Apenas uma garota... escrita por Luana Nascimento


Capítulo 33
Capítulo 32 - Um dia cinza


Notas iniciais do capítulo

AVISO: esses primeiros capítulos serão muito tristes, trevosos e dramáticos.
Olá, gente :)
Depois de muita luta, acabei esse capítulo.
Espero que gostem.



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Shelly

A insônia é vista por alguns como a falta de sono, mas não. A pessoa sente sono, mas dormir é impossível. Não consegui dormir nos dois últimos dias, mesmo com todo o sono e com toda a exaustão. A cena da morte dos pais de Jaden não saiu da minha cabeça. O fogo, a chuva, a morte...

Sacudi a cabeça e olhei-me no espelho: meu casaco preto por cima do vestido e as botas me deram ar meio sombrio. Era o dia da cremação dos Pendlebury e da entrega das cinzas. Provavelmente já haviam cremado os corpos. Eu preferi usar óculos escuros, mesmo que o sol estivesse muito bem oculto nas pesadas nuvens de fim de dezembro. Minhas olheiras apareciam bem escuras no meu rosto.

— Podemos ir, Shelly? — minha mãe me chamou.

— Sim.

— Está tudo bem com você? — ela perguntou, olhando-me atentamente.

— Claro, mãe. — Forcei um sorriso que foi falso. — Só estou triste por Jaden.

— Entendo. Mas um dia superamos isso, sabe? Quando o seu avô morreu...

Algum lapso me impediu de ouvir o resto do discurso da minha mãe, de forma que só concordei com a cabeça e a segui. Não dormir por dois dias tem suas desvantagens, se é que tem alguma vantagem nisso.

Melinda havia ido para casa no dia anterior, não sem me pedir para ligar para ela caso eu precisasse dizer alguma coisa. Conversei com ela a madrugada de Natal inteira e não tenho certeza se isso me ajudou.

Minha mãe e eu saímos de casa em direção à casa dos Pendlebury, onde encontramos Riley, Jaden, Mel, Ben, Dave, Clint e seus parentes.

— Podemos ir agora, acredito. — o pai de Ben opinou.

Distribuímo-nos nos carros disponíveis: Thomas levou Carol, Mel, Dave e minha mãe em seu BMW e os McCarthy levaram Ben, Clint, Jaden, Riley, Mr. Harrington e eu no seu Dodge Caravan.

Para o meu azar, sentei ao lado de Jaden. Não soube o que falar com ele. Temi começar a chorar caso tentasse dizer algo. De qualquer forma, não acho que obteria alguma resposta. Ele também usava óculos escuros e parecia distante ao ter a cabeça voltada para a janela. A culpa e o autoquestionamento começaram a me invadir como agulhas introduzidas no meu corpo.

De que me servia minha habilidade se eu não podia deixar as pessoas que eu gostava e respeitava vivas? Se eu não podia deixar as pessoas com as quais eu me importava felizes? Fui tão lenta, tão distraída, tão...

— Shelly, chegamos — Ben chamou a minha atenção. Notei que todos me olhavam, talvez pelas lágrimas passando pelos óculos escuros.

Concordei com a cabeça, saí do carro e aproveitei para passar as mãos geladas e trêmulas pelo meu rosto tentando me acalmar, em vão. Entramos no prédio e os funcionários já haviam separado duas urnas. Não precisei perguntar para saber o que era. As vozes pareceram abafadas quando vi o resultado da minha falha diante de mim. Eles jaziam mortos e cremados por eu ter sido distraída demais, por não me ater à minha habilidade, a mesma que eu não queria ter.

Senti como se a realidade não fosse real, como se fosse um sonho, algo que eu não vivia de verdade, como se fosse uma ilusão mostrada através de um caleidoscópio. Minha mãe apertou a minha mão levemente: hora de ir. Voltamos para os carros e fomos ao Arco da Paz, na fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá, entre o estado de Washington e a província da Colúmbia Britânica, onde liberaríamos as cinzas ao vento.

Nunca enjoei em carros, mas me senti enjoada em todo o percurso, embora não soubesse dizer se era a ansiedade, a falta de sono ou o fato dos Pendlebury terem morrido em um acidente de carro e isso deixou uma impressão ruim no meu inconsciente... as teorias eram muitas.

