Apenas uma garota... escrita por Luana Nascimento


Capítulo 44
Capítulo 43 - Momentos necessários


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoas o/
Estava com saudades!
Chega de espera: nos vemos lá embaixo e espero que gostem!



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Acordei e a minha primeira visão foi a do sorriso de Jaden.

— Bom dia — ele cumprimentou bem-humorado.

Sorri involuntariamente:

— Bom dia. — pisquei, procurando acordar. — Você está melhor?

— Sim. Obrigado.

Esfreguei os olhos e me estiquei na cama:

— Que horas são?

— 10:05 a.m.

Olhei para ele confusa, pensando ter ouvido errado. Quando processei a informação, pulei da cama:

— Tínhamos aula hoje!

Ele riu agradavelmente:

— Você disse bem: tínhamos. — Joguei o travesseiro nele e ele apenas riu: — Calma, falei com a sua mãe, disse que tínhamos dormido mal essa madrugada.

Me senti vermelha:

— Minha mãe te viu aqui, no meu quarto, enquanto dormíamos juntos?

Jaden riu ainda mais:

— Bem... não pude evitar isso.

Peguei o travesseiro e bati em Jaden com ele:

— E por que está rindo tanto? É constrangedor isso, sabe?

Ele me olhou em um sorriso falsamente inocente, com a cabeça levemente inclinada, e questionou:

— Por quê? Somos amigos, certo? Amigos podem dormir no mesmo quarto. — Os raios de sol da manhã indo alta fizeram com que seu cabelo parecesse mais reluzente. Jaden argumentou, diminuindo a largura do seu sorriso: — Está tudo bem. Um dia de aula perdido não é algo tão ruim assim.

— Bem, eu já havia faltado ontem...

— Te passo a matéria depois. — prometeu. — Podemos comer algo? Estou com fome.

Ele definitivamente parecia bem melhor que no dia anterior.

— Bem, eu tenho que ir ao banheiro antes. Tomar banho e tudo o mais.

— Ok. — Notei que ele já havia trocado de roupa, tomado banho, colocado perfume. — O que você ficou fazendo aqui se você já fez tudo isso?

— Esperando você acordar. Você é bastante pacífica dormindo.

Corei violentamente e sorri, desviando o olhar. Peguei minha toalha, fui ao banheiro e tirei minha roupa, pensando no meu sonho. Minha mãe e David Lancaster tiveram um caso. Ela já me contara que havia morado em Boston por algum tempo, mas nunca me disse essa particularidade. Enquanto a água quente descia pelo meu corpo, pensei que provavelmente foi algo muito dolorido para minha mãe e que ela decidiu enterrar. Então, resolvi não falar esse sonho para ela, por mais que ela estivesse disponível para ouvir sobre minhas visões. Não valia a pena magoa-la e eu nem deveria saber disso, de qualquer forma. Resolvi deixar de lado.

Quando voltei ao quarto, Jaden não estava mais lá. Eu alucinei? Ele estava ali, não? Saí do meu quarto e procurei ouvir algum ruído: o micro-ondas apitou e desci as escadas. Ao chegar na cozinha, vi que Jaden esquentava panquecas no aparelho:

— Estavam aqui na mesa, achei que você iria gostar de comê-las quentes.

Eu corei de novo? Mereço.

— Obrigada — sorri pondo meu cabelo em um lado só.

— E também, não gosto de comida fria.

— Você me parece tão bem —, não pude deixar de comentar.

— Não me sinto totalmente bem, mas reconheço seu esforço para me deixar melhor. De mal humor, já basta ontem, você merece mais que isso.

Corei.

 Tão romântico...” Baixei a cabeça e revirei os olhos. “Eu vi isso”.

Essa foi a intenção, Lizzie”.

— Podemos fazer um piquenique no Stanley Park — sugeri para diminuir meu constrangimento. — Está perto da hora do almoço, podemos fazer um brunch. Faz muito tempo que não faço isso.

— Não é má ideia. Aquele é um lugar que vou demorar para conhecer por completo e misturar café da manhã com almoço é uma das minhas coisas preferidas.

Me animei com o seu bom humor. Peguei a cesta que havia no armário, algumas frutas, as panquecas, uma caixa de suco da geladeira e uma toalha.

— Você é rápida — ele reconheceu.

— Gostei muito da ideia e estou com muita fome.

Saímos de casa, despreocupados, depois que preparei tudo. Observei Jaden pelo canto do olho: ele parecia bem.

