Apenas uma garota... escrita por Luana Nascimento


Capítulo 34
Capítulo 33 - Inverno denso


Notas iniciais do capítulo

Olá, meus queridos :D
Mais um capítulo para vocês. Triste, como já advertido. Quando parar os capítulos tristes, eu aviso u.u
Espero que gostem :)



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/626534/chapter/34

Jaden

Acordei e, por um momento, me perguntei o que eu fazia na casa de Shelly, deitado no chão da sua sala. Então, veio tudo em minha cabeça: a morte dos meus pais adotivos, as cinzas flutuando no Arco da Paz, a briga com tia Riley. O peso de dois elefantes voltou às minhas costas.

Shelly dormia no sofá em uma posição minimamente estranha: as pernas no braço do sofá e para fora dele, assim como o braço direito, a barriga para cima. Surpreendentemente, ela roncava naquele dia, talvez pelo cansaço. Ter insônia deve ser uma merda. Se bem que dormir 4 horas não é algo bom também. Levantei-me e a olhei por um tempo. Não achei que fosse confortável para ela dormir no sofá, então fiz o teste para saber se ela realmente dormia: levantei seu braço e o deixei cair. É, ela estava apagada. Levantei-a e a levei para o seu quarto, deitando-a em sua cama. Poderia tê-la observado dormir, mas a minha cabeça estava muito cheia e fodida.

Feito isso, fui ao banheiro, tomei banho. Depois, me olhei no espelho e vi o quanto eu parecia estranho: o cabelo desarrumado, as olheiras aparentes pelas noites mal dormidas, o rosto meio pálido, o olhar meio ensandecido. Quis ficar deitado e olhando para o teto, mas uma agonia e uma ansiedade louca me fizeram sair direto para a academia de artes marciais. Eu precisava bater em alguma coisa. Olhei as horas: 06:07 a.m. Guardei as minhas roupas e saí.

Chegando lá, o segurança já havia aberto o prédio e nenhum professor havia chegado. Peguei uma chave com Noah, o vigia, entrei na sala reservada de boxe, onde havia um saco de areia pendurado, troquei de roupa, enfaixei meus dedos e comecei a socar o saco de areia.

Eu me sentia com tanta raiva. Raiva de carros, que eram invenções tão boas e tão mortais ao mesmo tempo, da chuva que deixava a pista escorregadia, do desgraçado que perdeu o controle do caminhão de gasolina, de Robert, que não freou o carro a tempo, de perder pessoas tão importantes tão de repente, de como nós, seres humanos, éramos frágeis e autodestrutivos. Raiva ardia como azia.

Meus punhos doíam e eram arranhados pelas tiras. Toda vez que eu socava o saco, um pouco de areia caía, a poeira subia e se juntava com o suor do meu corpo. Depois de algum tempo, não consegui mais sentir a dor nas minhas mãos, mas meus músculos ardiam, o abdômen parecia em chamas, as panturrilhas e os pés doídos. Senti-me masoquista ao não me incomodar com a dor, mas talvez a interna estivesse maior, o que não era necessariamente bom.

— Acho que você deveria estar em casa dormindo — ouvi Lex Luthor falar ao entrar na sala. Levei um susto, porém limitei-me a continuar batendo no saco. — Faz muito tempo que você está aqui?

— Não sei — respondi, arfante. Era verdade. Havia perdido completamente a noção do tempo.

Lex Luthor era um apelido, obviamente, para Alexander Richardson, meu treinador que sabia umas cinco artes marciais diferentes e que era praticamente um amigo. Ele era um cara legal, embora eu estivesse com a desconfiança crescente de que ele iria brigar comigo por eu estar treinando desde as 07:00 a.m.

— O vigia disse que você chegou às 06:50 a.m.

— Acho que foi isso. — supus, acertando uma sequência de golpes.

― Você tem ideia de que horas são? — pela sua voz, eu estava fodido.

― 08:00 a.m.? ― chutei, ainda concentrado.

― 11:14 a.m.

― Huh. ― foi minha resposta enquanto eu continuava a bater no saco.

― Jaden, chega. ― ele determinou, soltando o saco do suporte. Meus ouvidos doeram com o impacto do saco caindo no chão. — Seu treino acabou.

Parei, apoiando meus punhos nos joelhos. O suor escorria pelo meu corpo, da minha testa até a ponta do meu nariz. Senti minha regata branca colada no meu tórax.

— Não é como se eu conseguisse fazer algo melhor agora.

― Sinto muito pelos seus pais. ― o ouvi dizer.

Como eu disse, ele é amigo, ou seja, liguei para ele para dar a notícia.

― Ok. ― Comecei a ficar cansado de ouvir aquela frase. ― Acho que vou tomar banho agora.

