Os soluços da minha mãe saem suavemente por baixo da porta como o som da maré sendo puxada de volta para o mar, interrompido subitamente pelo barulho de uma bofetada, repentino como um tiro.

Escuto ela arfar, e subitamente tudo fica quieto.

— Bianka... — diz Mathew.

Não consigo identificar se ele parece arrependido ou apenas cansado. Não tenho certeza se me importo. Será sempre assim, penso, pelo resto da minha vida. Eu escutando atrás de uma porta fechada enquanto Mathew lentamente arruína minha mãe, sugando sua alma assim como a Sra. Palmer faz com a de Evan.

Afasto-me da porta em silêncio. Na sala de estar, os tacos de golfe de Mathew reluzem na bolsa de couro pendurada num dos ganchos ao lado da porta da frente. Pego um deles e saio até a varanda. Evan está deitado na espreguiçadeira da maneira que o deixei, com a cabeça em cima no braço. Está tão imóvel que preciso checar o leve subir e descer de seu peito para ter certeza de que ainda está vivo antes de andar até o caminho que leva ao oceano.

À noite, o mar é negro como tinta. Se eu fosse um fantasma voando por ele, poderia ver meu rosto em sua superfície espelhada? Ele bate na praia, formando espumas brancas na borda, enquanto entro pelo portão da casa da Sra. Palmer e piso no jardim. Em todo lugar os cacos de vidro sobem da areia como barbatanas de um tubarão emergindo da água.

O ar aqui perto do oceano é pesado e quente. Levanto o taco em minha mão; ele é pesado e maciço. Eu o baixo com força contra o caco mais próximo, quase esperado que o taco ricocheteie. Mas o vidro se estilhaça, explodindo em milhões de pedacinhos. Uma nuvem branca de fumaça sobe dali, como a fumaça de um cigarro, e se dissipa pelo ar noturno. Fico parada, respirando com dificuldade, segurando o taco. E então golpeio de novo e de novo. O ar fica cheio de adoráveis e tilintantes sons de vidros espatifando. Uma luz se acende subitamente — a luz da entrada da casa cor-de-rosa — , machucando meus olhos, mas continuo golpeando, destruindo vidro após vidro, até alguma coisa agarrar a outra ponta do taco e ele ser arrancado violentamente de minha mão.

A Sra. Palmer está parada na minha frente. Ela não parece mais perfeitamente arrumada; seu cabelo está molhado e embaraçado. Seus olhos, arregalados e selvagens. Está com um longo vestido preto de mangas, num estilo antigo. Realmente parece uma bruxa.

— O que pensa que está fazendo? — grita. — Isso aqui é propriedade privada, minha propriedade!

— Eles não pertencem a você — digo a ela. Minha voz soa estável, mas não consigo evitar me afastar um ou dois passos; meus chinelos de dedo fazem barulho no chão cheio de cacos.— São almas.

— Almas? — Ela me olha, boquiaberta.

— Pode chamá-las como quiser. As vidas que você roubou. Você as coloca nos espelhos. São neles que você as guarda.

Sua voz é de escárnio.

— Você é louca...

— Vi você fazendo isso — digo a ela. — Vi o que fez com Evan. Eu estava espiando pela janela.

Sua boca se abre, e então vejo seus olhos se direcionando para a chave em minha mão.

— Sarah — diz ela. — Aquela mulher é uma intrometida. Ela nunca sabe quando ficar fora dos assuntos dos outros.

— Quero que deixe meu irmão postiço em paz — digo a ela. — Quero que deixe Evan ir embora.

Apesar da raiva, seus lábios vermelhos se curvam num sorriso.

— Sarah deve ter explicado que não é tão simples assim.

— Se não deixá-lo ir, vou voltar... Vou despedaçar cada um desses espelhos... Vou contar para todos onde guarda suas almas, e então todo mundo vai saber..

. — Seu irmão postiço — começa ela. — Ele falava de você. Sabia que você tinha uma quedinha por ele. Disse que achava engraçado. — Sua voz não demonstra mais raiva agora, tem algum tipo de alegria nela, da mesma maneira de quando falou com Evan ao lhe oferecer aquela garrafa de suco. — Você era uma piada para ele, Amy. Então por que está gastando tanta energia tentando salvá-lo agora?