Por fim, depois de algum tempo, talvez uma hora, paramos no Arco da Paz. Depois de descermos do carro, fizemos um círculo abaixo do arco com as urnas no meio e ficamos em silêncio por um minuto. Não contrataram nenhum padre, afinal os Pendlebury não tinham religião. Minha mãe comentara comigo dizendo que minha avó diria que eles iriam para o inferno. Acho que o pensamento me deixou mais deprimida.

No fim do minuto, Jaden e Riley abriram as urnas e o vento logo as fez voar. Observar as cinzas flutuando no cinza das nuvens me fez pensar no quanto aquele dia estava cinza e embotado para mim.

"Não foi sua culpa" lembrei do que Mel me disse na madrugada de Natal ao vê-la do lado de Jaden, apertando sua mão em solidariedade. Era difícil acreditar. Olhei para o lado e vi Jaden olhando as cinzas com uma expressão triste e distante no rosto.

— Isso é injusto. — ele comentou comigo.

— Concordo — assenti em um sussurro. — Sinto muito.

— Só quero voltar para casa agora.

— Ok, garoto — Mr. Harrington concordou. — Você merece ir para casa depois de tudo isso.

Na mesma distribuição de pessoas, ocupamos os carros e Jaden sentou-se ao meu lado novamente. Senti uma enxaqueca chata dominar minha cabeça, provavelmente pela falta de noites dormidas. As pessoas conversavam, mas não captei muito.

— Você vai para a casa deles ou para a sua? — Clint perguntou a Jaden, que respondeu, meio desorientado:

— Não sei. Só vou saber quando chegar lá.

Chegamos à casa dos Pendlebury e foi uma facada ver o quanto ela ficava vazia sem Adele e Robert, mesmo com tanta gente na sala. Adele provavelmente faria biscoitos para as visitas enquanto Robert as receberia com o seu jeito afável. Talvez até pedissem para Jaden tocar violino...

— Jaden, vamos voltar para casa amanhã, tudo bem? — Riley informou a Jaden. O garoto olhou sem entender.

— Eu já estou em casa — ele respondeu com estranhamento.

— Não essa casa. Vamos voltar para Sacramento.

Fiquei tentando processar a informação quando a ouvi e quase não soube dizer se eu sonhava ou se aquilo era real.

— Por quê? — Jaden questionou após algum tempo em silêncio. — Não moro mais nessa casa, já aluguei meu próprio apartamento e já tenho meu emprego. Por que eu deveria voltar para lá?

— Não posso lhe deixar só aqui. — a mulher respondeu como se fosse óbvio. — Você só tem 17 anos. Precisa de algum adulto responsável por perto.

— Eu não vou voltar para Sacramento. — Jaden rebateu, firme. — Não vou deixar Vancouver.

— Jaden, seus pais provavelmente iriam querer isso...

— Eles não eram meus pais da mesma forma que você não é minha tia. Pelo menos biologicamente falando.

Os olhares sendo trocados foram inevitáveis.

— Jaden...

— Você nem me quer por perto. Você não foi a nenhum dos meus recitais e não apoiou meus pais quando eles quiseram me ajudar.

— Nós vamos para Sacramento e ponto final. — a mulher pareceu irritada pela primeira vez na conversa.

— Você não pode forçá-lo. — Eve McCarthy interveio.

— Ele é filho da minha irmã. Não posso deixá-lo aqui sozinho.

— Mas ele não está só — minha mãe retrucou. — Ele tem seus amigos e tem a mim, que não o deixarei só por nada.

— Eu não vou para Sacramento e não ficarei só, Riley. — Jaden se pronunciou.

— Mas...

— Eu sei o que você teme — queria que a minha voz não tivesse soado tão frágil. Pigarreei ao ver todos olhando para mim e continuei: — Sei o que você teme e não deixaremos que aconteça de novo.

Ela me olhou como se questionasse o que eu sabia.

— Vou pensar. — ela respondeu por fim. — Estou cansada.

— Compreensível. — Mrs. McCarthy entendeu. — Vamos para casa. Clint, Mr. Harrington, desejam carona?

— Não será incômodo para vocês?

— De jeito nenhum.

Sentei-me no sofá, cansada. O pessoal despediu-se e Mel aproximou-se de mim:

— Tente descansar.

— Vou tentar.

Thomas se aproximou de mim também:

— Podemos trocar algumas ideias, pequena coruja?

Concordei com a cabeça e saímos da casa. O céu noturno se apresentava parcialmente nublado. Parcialmente nublado... pareci uma garota do tempo agora.

— Você se importa em sentar na grama? — ele perguntou em um sorriso agradável.