― Quer almoçar comigo? Eu pago.

― Pode ser. — concordei, desenfaixando minha mão. — Você me espera?

― Tranquilo.

Fui ao vestiário, meio cambaleante. Lá, abri a torneira de água quente e fui diminuindo a temperatura até ficar agradável. Quis ficar ali o dia todo, contudo a água era finita e Lex me aguardava. Vesti-me, saí do vestiário.

― Parece pronto para arrumar uma garota. ― Lex brincou. Ergui uma sobrancelha:

― Como se eu quisesse fazer isso agora.

Saímos da academia.

― Você não me parece bem. — ele observou.

― Não se preocupe. Só falta de comida.

― Ah, o que estou pensando, é claro que você não está bem, você perdeu pessoas importantes.

Ouvir aquilo doía.

― Se você não se importa, acho que não vou almoçar.

― Ei, desculpe, ok? Não sei lidar com pessoas que perderam pessoas.

Não podia culpá-lo, nem eu sabia como lidar com aquilo direito.

― Tudo bem. Vamos comer.

Quando estávamos na porta de um restaurante, vi quem queria evitar: Tia Riley. Tentei entrar no restaurante, mas ela segurou meu braço.

― Jaden, temos que resolver como vamos fazer.

― Não temos nada a decidir. Eu já morava só antes dos meus pais morrerem.

Por que eu disse aquilo em voz alta? Doía mais ouvir.

― Você sabe que essa vinda a Vancouver foi loucura deles — ela argumentou.

― Não importa. Eu gostei da cidade. Não quero voltar para Sacramento.

― Você vai ficar longe da sua família...

― Você nem mesmo é minha tia!

― Jaden!

― Só me deixe viver minha vida. Já tenho quase dezoito anos. Me deixe em paz. ― Ela pareceu com raiva. ― Desculpe, Lex. Perdi o apetite. Vejo você depois.

Andei para algum lugar, sem rumo. O mundo continuava a acontecer e os meus pais, que faziam parte dele, não estavam mais lá, não ajudavam mais o mundo a acontecer. Ou talvez ajudavam, por mais estranho que fosse.

Fui para casa. Às vezes era difícil considerar meu apartamento um lar, mas era a minha casa, afinal. Bebi água, comi um resto de camarão frito que tinha na geladeira, resolvi tocar violino. A parte do meio do Outono e todo o Inverno de "Four Seasons", de Vivaldi, era apropriada para aquela situação. Afinal, parte do Outono trazia a melancolia e o inverno acontecia em Vancouver e na minha vida. A música me dava a impressão de vento, desespero e neve em seu primeiro momento para depois trazer algo que machucava sua alma lentamente. Meu telefone começou a tocar. Eu toquei o Inverno todo? Caramba. Era Dave:

— Diz, Dave — atendi o telefone.

Você está no seu apartamento? — ele perguntou. — Estou perto de Chinatown e pensei se você estaria afim de me receber no que você chama de apartamento.

Achei minha risada seca demais.

— É um apartamento. E você sabe que está revirado.

Claro que sei, é de praxe. Vamos conversar um pouco, pode ser?

Por que as pessoas acham que é necessário conversar depois de uma morte? Cacete, às vezes é bom o silêncio. Mas era Dave. Era difícil vê-lo.

— Pode ser. Me dê uns dez minutos.

Me dê uns vinte.

— Feito.

Desliguei e olhei para o violino feito de abeto e pintado de um marrom escuro. Era um fiel companheiro. Tentei deixar as coisas mais ou menos organizadas: lavei a louça, tentei deixar a cozinha em ordem, coloquei minhas roupas em uma prateleira.

Ouvi batidas na porta:

— Olá, Dave — cumprimentei.

— Oi, Jaden. — Afável como sempre.

— Entre.

Sentamos no chão mesmo.

— Esse é um violino foda.

— Claro que é. — quase sorri. — Você veio do clube de leitura?

— Sim. Vimos algumas obras clássicas. A Divina Comédia tem minha admiração eterna.

— Não sei como você consegue. — meneei a cabeça. — Tentei ler uma vez.

Ele pareceu estranhar.

— Por quê?

— Música e poema são muito próximos. Enfim. É difícil a leitura.

— Muito. — ele concordou. — Fazendo o quê?

— Toquei parte do outono e o inverno de Vivaldi.

— São bons movimentos.

Ergui as sobrancelhas:

— Você já ouviu?

— Poema e música são muito próximos.

— Essa frase é minha — reclamei.

— A ênfase foi diferente.

Rolei os olhos.

— Você é irritante de vez em quando.

— Ouço isso com frequência.

Ficamos alguns segundos em silêncio até que finalmente indaguei:

— O que faz aqui, Dave?