— Shelly?

— Estou aqui. — respondi desviando o olhar para a calçada.

— Obrigado. Você me ajudou muito ontem.

Mordi o lábio, senti minhas bochechas arderem.

— Não foi nada.

Ficamos em silêncio por um tempo e ele convidou:

— Poderíamos caminhar em alguma parte que você goste, de preferência onde possamos conversar.

Estranhei:

— Mas... e o trabalho pela tarde?

— Mr. Wang não vai abrir o mercado hoje.

Minha reação foi extremamente surpresa:

— Sério?! Ele me parece tão capitalista!

Jaden sorriu:

— Ele é, mas não hoje. Hoje é ano novo chinês.

— Ano novo chinês?

— É. Eles não contam os anos pelo movimento do sol, mas sim pelo ciclo da lua, então sempre fica entre o fim de janeiro e fevereiro, por aí. Chinatown está em festa desde ontem. Mr. Wang disse que eu poderia passar por lá e comer yakissoba, acho que ele te receberia bem.

Havíamos chegado no ponto de ônibus:

— Nunca comi yakissoba.

— Provei uma vez em que ele fez. É um prato muito gostoso, acho que você iria gostar. Mistura molho shoyu com um macarrão específico, legumes, carne...

— Que diferente. Podemos ir a Chinatown, então, por que não? A ideia me pareceu bem apetitosa.

Jaden me olhou e sorriu, aquele sorriso perturbador. Depois, franziu levemente o cenho:

— Algum... sonho estranho?

— Não — menti. Imagina se eu digo “minha mãe teve um relacionamento com o seu pai biológico”? Talvez eu falasse para ele depois, faria mais sentido quando ele conhecesse os Lancaster. — Qual foi a matéria de ontem?

Enquanto conversávamos, pegamos um ônibus e fomos ao Stanley Park. Chegando lá, nos dirigimos ao Rose Garden. Àquela época do ano, havia algumas flores mais resistentes ao frio, mas o lírio, a minha flor preferida, não estava lá. Procuramos um canto mais afastado e nos sentamos na grama gelada, um de frente para o outro.

— Quantos cravos — Jaden observou as flores com interesse bem científico.

— Tem mais flores no verão e no outono.

— Faz sentido — ele sorriu, olhando para mim e depois ao redor. — É um bom lugar.

— Sim, mas tem coisas mais animadas para se fazer por aqui, geralmente. Qualquer dia, podemos vir aqui e andar de bicicleta pelo Seawall, do mesmo jeito que carregamos a lasanha.

— É uma ideia — Seu sorriso pareceu meio forçado. Quando notei o porquê, me senti idiota:

— Ah, meu Deus, me desculpa, mil desculpas...

— Está tudo bem, você só quis adoçar uma lembrança. — Sua expressão foi a de alguém que comeu algo amargo demais. — Não faz mal.

Suspirei, baixando a cabeça:

— Bem, vamos começar a comer antes que eu diga mais alguma besteira.

— Não seja tão dura consigo mesma. Está tudo bem.

Sorri levemente, ainda me sentindo meio desconfortável com o que eu havia dito, mas isso mudou quando coloquei aquele pequeno pedaço de paraíso na boca:

— Minha mãe sempre faz panquecas maravilhosas — comentei depois de provar as minhas.

— Sem dúvida.

Eu o observei enquanto comíamos, pensando em quanta coisa tinha ficado sem muita explicação. Qual a razão do soco que Jaden levara?

— O que foi? — ele indagou quando nossos olhares se cruzaram.

— Ah, nada. Só pensando em ontem mesmo.

Ele pareceu sem jeito:

— Peço desculpas, de verdade. Não quis ser tão incômodo, mas ontem foi um dia complicado. Eu te tratei mal, mas não foi a minha intenção, juro...

— Dias assim não são impossíveis, principalmente na sua situação. Não se preocupe com isso. — cortei sua fala, olhando-o seriamente, tentando transmitir compreensão. — Está indo à psicóloga?

— Sim. É bem bacana, por sinal. Martha é bem interativa e participativa, me sinto ouvido quando converso com ela.

— Isso é ótimo. — Hesitei: — Posso te fazer uma pergunta?

— Fique à vontade.

— O que te deixou tão perturbado ontem?