— Não — sorri sentando-me ao seu lado, notando o quanto ele era natural em suas atitudes. — O que foi, Thomas?

— Sua energia está em desequilíbrio. Gostaria de saber se há algo errado com você.

Hesitei.

— Melinda disse algo para o senhor? — perguntei.

— Ah, não, ela é muito leal para isso, mas me pediu para ajudá-la. Tenho uma mensagem de Elizabeth.

Estremeci e o olhei sem saber se ficava confusa ou emocionada.

— Ela disse que seu sentimento de culpa a está afastando de você. — ele continuou, os seus olhos negros me encarando com seriedade. — Não sei o que houve, mas ela diz com insistência que não foi sua culpa.

Desviei o olhar, aquela sensação gelada percorrendo o meu corpo de novo.

— Eu os vi morrer e não pude fazer nada — comecei a tremer novamente, as lágrimas prestes a encher meus olhos de novo. — Tentei impedir, mas não consegui... eu...

— Shh, está tudo bem. — ele me abraçou. Abraçar Thomas era diferente. A calma me atingiu como uma lufada de vento. — O que você quer me dizer, jovem coruja?

Contei toda a minha sina para Thomas, que me ouviu pacientemente. Não contei sobre a relação entre Jaden e os Lancaster ou sobre a possibilidade envolvendo sua neta. Contei sobre Elizabeth, sobre Eve, sobre o suicídio de Ms. Zhou, sobre a visão dos Pendlebury e nesse ponto, as lágrimas foram inevitáveis.

— Tanto sofrimento para uma jovem... — ele comentou passando a mão pelo meu rosto, tirando algumas lágrimas do meu rosto. — Você tem uma energia densa que tem potencial para irradiar energias muito boas e para fazer coisas muito boas. Só precisa de equilíbrio.

— Como consigo esse equilíbrio? — perguntei antes que essa pergunta desesperasse minha cabeça.

— É diferente de pessoa para pessoa. Posso tentar lhe ajudar, mas isso é algo que você encontrará só.

Ficamos algum tempo olhando o pessoal conversando do lado de fora, mas logo desviei o olhar para o céu. Uma ou outra estrela aparecia no céu.

— Thomas, qual é a sua habilidade? — indaguei depois dessa pergunta finalmente ser criada na minha cabeça.

— Consigo ver a aura das pessoas e desenvolvi uma em que eu posso ver a alma dos mortos. — Olhei-o, tentando entender o que ele falou de maneira tão espontânea. — Por hora, vamos deixar essa conversa pausada. Você precisa descansar. Noites sem dormir podem desequilibrar sua aura.

— Mas... E Jaden?

Por um momento, o rosto de Thomas pareceu o céu: parcialmente nublado.

— Ele está enfrentando sua própria dor agora.

— Uma dor que não pude evitar.

— A morte é inevitável. Quando se consegue evitá-la, é porque não era para ser. — Thomas levantou-se da grama. — Preciso ir agora. Se precisar desabafar com alguém, me ligue — ele me deu um cartão com o seu número de telefone. — Não é sempre que poderei atender, mas...

— Obrigada, Tommy. — Abracei-o, sincera. Ele riu com o apelido que dei a ele.

— Até logo, jovem coruja.

Ele afastou-se. O restante do pessoal veio despedir-se de mim e depois partiram. Minha mãe e eu ficamos na porta da casa da esquina.

— Vamos, Shelly? — ela chamou.

— Claro, por que... — Ela me abraçou de repente. Fiquei alguns segundos naquele abraço até que perguntei: — O que foi, mãe?

— Deu vontade de lhe abraçar. Acho que lhe perder me rasgaria.

Estreitei-me mais em seu abraço. De repente, ouvi vozes alteradas vindas da casa dos Pendlebury. Minha mãe e eu nos entreolhamos e fomos para a porta.

— ... seu fingimento não duraria muito. — ouvi Jaden. — Você só quer me manter perto por mero capricho, não por se importar comigo.

— Eu me preocupo com você do meu jeito. — a voz de Riley me pareceu rude. — Você irá comigo, Jaden, não seja teimoso. Sem falar que não preciso ir a um dos seus malditos recitais para que você venha comigo, huh?

Ela falou mal das músicas e dos recitais?

— Eu não vou voltar para Sacramento e não vou dormir aqui. Para mim chega.

Minha mãe e eu nos afastamos da porta no momento em que Jaden saiu da casa. Sua expressão passou da raiva para a surpresa.

— Vocês?

