A Casa de Espelhos escrita por Asas de Prata


Capítulo 4
A Bruxa da Plantação


Notas iniciais do capítulo

Bom esse capítulo é um dos finais, e como eu estava ansiosa para postar a história... Decidi postar hoje. Suas perguntas podem ser ou não respondidas.



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Saio para a varanda; minha mãe está ali, deitada numa espreguiçadeira, com metade do corpo na sombra e metade no sol. Ela tem um livro aberto no colo, o mesmo que esteve lendo a semana toda. Não acho que ela avançou mais que poucas páginas. Levanta os olhos, me vê e acena para eu me aproximar.

Sento-me na ponta da espreguiçadeira, minha mãe ri para mim debilmente.

— Está se divertindo, Amy?

Minha boca está seca. Tenho vontade de contar a ela sobre o que vi, sobre Evan, mas ela parece tão distante, como se estivesse se afastando cada vez mais em alto-mar. Tento me lembrar da última vez em que senti que minha mãe estava realmente se concentrando em alguma coisa, especialmente em mim.

— Claro.

— Parece que mal a vi — lamenta ela. — Ainda assim, acho que é melhor desse jeito, com você e Evan se divertindo juntos. Penso em Evan parecendo mole e de seu rosto cinzento no sofá.

— Estou preocupada com Evan, mãe.

— Preocupada? — Seus olhos cinzas parecem vazios atrás do óculos de sol. — Não deveria ficar se preocupando durante as férias.

— Não, quero dizer, acho que pode haver algo de errado acontecendo com ele... Tipo, bem errado.

Ela suspira.

— Adolescentes podem ser meio mal-humorados e carrancudos, Amy. Com os hormônios borbulhando dentro deles e aquilo tudo. Apenas não preste atenção nas crises dele. Evan precisa se ajustar nessa situação familiar, assim como você.

— Mãe — digo lentamente, reunindo coragem. – Mãe, você está feliz?

— Claro que estou! Quero dizer, olha só onde estamos. — Ela gesticula abrindo os braços, indicando o mar, o céu, a praia. — Mesmo trabalhando em dois empregos, nunca poderia ter bancado uma viagem assim antes.

Mas não é boa. Fico com essas palavras na ponta da língua, no entanto, a expressão no rosto da minha mãe me impede. É como se ela estivesse parada na minha frente, num vestido novinho em folha me implorando para dizer como ficou lindo e não consigo dizer a verdade: que o vestido é feio, barato, manchado e brega. Por amá-la, engulo as palavras sobre a viagem.

Ela tira seus óculos de sol e, por um momento, acho que ela realmente está me olhando, realmente me enxergando.

— Sei que Mathew parece estourado — diz ela finalmente.— Mas ele só está cansado. Seu trabalho exige muito dele. Ele nos ama de verdade. Posso ver sua bondade. Em seus olhos, sabe? — Ela continua sem esperar minha resposta. — É o que você vê nos olhos de alguém que se importa. Como diz o ditado, os olhos são os espelhos da alma.

— Janelas — corrijo.

Ela pisca.

— O quê?

— Os olhos são as janelas da alma. Não os espelhos.

Ela se inclina para a frente e coloca a mão sobre a minha. Parece fina, seus dedos endurecidos e secos como galhos.

— Você é tão esperta — observa. — Você sabe de tudo.

O jardim na frente da casa ficava junto a uma empoeirada entrada não pavimentada que leva até Black River. Uma cerca de bambu bloqueava a casa do trânsito vespertino, escondendo-nos do resto do mundo. O próprio jardim é cheio de flores: jacarandás roxos, orquídeas cor-de-rosa, buganvílias vermelhas. Jason está lá, na sombra, com um chapéu branco jogado para trás da cabeça. Está verificando alguns sprinklers. Tudo parece tão normal que me sinto um pouco boba quando vou até ele e digo:

— Preciso falar com sua irmã.

Ele olha pra mim, os olhos negros insondáveis.

— Minha irmã?

— Sarah — respondo. — Por favor.

Depois de um instante, ele abre o celular, disca e fala em um dialeto tão apressado que não consigo entender sequer uma palavra. Depois de um tempo fecha o celular e se vira para mim com um breve aceno de cabeça.