O que ela diz dói. Tento me convencer de que está mentindo, mas dói mesmo assim, uma pontada afiada, como gotas de limão num corte na pele. Respiro fundo.

— Eu o amo. Sarah disse que ele só poderia ser ajudado por alguém que o amasse...

— Mas ele não ama você — diz ela. — É assim que os homens são. Eles pegam o amor que você oferece a eles e o retorcem até virar um cajado com o qual possam te bater. — Ela olha para o taco em sua mão; seu olhar é vingativo. — Me diga que não tenho o direito de revidar, Amy. Diga que não faria a mesma coisa em meu lugar. Homens são uma praga nas vidas das mulheres, você sabe disso.

Em minha mente vejo Mathew e minha mãe a seus pés, catando as frutas do chão com os dedos sangrando.

— Não sei o que penso sobre os homens — respondo. — Mas Evan é apenas um garoto. Ele ainda não é bom nem mau nem nada além disso. Não deveria estar sendo punido.

— Ele vai crescer e ficar igual ao resto deles — diz a Sra. Palmer, que assassinou o marido na própria cama. Numa voz distante, continua: — Todos ficam. É por isso que não vou desistir dele.

Penso no marido de Anne Palmer, no homem com o cajado que batia nela.

— Sarah disse que você não abriria mão de Evan por nada — digo. — Mas ele é jovem e fraco. E se eu conseguisse algo melhor para você?

Contra a escuridão, como o súbito e cintilante brilho de um vaga-lume, vejo Anne Palmer sorrir.

— Conte-me — ela diz.

Acordo de manhã com a luz clara do sol e o barulho dos pássaros. Fico deitada em minha cama de dossel por um longo instante. Seria fácil pensar que a noite passada nunca acontecera, nada dela, mas quando viro a cabeça, vejo a garrafa de plástico na minha mesa de cabeceira, ao lado do despertador.

O líquido claro em seu interior brilha como um arco-íris, como um vazamento de óleo. Coloco um vestido de praia de batique e calço mais uma vez os chinelos. Posso ver cortes em meu tornozelo, nos quais vidros voaram e cortaram minha pele, mas estou quase certa de que ninguém vai achar que os pontos vermelhos são mais que picadas de mosquitos.

Pego a garrafa na hora de sair. Ela parece pesada, mais pesada do que se estivesse cheia de água. Quando a inclino, o líquido faz um barulho viscoso. Sarah está na cozinha, fritando bacon numa frigideira. Ela não diz nada, mas posso vê-la me observando de canto de olho enquanto pego um copo de uísque na prateleira e encho de gelo.

Abro a tampa da garrafa que a Sra. Palmer me entregou na noite anterior e derramo o líquido no gelo. Ele sai lentamente da boca da garrafa, espesso como lava. Seu cheiro é vagamente medicinal, lembrando ervas. Enquanto o observo, Sarah vem até mim e joga uma fatia de limão no copo.

— Pronto — diz ela. — Diga a ele que é para dor de cabeça.

Concordo com ela e levo o copo até a varanda. Evan ainda está deitado lá, mas agora seus olhos estão abertos e sua pele já tem cor.

“Ele não vai se lembrar de nada?”, perguntei a Sra. Palmer à noite em seu jardim de espelhos, que eram almas como pedacinhos de brilhantes, dentes quebrados cintilando a nossa volta. “Promete?” “Ele não se lembrará”, ela havia prometido. “Apenas das férias. Do sol. Da areia. E, então, do acidente.”

Minha mãe está sentada em uma cadeira ao lado de Evan, remexendo-se e tentando fazê-lo segurar um pano úmido e frio em seu rosto. Ele afasta a mão dele, recusando, mas pelo menos sua voz está forte quando ele diz a ela que não. Ela está usando óculos escuros de novo, mas não consegue esconder a pele com um hematoma de seu rosto. Olho por um tempo para eles dois antes de atravessar a varanda para a alcova sob a sombra em que Mathew está sentado com o jornal aberto no colo, sua expressão continua sendo a mesma desde o inicio das férias.

— Oi — cumprimento.

Ele levanta os olhos, seu rosto estreito sem expressão sob o sol. Não existe culpa na maneira como ele olha para mim, nenhuma admissão interna de que a noite passada ele fez uma coisa que, por mais que minha mãe perdoe, eu nunca perdoarei. Mas duvido que Mathew esteja interessado em meus sentimentos de adolescente apaixonada e amedrontada. Ele nunca pensou em mim como uma pessoa de verdade, com o poder de conceder ou negar o perdão, com o poder de gostar ou não de alguém e com o poder de tomar minhas próprias decisões.