Ele suspirou, como se tivesse um fardo difícil de carregar. Depois de tomar um gole de suco, explicou:

— O dia não começou muito bem: acordei um pouco triste, com saudade deles. Tem dias piores que outros.

— Mais difícil suportar?

— Sim. Tem dias que dói mais. Tipo, nos sentimentos, beirando uma sensação física de dor. Mas não há muito o que se fazer, tem? Procurei me conter, seguir em frente, fui à escola. A aula foi normal, quando acabou, fui para o trabalho. No caminho, Henry me abordou, me lembrando que eu ainda devo algum dinheiro a ele.

— Foi Henry? — me surpreendi.

— Sim. Você não sabia que ele vendia drogas?

— Imaginava, mas não esperava. É muito dinheiro?

— Nem tanto. Mas o pior é que ele me ofereceu mais. Ele passou o maldito pó diante do meu nariz. — Seus olhos pareciam irritados, sérios. — Não sei como tive forças para recusar, mas acabei empurrando-o e a droga caiu no chão. Da raiva, ele me deu um soco, revidei e quase brigamos a sério, mas os comparsas dele nos separaram. Estou devendo mais dinheiro a eles, porque ele resolveu me cobrar o dinheiro do pó que caiu no chão. Passei o dia meio louco e sabia que tinha grandes chances de eu não resistir, por isso pedi para dormir na sua casa.

Aproveitei o fim da minha panqueca e segurei suas mãos, pensando em tudo o que ele estava passando:

— Obrigada pela confiança. De verdade.

Jaden sorriu levemente e desviou o olhar, terminando o brunch. Hesitei novamente, mas fiz uma pergunta perigosa:

— Como você começou a usar drogas?

Ele meneou a cabeça e desvencilhou suas mãos das minhas, mexendo-se como quem procura uma posição confortável. Suspirou e explicou:

— Eu estava em uma fase rebelde do começo de adolescência. Muita gente começa a usar drogas por vários motivos: fuga da realidade, predisposição genética ao vício devido a mães imprudentes e viciadas, meio social. Considero que comecei a usar drogas por duas razões ridículas: rebeldia pura e meio social.

— As pessoas têm motivos estranhos para as ações delas.

— Não acho que meus motivos podem ser classificados dessa forma, mas eu era imaturo demais. Sem falar que a família estava em uma fase ruim: meus pais mal tendo tempo para mim devido a uma crise econômica na família e eles ainda tinham que ajudar Riley com o ex-marido dela, que era extremamente problemático. Não justifica, mas ajuda a entender. Enfim, comecei pela maconha. Relativamente leve e entorpecente, mas acho que foi a droga mais leve que já usei.

— Por quê?

— Nunca me senti fisicamente dependente dela.

Ergui as sobrancelhas:

— Sério?

— Sério. Depois de um tempo fumando maconha e de experimentar LSD, quis algo que me deixasse mais acelerado e me ofereceram cocaína. Meu Deus, é muito estranho. A sensação... é como se injetassem litros de energético no seu cérebro.

Lembrei do meu sonho com ele e um garoto desconhecido:

— Eu te mostrei um desenho com um garoto uma vez, lembra?

— Como se fosse ontem. Disse que te contaria melhor depois, mas acabei deixando de lado. Aquele era Aaron. Um ano mais velho que eu, era um garoto transexual.

Franzi o cenho:

— Como assim?

— Ele nasceu uma menina, mas sempre se sentiu um menino. E Shelly, ele definitivamente era um cara. Homossexual? Sim, mas isso, diferente do que dizem, não o tornava menos másculo. Só que os pais dele não aceitavam isso e ele sofria muito preconceito, tanto em casa quanto na escola. Procurei defende-lo uma vez, mas ele me impediu. Disse que aquela guerra não era dele. Tentei entender o porquê disso, porém nunca consegui direito.

— Acho que ele pensava que você não podia tomar partido sendo tão privilegiado.

Jaden franziu o cenho ao olhar para mim:

— Perdão?

— Analisando vocês dois, você é privilegiado por ter nascido homem e por ser heterossexual. Ninguém bate em você por causa disso.