— Quis lhe fazer companhia. A morte é uma das situações da vida em que palavras são insuficientes. Acho isso uma merda porque palavras são as únicas coisas com as quais sou bom.

Parei para refletir. O cara mais distante dos Snakes estava no meu apartamento para me fazer companhia porque meus pais morreram e ele queria fazer algo por mim. Puta merda, que situação estranha.

— Que merda.

— Hã? — Dave ergueu o olhar.

— Só essa situação. — expliquei dando de ombros. — É uma merda.

— Por isso que gosto de palavrões. — ele sorriu com orgulho.

— Expressam mais do que outra palavra faria.

— Exato.

— Você está afim de jogar sinuca? — ele perguntou.

— Não estou muito afim. Por enquanto, ficarei por aqui.

— Tocando sonata ao luar no violino?

— Complicado, porém possível.

— Puta merda... como vou tirar meu amigo da fossa sem parecer um filho da puta?

Tive que sorrir com essa.

— Você só entende que ele tem que ficar na fossa por um tempo, que é normal isso. Por mais que seja uma merda.

Dave ficou uns segundos em silêncio até que comentou:

— Vi algumas coisas da língua portuguesa e uma das palavras que me chamou a atenção foi...

Não entendi a palavra. Pareceu algo como "salt" alguma coisa.

— O quê?

Depois de alguma dificuldade minha e dele, consegui entender:

— "Saudade". É a palavra que expressa a falta de algo que você sente algum afeto, pode ser algum lugar, pessoa, animal, todavia é mais do que isso: pelo que entendi, também é a vontade, vez ou outra impossível, que você estivesse com aquilo que você gosta. É como se a palavra exprimisse a falta que a pessoa faz e a vontade de estar perto. Pode trazer angústia, melancolia, tristeza e alguns dizem que até um pouco de alegria. É um substantivo. Aqui temos o "miss", mas é um verbo. Temos "longing", mas pode conotar desejo entre uma relação romântica, assim como "yearning". Parece meio intraduzível, a própria palavra parece poesia. Acho que não posso retirar sua "saudade" de você.

Pensei sobre o que Dave acabara de me explicar.

— Por que eles fizeram uma palavra assim?

— Cada língua leva em consideração as necessidades dos seus falantes. Em português, por exemplo, não tem uma palavra equivalente a "worth".

— Eles têm "saudade". — refleti. — Não precisam disso se conseguiram expressar esse misto de sentimentos tão humanos em uma única palavra.

— Você quase falou como um linguista agora.

— Você realmente gosta dessa área. — comentei ao ver que ele não parecia frio ao falar sobre as línguas.

— É — ele sorriu. — Quer saber mais curiosidades sobre as línguas pelo mundo?

— Vá em frente, Dave.

Era bom ver pessoas falando sobre seus interesses. Ele discursou longamente sobre algumas palavras em diferentes línguas e foi uma boa solução para passar o tempo e não pensar muito sobre os meus problemas.

Quando Dave foi embora, pensei que não foi tão ruim quanto achei que seria. Meus amigos sempre me surpreendendo. Como comecei a ficar com a cabeça cheia de merda de novo, resolvi ir em algum canto com álcool. Isso iria resolver meus problemas? Nem fodendo, mas esse não era o tipo de problema que se resolvia fácil e rapidamente. Enquanto ele não era resolvido, eu tinha que fazer algo para descontar toda a gama de sentimentos contraditórios.

Não cheguei a ficar bêbado, no entanto, pensei em minha decadência e me senti patético, então voltei para casa e toquei violino. Minhas ações não fizeram muito sentido, mas a minha vida também não fazia. Depois de um tempo, Mr. Wang reclamou e não pude tocar violino no meu apartamento.

Então, eu disse foda-se para algumas coisas na vida, como a minha segurança, e toquei violino em uma rua mais afastada, onde pude ver alguns drogados. Fiquei feliz por estar com o meu violino. As ruas pareciam um reflexo de mim, onde só tinha o indesejado e, ao mesmo tempo, o vazio. Se estou falando da rua ou de mim, fica a seu critério.

Voltei para casa e fiquei olhando para o teto, onde vi alguns raios de sol entrarem pela janela. Quis ter madrugadas melhores. Eu já tive e teria, provavelmente, madrugadas melhores, mas enquanto aquela dor e negação não passasse, seria difícil.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Dramático demais? Não sei se drama continua sendo meu forte, mas enfim, impossível fazer essa parte da história sem drama.
E aí, como vocês estão? Espero que bem :)
Críticas, comentários, sugestões, desabafos e opiniões abaixo vvvvvvvvvvvvvv
Beijos e até o próximo o/



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Apenas uma garota..." morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.