— Ela vai esperar embaixo da árvore de fogo. — Ele aponta na direção de uma grande árvore retorcida com suas flores vermelhas-ferrugem. — Lá.

Parada debaixo da árvore, flores vermelhas caem em mim toda vez que uma brisa passa pelos galhos. As suaves pétalas tocam meu pescoço e ombros, perecendo insetos em minha pele. Tenho que lutar contra a vontade de arfar e varrê-las para longe. Fico aliviada quando vejo Sarah passando pelo portão de bambu e vem em minha direção. Ela está usando um vestido de algodão da cor do pôr do sol, mas seu rosto está sombrio.

— Você a viu — diz ela sem rodeios. — Não viu?

Conto tudo de uma vez: o portão, a chave, o jardim de espelhos quebrados, o que vi pela janela. Ela me observa enquanto falo, com o rosto imóvel, até eu terminar, e então digo:

— Quem é ela, Sarah? O que ela é?

— Quer mesmo saber?

— Sim. Por favor, me diga.

— Ela é uma bruxa — responde Sarah. — Uma bruxa muito velha. Nem toda magia é má, mas a dela é. Ela era dona de uma plantação, ou pelo menos seu marido era. Dizem que ele batia nela. Um dia ela se levantou e o matou com as próprias mãos. Então começou a matar os escravos, um a um. Apenas os homens, entenda bem. Ela faz com que a amem, depois suga a vida deles e os deixa morrer vazios, como cascas sem sementes. Ela gosta dos jovens e bonitos, mas se não consegue esses, aceita qualquer um. Ela os seduz com uma bebida mágica, que os torna sua propriedade assim que provam da bebida. Pega suas almas e se alimenta delas para ficar sempre jovem e bonita. Há centenas de anos tem feito isso. Às vezes os mata rapidamente, às vezes espera, brinca com eles por um tempo. Como está brincando com seu irmão.

— Ele não é meu irmão — respondo, entre dentes. — E se você sabe disso tudo, se todo mundo sabe, então por que não fazem nada a respeito?

— Ela não pode morrer — diz Sarah. — Há muito tempo mataram essa mulher e a enterraram num tumulo com cercas especiais e sal para evitar que ela retornasse. Mas nem isso a segurou por muito tempo debaixo da terra. Sua mágica é mortal e imensa, e ela vive eternamente. Faça mal a ela e ela se vinga de você, dos seus filhos e de várias gerações. Mas você... Você é estrangeira. Está indo embora, indo para um lugar onde ela não pode te machucar. Por isso posso contar como machucá-la. Ela se alimenta das almas que rouba. Destrua essas almas e ela perderá o poder por tempo o suficiente para salvar seu irmão postiço.

— Mas onde ela os guarda?

— Eu não sei — responde Sarah. — Mas você é uma garota esperta. Talvez consiga descobrir. — Ela me olha de lado. — Vou dizer uma coisa, no entanto. Anne Palmer nunca desiste de um homem depois de enfiar as garras nele. Por nada.

— Então por que está me contando tudo isso? — Minha voz se eleva até quase um grito. — Se não existe nada que eu possa fazer para salvar Evan, se já é tarde demais, então por quê?

Uma flor vermelha se desprende da árvore e flutua até pousar no ombro de Sarah como uma poça de sangue.

— Eu disse que ela nunca desiste de um homem por nada — explica ela. — Não disse que ela não desistiria por alguma coisa.

À noite, Evan não apareceu para jantar.

Mathew franze o cenho quando vê o lugar do seu filho vazio. Uma linha afiada aparece entre suas sobrancelhas, como se tivesse sido cortada com uma faca.

— Amy — diz ele. Sempre pronuncia meu nome arrastado, como se estivesse se preparando para me dar um sermão: A-mm-y.

— Amy, onde está Evan?

Olho para meu prato. Está cheio de curry e peixe enrolado em folhas de bananeira e frutas fatiadas das cores de joias. A visão revira meu estômago.

— Na praia, eu acho.

— Bem, vá busca-lo. — Ele pega o garfo. — Já chega de faltar às refeições em família.

Olho para minha mãe, que assente imperceptivelmente, como se estivesse com medo de ser vista me dando permissão. Atiro meu guardanapo na mesa e levanto.