Ele pareceu surpreso e convencido ao concordar:

— Verdade. Enfim, Aaron sentia o preconceito contra ele de formas diferentes. Eu o conheci antes de usarmos drogas, éramos colegas de turma, depois amigos. O estado de espírito dele mudava da água para o vinho em questão de minutos e dava para notar isso, porque ele era muito espontâneo. Em um instante, ele ficava eufórico, entusiasmado; no outro, ficava dormente, cego e surdo para a sociedade, voltado para si; e então, podia ficar sensível demais para a dor, como se até respirar doesse. Falei muitas vezes para ele ir a um psicólogo, pois ele tinha algumas crises de pânico, e quase paguei um para ele, mas ele nunca me ouviu, sempre recusou. Procurei os pais dele, mas eles não se importaram e acharam que era mais um dos “desvios de caráter” do filho. Ele tinha boas razões para querer fugir da realidade.

— Ele começou primeiro?

— Sim. Ele gostava de maconha, sabia onde e como arranjar. Queria ter impedido, tê-lo apoiado mais para que ele enfrentasse aquilo tudo de frente, mas foi algo que veio depois, talvez eu não conseguisse mudar nada naquela época. E venhamos e convenhamos, eu queria também. Acompanhei ele pela rebeldia, pela experiência e pelo meio social. A trajetória é deduzível: experimentando uma aqui, outra ali. Eu sempre estava com ele, o via como meu irmão mais novo, por mais que ele fosse o mais velho. Queria fazer o que um amigo faz: dar suporte quando necessário, estar nas horas boas e más. Só que teve um problema: ele se apaixonou por mim.

Levei as mãos à boca:

— Ah, meu Deus.

Não levem a mal, é porque Jaden me parece muito hetero.

— Achei que por sermos só amigos isso não aconteceria, mas ele disse que era justamente o contrário.  Para ele, nossa amizade fez com ele me conhecesse melhor, com que ficássemos mais próximos, e isso fez com que ele gostasse de mim de verdade.

— Você correspondeu?

Jaden meneou a cabeça, como se lamentasse:

— Eu não gostava dele dessa forma, assim como nunca gostei de nenhum homem assim. Por mais que, biologicamente, ele fosse uma menina, ele era um menino, agia e falava como um. E eu não o via como uma menina se vestindo de cara, eu via um irmão no corpo errado. — suspirou brevemente e prosseguiu: — Sabe, admiro as pessoas que gostam do mesmo sexo ou dos dois.

— Por quê?

— Elas mostram outras formas de amor. — Olhei-o, curiosa, e ele explicou: — É como se fossem as diferentes formas de se tocar uma mesma música ou diferentes compositores que fazem, em essência, a mesma coisa: música. Como plantas diferentes que fazem o mesmo, só que da sua forma única e tudo fica em equilíbrio, não há mal nisso. Nem melhor, nem pior, apenas outros caminhos para um mesmo fim. — Ele parou de movimentar as mãos ao falar e desviou o olhar novamente, suspirando: — Eu só sei amar de um jeito e às vezes penso que se eu tivesse gostado dele do outro jeito, as coisas poderiam ter sido diferentes.

O tom de voz dele pareceu denso como um buraco negro.

— O que aconteceu? — perguntei.

— Quando falei que não o correspondia, Aaron pareceu desmoronar. Prometemos que continuaríamos amigos, mas ele sempre pareceu agressivo depois disso. — Ele parou, nervoso, e passou a mão pelos cabelos. — Eu deveria saber que ele realmente era frágil demais para esse mundo. Ele só queria ser, mas não permitiram. A família queria que ele se vestisse como uma garota, mas ele odiava aquilo, se sentia oprimido.

Aproximei-me e peguei suas mãos, procurando acalma-lo:

— Se você quiser parar...

— Está tudo bem, eu só nunca tinha contado isso para ninguém. — Jaden respirou fundo e continuou a história, olhando um ponto fixo, como se não estivesse ali: — Um dia, depois de uma bad trip horrível de LSD, ele quis algo que o deixasse mais relaxado que a maconha. Então, conseguiu heroína injetável e usou. Foi a única droga que não usamos em conjunto, porque eu não gostava de ver como ele ficava sob o efeito dela. Era tenso, ele parecia morto. Um dia, ele insistiu que eu usasse e eu recusei com muita violência. Estava alto demais, acho que foi um dos dias em que mais usei cocaína na vida, foi logo depois de uma crise de abstinência. Empurrei-o, gritei com ele e acabei magoando-o. Ficamos em pontos diferentes do beco em que usávamos drogas e quando o efeito finalmente passou e fui atrás dele...

Jaden fez nova pausa e estralou os dedos, nervosamente, olhando para o céu. Por alguma razão desconhecida, o leque de possibilidades se abriu e pude ver uma cena dolorosa naquele momento: um Jaden mais novo achando Aaron jazido inerte em um chão lúgubre e imundo.