Para ele, eu era apenas uma cachorrinha que vivia atrás da minha mãe e de Evan.

“Tem que ser rápido, e não lentamente”, eu dissera a Sra. Palmer. “Não quero que ele vá se esvaziando. Quero que você pegue a alma dele toda de uma vez. O mais rápido e dolorido o possível.” Ela havia sorrido com dentes brancos e afiados. “Tudo de uma vez, dolorido e rápido”, ela prometeu e me entregou uma coisa achatada, brilhante e afiada. Um pedaço de espelho quebrado.

A alma de Evan.

“É sua”, disse ela. “Para guardar, ou quebrá-la e libertá-la inteiramente de volta para ele.” Eu o escondi embaixo da minha cama ontem à noite, onde ficou refletindo a luz da lua.

“Vou quebrá-lo hoje à noite”, disse a mim mesma.

“Quebrar e devolver a alma a Evan. A alma que foi roubada pela Sra. Palmer.” "Farei isso esta noite."

Ou amanhã.

Estendo o drinque para Mathew. À luz do sol, parece água comum, com um claro pedaço de limão flutuando. Ainda assim, posso ouvir o barulho sibilante do líquido grosso escorregando pelo gelo. Ou talvez esteja imaginando isso.

Ele franze o cenho.

— Como ela sabia que estou com dor de cabeça? — Não respondo nada, e, depois de um tempo, ele abaixa o jornal e pega o copo da minha mão. — Obrigado, Amy — agradece ele naquela sua maneira dura e formal que tanto nos assusta.

E ele toma um gole. Observo sua garganta enquanto o líquido desce. Nunca observei Mathew com tanta fascinação antes. Finalmente ele larga o copo e pergunta:

— Que tipo de suco é esse?

— Aloe Vera misturado com ervas como cidreira, camomila e algumas que eu nunca tinha escutado falar — respondo. — Sarah disse que é bom para curar dores de cabeça e estresse.

— Folclore estúpido e brega. — Ele resfolega e pega o jornal de volta.

— Tem mais uma coisa — digo. — Aquela mulher, a que Evan estava ajudando no outro dia... Bem, seu carro ainda está quebrado. Ela disse que Evan não conseguiu descobrir o problema, ou pelo menos fazê-lo ligar. Talvez Evan realmente não entenda de carros nem o como consertá-los.

Mathew bufa.

— Eu mesmo poderia ter dito isso a ela. Evan é só uma criança, não entende nada de motor e carros.

— Ela pensou que você pudesse dar uma olhada — continuo. — Considerando que você é mais velho e mais experiente. Provavelmente entende mais desse assunto que o coitado do Evan, que levou dois choques, mas não consertou o carro.

— Isso mesmo. Entendo. Sou um ótimo mecânico. — Ele pega o copo mais uma vez, esvazia-o e estala os lábios. — Acho melhor ir ajudar a pobre mulher com seus espelhos. — Ele se levanta com a mesma expressão que Evan para ajudá-la.

— Com seu carro. — corrijo. — E isso seria ótimo. — Aponto o caminho. — Ela mora descendo a trilha, na casa cor-de-rosa, a que parece uma flor. Você verá o jardim decorado com espelhos. Está esperando por você.

E está mesmo. “Ele é meu padrasto”, eu tinha dito a Sra. Palmer. “Ele é forte, mais forte de Evan. Mais velho que Evan. E bate em minha mãe. Assim como seu marido batia em você.”

Mathew dá um tapinha em meu ombro desajeitadamente.

— É uma boa garota, Amy.

Não, penso. Isso é algo que não sou. Porque em algum lugar na casa cor-de-rosa, Anne Palmer está esperando, com seus lábios vermelhos e seu jardim de vidro com seus espelhos que roubam almas.

Observo Mathew descer apressadamente pelo caminho, um pouco rígido em seus chinelos novos, a luz do sol refletindo na parte calva de sua cabeça. Observo e não digo nada. Observo, porque sei que ele nunca mais voltará.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

O Que acharam do final??? Gostaram da minha primeira fanfic??



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Casa de Espelhos" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.