— Vou tentar achá-lo — digo. Não estou prometendo nada.

O sol já se pôs, deixando a areia fresca e macia sob meus pés. Uma brisa vem do oceano; ela sopra através de meus cabelos, esfriando o suor úmido na minha nuca escorre entre minha escápula. Viro-me para olhar a casa da Sra. Palmer. Está escura e apagada sob o céu sombrio, como uma flor cujas pétalas fecharam para a noite.

Penso no que Sarah me disse e lembro-me do rosto aterrorizante da Sra. Palmer enquanto se debruçava sobre Evan. Meu coração se aperta. Não posso entrar lá. Não posso ajudá-lo nem salvá-lo. Não sei por que Sarah me contou aquelas coisas. Ela viu minha mãe e Mathew juntos. Deve ser óbvio que não sou alguém capaz de salvar outra pessoa, mesmo pessoas que amo.

Viro de volta para a casa. É nesse momento que vejo uma coisa: um pedaço de pano azul preso numa das rochas perto da entrada da caverna que Evan me mostrou no primeiro dia em que estávamos ali.

Ando até a caverna, olho em volta para ver se alguém está me observando, e então viro de lado para entrar. Esgueiro-me pela parte estreita do túnel curto, saio no espaço maior onde o musgo colorido brilha nas paredes da caverna como luzes de Natal. Demoro um instante para enxergar Evan, sentado na areia úmida junto à parede da caverna, as pernas dobradas sob o queixo, o rosto entre as mãos.

— Evan. — Ajoelho-me ao seu lado. — Evan, o que foi?

Ele levanta os olhos e fico chocada. Mesmo no curto espaço de tempo entre o dia anterior e aquele, seu rosto parece ter desmoronado sobre si mesmo: ele está abatido e cinzento, seus olhos marcados por olheiras. Seus ombros parecem magros por baixo do tecido fino da camiseta. Antes ele parecia mecânico, hipnotizado, como se sob o efeito de uma droga anestésica. Agora, este havia passado, e ele se sacudia desesperadamente. De alguma maneira, era muito pior.

— Amy — sussurra ele. — Aconteceu uma coisa... Deixei-a muito zangada. Não sei nem o que fiz, mas ela me mandou embora.

— A Sra. Palmer? É dela que está falando? — Estico a mão para tocá-lo, deslizo-a em seu ombro e o aperto com força. Ele mal parece notar. — Evan, não deveria ficar perto dela. Ela não é uma boa pessoa. Ela não é boa para você.

— Preciso ficar perto dela — disse ele. — Quando não estou perto dela sinto como se não conseguisse respirar. Como se estivesse morrendo. — Ele remexe freneticamente a areia. — Você não entenderia.

Ai. Isso dói. Como se eu fosse uma garotinha que não sente nada. Prendo a respiração.

— Você a ama?

Ele dá uma risada meio seca, não realmente uma gargalhada.

— Você ama a comida? Ou a água? Ou apenas precisa ter essas coisas para sobreviver? — Ele apoia a cabeça na parede da caverna. — Acho que estou morrendo, Amy.

— Vamos para casa — digo. — Vamos para casa e você vai se esquecer completamente dela.

— Não quero esquecer — sussurra ele. — Quando estou com ela, vejo... tudo. Vejo cores...

— Evan. — Meu rosto está molhado de lágrimas. Toco o queixo dele para que me olhe. — Deixe-me ajudá-lo.

— Me ajudar? — pergunta ele, mas soa mais como um “por favor, me ajude”, e ele abre os olhos.

Inclino-me para ele e nossos lábios se encontram em algum lugar no meio de toda essa escuridão. Lembro-me de beijá-lo na recepção do casamento, quando nós dois estávamos bêbados e rindo embaixo do toldo de flores brancas artificiais no jardim. Aquele beijo teve gosto de champanhe e batom, mas, agora, Evan tem gosto de mar e sal. Sua pele parece seca sob minhas mãos enquanto o toco. Mesmo quando ele rola para cima de mim e eu o seguro nos braços, ele parece leve como um galho, e quando grita um nome, não é o meu.


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Notas finais do capítulo

Para aqueles que me pediram para ter romance entre os Personagens, aqui está.



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