— Overdose? — sugeri.

Ele concordou com a cabeça, apertando os lábios e soltando o ar pela boca.

— Ele estava gelado —, revelou sem vocalizar a frase.

— Sinto muito —, sussurrei, mas não soube dizer se ele me ouviu. Seus olhos estavam em um ponto fixo do chão, como se ele estivesse vivendo tudo de novo.

— Eu simplesmente saí andando como um louco no meio da rua, sem rumo, sem querer ir para casa. Perdi a noção do tempo. Amanheceu e eu continuava a andar, sem conseguir fazer nada que não fosse isso. Depois me arrependi e tentei voltar para onde Aaron estava, mas me perdi, andava em um bairro que não conhecia, e estava me sentindo horrivelmente fraco. Não comi nem dormi nesse período, era verão em Sacramento e havia o efeito colateral da cocaína, de forma que não demorei para desmaiar no meio da rua.

Sua voz sumiu e afirmei:

— Jaden, não foi culpa sua.

— Eu sei, mas é difícil não pensar assim, especialmente quando se é mais jovem. Eu o deixei lá, Shelly, sozinho. Não pude sequer me despedir dele. Ele morreu depois de brigarmos e não nos desculparmos.

Segurei suas mãos novamente, com carinho:

— Tenho certeza de que ele te perdoaria.

— Não sei dizer. Os pais dele não o fizeram. Fui ao enterro de Aaron para ser desprezado por eles e reagir agressivamente. De qualquer forma, me internaram em uma clínica de reabilitação depois disso.

Jaden suspirou, como se houvesse tirado um peso dos ombros.

— Deve ter sido muito difícil para você. — meus polegares deslizavam suavemente pelas costas das suas mãos.

— Bastante. Não era raro ter pesadelos com ele me culpando e ter acessos de raiva ou culpa. E ainda tinha a decepção que eu tinha gerado nos Pendlebury. Teria enlouquecido se eu não tivesse encontrado o violino.

— Como isso aconteceu?

— Em um dia que eu me sentia horrível, chegaram alguns instrumentistas: um tocava violoncelo, outro flauta e uma garota, o violino. Descobri que eles iam lá duas vezes por mês para tocar para os viciados. Quis aprender, aprendi algumas coisas com a garota, outras com aulas. Com meu interesse pelo violino, pude sair da clínica com quatro meses de internamento. Acharam-me um bom violinista e conseguiram uma vaga para mim na filarmônica de Sacramento.

— Você deve ter tocado muito para chegar nesse nível.

— Eu só fazia isso. Eu tinha concluído a educação primária, mas havia saído da clínica no meio do ano, então fiquei, durante mais da metade de um ano, sem ir para a escola e só tocando violino. Talvez eu tenha aprendido alguma coisa.

Dei um soco leve para animá-lo:

— Sua humildade incomoda, sabia? Jaden, você toca muito bem, sério. Por que não continuou a carreira musical?

Deu de ombros, espontâneo:

— Não quis. Sinto minha mente procurando outros conhecimentos. Não acredito na especificidade que a sociedade impõe, gosto de ter um conhecimento mais completo.

— Entendo perfeitamente. As pessoas se surpreendem com meus desenhos. Como se alguém que gosta de física não pudesse desenhar.

Jaden voltou-se para mim:

— Já falei demais sobre mim. Permita-me conhece-la, senhorita. — ele pediu em um sorriso amistoso e contagiante. — Quando começou a desenhar?

— Desde criança. Comecei e nunca parei. Era uma forma de pôr os sonhos em outro canto que não fosse a minha cabeça.

— Uma forma?

— Talvez a única.

— Teve algum sonho que você achou muito marcante?

— Talvez o de Mr. Zhou. Foi o último sonho simbólico que tive.

Ele inclinou a cabeça:

— Como assim?

— Bem, considero que tive dois tipos de sonho ao longo da vida: os simbólicos e os “cinematográficos”. Eu não sonhei com Mr. Zhou morrendo enforcada, sonhei com um galho de cerejeira morrendo. Ela era japonesa, então...

— Ela era o que sua?

— Vizinha.

— E os sonhos "cinematográficos"?

— São cenas. Algumas com rostos desfocados, ações desfocadas, mas cenas. É como se eu fosse um transeunte passando e vendo o que aconteceu ou um vídeo na minha frente, mas na maioria é como se eu estivesse e não estivesse ao mesmo tempo.