— É. — minha mãe explicou. — Tivemos um momento mãe e filha na esquina e pudemos ouvir a discussão. Desculpe.

— Você vai para o seu apartamento, Jaden? — indaguei. Maldita voz fraca. Ele pareceu chateado:

— Minha tia pode ser intratável quando quer. Vou dormir lá. Não sei porque vim para cá.

— Durma na nossa casa hoje, Jaden. — minha mãe sugeriu. — Você deixou algumas roupas lá.

— Queria ir para casa. — ele refletiu.

— Vamos, querido, fique conosco hoje. — ela insistiu. — É horrível passar os primeiros dias só.

Ele suspirou, parecendo cansado demais para discutir.

— Tudo bem.

No meio do caminho, tive uma crise de asma. Jaden me colocou nas costas e minha mãe correu para achar meu nebulímetro.

— Sente-se melhor, meu amor? — minha mãe me perguntou quando finalmente consegui respirar.

— Sim, mãe. Ah, desculpa pelo susto, Jaden.

— Não é algo que se pode evitar sempre. — a sombra de um sorriso passou pelo seu rosto.

— Preciso de um banho — comentei. — Posso lhe acompanhar ao quarto de hóspedes.

— Pode ser — ele retrucou.

Acompanhei Jaden até o quarto de hóspedes.

— Podemos ver algum filme depois do banho. — sugeri.

— Não é má ideia — ele concordou.

Tomei banho, troquei de roupa, desci a escada, jantamos juntos. Depois, vimos Clube da Luta e minha mãe foi dormir logo que o filme acabou.

— Shelly, se acontecer a crise de novo, me chame, certo? — ela me pediu.

— Ok, mãe. — concordei. Jaden e eu ficamos a sós.

— Você se incomoda se conversarmos um pouco? — ele indagou.

— Não.

Ele se deitou no chão, perto do sofá grande onde eu estava deitada.

— Para ser sincero, não sei se isso é um sonho ou se é verdade. — ele começou seu desabafo. — Tudo está me parecendo tão surreal... Ver as cinzas voando foi estranho.

— Foi estranho para mim também. Ver as cinzas de pessoas que você convivia diariamente é horrível.

— Muito — ele concordou. A quietude da madrugada predominou por algum tempo até que juntei coragem:

— Não deixo de pensar que eu devia ter dito à sua mãe que você não se drogou quando a seringa sumiu. Ela me disse, sabe? Deveria ter limpado sua barra. Desculpe. — minha voz tremeu um pouco quando complementei: — E agora eles morreram acreditando que o filho deles se drogou de novo. Arrependo-me de não ter falado nada. Eles mereciam a verdade.

O silêncio reinou por um tempo que não soube dizer qual e não pude ver sua expressão, tanto porque estava escuro quanto porque eu olhava para o lugar que deveria ser o teto.

— Acontece. — ele comentou por fim. — Não queria tê-los perdido agora. Na verdade, queria que eles não pudessem morrer. Pais não deviam morrer.

— É, não deviam. — minha voz ficou embargada nesse ponto. — Sinto muito. Eu... entendo sua dor.

Silêncio mais uma vez. Esse me pareceu sofrido e angustiado, não sei se era porque eu estava assim ou se o clima estava assim.

— Devíamos dormir. — ele lembrou. Soltei uma risadinha fraca com a ideia:

— Se eu conseguir hoje... tem duas noites que não durmo.

— Sério? — senti surpresa na sua voz.

— Insônia. — foi a minha explicação.

— Você deveria tentar —, sugeriu.

— Não consigo. Estou tentando desde noite retrasada.

— Olhe para mim. — ele pediu. Apoiei-me melhor no sofá e fiz o que ele solicitou. Seus olhos realmente pareciam gelo no escuro. Quis ver um sorriso que não veria naquela noite. — Fique com a cabeça no meio do sofá. Posso passar meus dedos no seu cabelo. Costuma ser relaxante.

Pensei um pouco e optei por aceitar sua ajuda. Sua mão logo percorria meu couro cabeludo até o resto do cabelo em movimentos aleatórios. Aos poucos, o sono pesou nas minhas pálpebras e me senti relaxar. Acho que dormi sem perceber.


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Notas finais do capítulo

Pelamor, não peçam clima, os pais do cara morreram u.u
Queridos que acompanham e não comentam: sou uma pessoa legal, não mordo. Permitam que eu lhes conheça o/
Críticas, comentários, correções sugestões e desabafos abaixo vvvvvvvvvvvvvvvv
Até o próximo o/



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