— Gata de Schrödinger aqui? — ele brincou. Sorri:

— Quem sabe? Acho que é por isso que entendo a lógica do gato tão bem. — Vê-lo aceitar aquilo como algo normal me surpreendeu: — Você acredita?

— Estou tentando. É desconfortável para você falar da sua… habilidade?

— Um pouco.

— Ok, então vou mudar o foco. Você disse que já fez regência. Por quê?

— Até hoje não sei. Gostei da experiência, mas foi algo tão do momento. Minha avó gostava de música clássica. Quando ela morou com a gente, ela ouvia muito, acabei gostando e quis saber como se regia, então acabei entrando nas aulas. Aconteceu algo semelhante com o hipismo, mas sempre gostei de cavalos.

— Tem algum motivo especial?

— Quando eu era pequena, vi na televisão um cavalo selvagem correndo. A liberdade que eles demonstravam... era linda. O vento fazendo a crina dele voar... Enfim, fiquei em êxtase e esse vídeo ficou um bom tempo na minha cabeça. Até que quis fazer hipismo. Adorei, foi incrível. Pude sentir a liberdade dos cavalos.

— Por que parou?

— A liberdade era falsa. Os cavalos não estavam soltos, estavam presos. Sentir a prisão deles era dolorido, então saí. — Jaden sorriu, como quem não entendesse. — O que foi?

— Você pensa demais.

— Talvez. Mas faz sentido, não? As pessoas prendem os animais em um círculo fechado e dizem que aquele é o habitat natural delas. Uma das maiores mentiras que já vi.

— Qual a maior mentira que você já viu no mundo?

— Ah, tem muitas. Inferno existe, as pessoas são livres, a sociedade é boa, a existência tem um sentido oculto e místico.

— Como assim? Não entendi esse último.

— Não existe um sentido único para o qual se deve seguir ou um mistério indesvendável. Existem mil e uma rotas para se fazer tudo diferente, tudo novo, algo bom para a natureza, para a humanidade. Cada um deve escolher o que seu eu interior pede. Não instinto de matar ou maldade, mas aquilo que sonhávamos quando éramos puros, entende? Aquela voz que sussurra no fundo, que lhe diz para onde ir, que diz para você ir para um canto e depois te manda fazer algo completamente diferente. Nada místico, está dentro de cada um. E vai por mim, o último lugar que essa voz pede para ir é para um maldito trabalho que lhe deixa infeliz. — Seu olhar estava estranhamente vidrado. — Ah, é por isso que eu não falo muito.

— Eu fiz alguma coisa?

— Eu penso demais e acabo viajando um pouco, isso acaba distraindo as pessoas.

— Não, não, eu prestei atenção, mas é só que… é muito poderoso o que você falou. É muito profundo. Me peguei pensando no que você afirmou. — ele se aproximou um pouco mais: — É incrível.

Jaden olhava para mim como quem olha algo pela primeira vez e se surpreende de uma forma boa. Pude sentir sua respiração próxima, o cheiro cítrico, familiar e acolhedor que ele emanava. Senti a ponta dos seus dedos tocarem o fim da minha mandíbula e deslizando de vez, como se sua mão houvesse desistido de algo. Por fim, tirou desajeitadamente uma mecha de cabelo que tinha voado no meu rosto devido ao vento. Depois, levantou-se:

— Vamos andando, desse jeito vamos perder a festa em Chinatown.

Ele se levantou e eu observei sua camisa verde-escura por debaixo do casaco preto, sua postura ereta, o sorriso que eu não via desde o fim do ano anterior. Sorri:

— Claro, vamos.

Saímos do Stanley Park e Jaden discorreu sobre algum assunto que eu não prestei atenção de verdade, pois não consegui não ver suas mãos se movendo ou seus olhos voltados para mim ou seu jeito de falar que sempre parecia que ele falava algo importante. Pegamos o ônibus e fomos para o bairro em que ele morava. Quando chegamos, Mr. Wang o esperava para lhe dar yakissoba.

— Não precisava, Mr. Wang. — ele agradeceu.

— Você come muito mal, tem que ter uma refeição decente uma vez na vida. — Seu tom de voz era bem incisivo e rabugento, mas vi boas intenções. — Tem o suficiente para vocês dois.

— Obrigada — sorri para o idoso.

— Ah, feliz ano novo — Mr. Wang entregou a Jaden um envelope vermelho.

— Obrigado, eu acho. — Ele andou um pouco e se surpreendeu ao abrir: — Vinte e quatro dólares?

— Não se acostume, é ano novo! — o mais velho gritou.

Jaden sorriu:

— Inusitado.

Entramos no apartamento dele. Tinha alguma ordem na desordem. Ele sentou-se na cama dele, eu em um banco, e ficamos observando as comemorações do ano novo chinês pela janela enquanto comíamos. Estava lindo.

— Shelly?

— Sim? — ergui as sobrancelhas, pondo macarrão na boca. Ele sorriu e pegou um guardanapo, limpando o meu queixo.

— Meu Deus, eu achei que fosse impossível se sujar comendo isso.

— Mas é a coisa mais fácil do mundo, tem muito molho! — exclamei e ele riu. Depois, fez uma pergunta complicada:

— Afinal, por que você recusou meu pedido naquele dia?

Mordi meu lábio inferior, suspirei:

— Minha habilidade. Eu não tinha coragem de falar sobre ela a ninguém. Experiência ruim com um psiquiatra.

— O que houve?

— Ele era um babaca. Disse que isso não existia e que ou eu estava inventando tudo ou que eu era...

— Louca?

Concordei com a cabeça.

— Mas sinto que não é loucura. Enfim, não vou entrar nesse assunto agora, não quero perturbar o fim desse dia maravilhoso, preciso ir. Está de noite, não quero chegar muito tarde em casa.

— Ah, claro. — Levantamo-nos e procuramos nos despedir: — Te vejo amanhã?

— Sim.

Nos abraçamos e soube que não queria ir embora, não podia ir embora. Seu abraço pareceu tão aconchegante diante da Vancouver fria que eu tinha que atravessar.

— Shelly? — ele chamou depois de aproximadamente um minuto.

— Hm.

— Você não tem que ir?

— Tenho — respondi ainda em seu abraço. Ouvi uma risada discreta:

— Você quer ir?

— Não.

Olhei para Jaden e soube que não iria embora. Uma doçura reconfortante invadiu meu coração, que batia com intensidade, quando encostei meus dedos em seu rosto.

— Foi só pela sua habilidade mesmo? — ele indagou em um sussurro.

— Foi.

Seus olhos me fitavam em apreciação, entorpecidos. Ele deslizou sua mão pelo meu rosto, segurou a minha nuca com suave firmeza e me beijou. Me senti arrepiada, com frio e calor ao mesmo tempo. Enfiei meus dedos por entre os seus cabelos, sentindo a maciez dele, seu cheiro, ouvindo sua respiração profunda. Nosso abraço ficou mais apertado e ele me acariciou, passando a mão pelos meus cabelos, detendo-se na minha cintura. Senti suas mãos quentes subirem pelas minhas costas por debaixo da blusa enquanto eu acariciava sua nuca e seus cabelos, deixando a minha mão escorregar suavemente em seu peitoral definido. Seus lábios deixaram os meus e fizeram um caminho ao meu pescoço. Senti sua respiração intensa e quente no meu ouvido e me senti viva, mas ele se afastou com sutileza e me olhou seriamente:

— Shelly, não brinque com os meus sentimentos.

Olhei-o, ainda inebriada pelo seu perfume e pelos seus braços ainda ao meu redor, porém eu sabia o que ele precisava ouvir:

— Jaden, eu estava confusa, preocupada e escondendo algo que eu sentia que não queria esconder de você. Desculpa.

— Pelo quê?

Sua testa colada a minha não estava facilitando e eu sentia os muros dentro de mim ruindo. Eu o queria. Gostava verdadeiramente dele, queria estar ao seu lado com aquele sentimento profundo que me invadia sempre que eu pensava nele.

— Por ter demorado tanto para te confirmar que eu quero estar com você, que eu quero namorar você, que me importo com você mais do que uma simples amiga o faria. Adoro seu sorriso, adoro acordar com você...

Jaden me beijou novamente, envolvendo-me em seu reconfortante e delicioso abraço, e nada mais precisou ser dito naquela noite.


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Notas finais do capítulo

JELLY o/
AMÉM, IGREJA!
Ok, parei.
Bem, o 44 está em processo de produção, sairá logo o/
Críticas, comentários, sugestões e comemorações abaixo vvvvvvvvvvvv
Até o próximo o/



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