Melancolia Líquida escrita por Laís


Capítulo 1
Ideias


Notas iniciais do capítulo

Esse é o primeiro *primeiríssimo* roteiro que eu escrevo na vida. Meu apoio foi o exemplar bem velhinho de Hamlet que eu tenho aqui.
Espero que eu tenha conseguido seguir a estrutura do texto.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/626075/chapter/1

Dissimular os próprios sentimentos, manter a expressão do rosto sob controle, fazer o que os outros fazem. Tudo reações instintivas.

1984, George Orwell.

Melancolia líquida

Personagens:

Bernardo, 35 anos. Farmacêutico.

Sofia, 28 anos. Colega de trabalho de Bernardo.

Lívia, 17 anos. Estudante prestes a ingressar na faculdade.

Carlos, 74 anos. Idoso residente do Asilo Bom Fim.

Beatriz, 38 anos. Assistente social.

Ato Primeiro

Cena I

As luzes são apagadas. Um holofote em uma das extremidades do palco ilumina o cenário caótico de um apartamento desorganizado. Bernardo está deitado em uma cama de solteiro localizada no canto da plataforma. Acende um cigarro e olha fixamente para cima.

BERNARDO – “Que bem faz a um homem se ele ganha o mundo inteiro, mas sofre a perda de sua própria alma?” Foi John Fante que escreveu isso? Não consigo me lembrar. “Viver já era duro. Morrer era uma tarefa suprema.” Essa eu tenho certeza que foi ele. Que diabos, nem gostei do livro. Superficial. Insalubre. Opaco. Há quanto tempo um livro não me arrebata? Tudo parece oco. Talvez a culpa não seja da obra. Talvez o problema seja o leitor. O problema é sempre o leitor.

(Levanta-se da cama e se posta à frente de uma estante de livros posicionada ao lado de uma poltrona. Percorre os dedos pelas lombadas gastas e suspira.).

BERNARDO – Eles parecem debochar de mim. Por fim, decidiram que não era sua obrigação colorir uma vida tão monocromática quanto a minha.

(Ainda fumando, encolhe-se na poltrona.).

BERNARDO – É tão estranho. Lá fora, tantos ruídos, tantas pessoas. Tanta gente tendo o pior dia de suas vidas. Tanta gente feliz. É uma situação horrível quando se está tão desesperado por um sentimento que se prefere tristeza ao invés de nada. Não aguento mais esse silêncio dentro de mim, é ensurdecedor. O tempo todo recordando que sou um homem vazio rodeado de coisas vazias em uma civilização condenada ao contentamento.

Cena II

As luzes que iluminavam a parte do tablado que continha o cenário de Bernardo são apagadas e uma ao centro é acesa. Lívia está sentada no chão, cercada por papéis. Abraça os joelhos e descansa a cabeça sobre um deles.

LÍVIA – Você chega a uma certa idade e tudo que sabem perguntar é o que você quer ser. Há um abismo gigantesco entre querer ser e realmente ser. A verdade é que gostaria de ser tantas coisas e, às vezes, imploro a qualquer entidade que esteja ouvindo: se eu pudesse, seria. Salvaria o mundo, se ele precisasse ser salvo. Contudo, a realidade é tão limitada. Encaro a perspectiva do futuro e é sufocante. Você pode não saber o que acontecerá, mas sabe exatamente o que não acontecerá. Não há dinheiro, não há tempo. Preciso ir para uma faculdade conveniente, trabalhar em algo lucrativo e morrer como alguém que conquistou o que queria. É desolador. Os filmes e livros nos dizem “carpe diem”, viva como se fosse seu último dia. Alguém me explica como se faz isso? Deixa-se de ir ao trabalho para viver? Ganha uma demissão e passa os próximos meses batalhando por um emprego? Carpe diem! Deixa-se o grande projeto da escola ou faculdade de lado para viver a vida? Carpe diem! Ou melhor: estude, trabalhe, passe alguns anos de infelicidade e depois, se você não morrer antes, carpe diem. É tão vazio, não é?

Cena III

Asilo Bom Fim

Desliga-se a luz que ilumina Lívia e uma no extremo oposto é acesa. Um senhor aparece sentado em uma cadeira de rodas. Ele olha fixamente para suas mãos.

CARLOS – Engraçado, não? Um dia essas mãos não tiveram rugas e eu já nem me lembro mais como eram antes. Que diferença faz? Todos nascemos mortos, com um prazo de validade, isso é fato. Porém, morremos mesmo no instante em que aquele lampejo de sonho dentro de nós é extinto. Quando criança, eu queria salvar o mundo. Ser um super-herói. Belo final, hein? Inválido, repleto de dores. Mas o pior... O pior... É quando suas memórias vão sendo tiradas de você. Sua aparência muda a cada ano. Ela não é você. Sua essência pode mudar também. Logo... O que somos? Lembranças. Quando as perdemos, nos perdemos. Vivi mais do que deveria. Disse adeus a tantas, tantas, tantas coisas... Há algo que fica zumbido em meu ouvido, um silêncio imensurável e enlouquecedor. Falta a voz dela. Aquela que me deixou há 20 anos. O resto, sem ela, é silêncio.

Ato Segundo

Cena I

Uma mesa repleta de amostras químicas no centro do tablado, onde antes era o quarto de Lívia. Bernardo, vestido com um jaleco, analisa algo.

SOFIA: No que você está trabalhando?

BERNARDO: Já terminei.

(Ergue uma ampola repleta de pílulas no seu interior)

BERNARDO: Melancolia Líquida.

SOFIA: Do que você está falando?

BERNARDO: Você sabe o Soma que é distribuído para todo mundo?

SOFIA: Sim, é claro.

BERNARDO: Eu descobri todos os seus elementos e, a partir disso, criei sua versão reversa.

SOFIA: Por que você faria isso? O Soma é o que deixa todas as pessoas felizes, foi por isso que o Governo o criou. E, se essa é a sua antítese, significa que causa tristeza. Por que alguém desejaria isso, Bernardo?

BERNARDO: O Soma não alegra, ele amortece. Mantém em controle hormônios e outras reações químicas dentro da gente. Não estamos felizes, você não vê? Estamos vazios! Melancolia Líquida não causa tristeza alguma, ele simplesmente faz com que essas reações químicas ocorram, faz com que... Sejamos humanos.

SOFIA: Mas isso é traição! Se o Governo descobre que fez isso...

BERNARDO: Você é a única que sabe, por enquanto. Mas, Sofia, não percebe? Quando as pessoas tomarem isso, poderão pensar novamente! Não estarão sempre com uma falsa satisfação... O Governo droga as pessoas para que elas não revidem na luta!

SOFIA: Que luta, Bernardo? Não há luta alguma. Você não faz sentido!

BERNARDO: As pessoas são programadas para agir e pensar de uma única forma, a astúcia governamental é tão grande que eles encontraram um modo de fazer com que esses cidadãos oprimidos fiquem felizes com a repressão!

SOFIA: Deixa eu ver se entendi, seu plano é fazer as pessoas pensarem?

BERNARDO: Elas sentirão, depois irão pensar. Por fim, lutar.

CENA II

Asilo Bom Fim

Lívia está sentada em uma cadeira a frente do avô, eles começam a conversar.

LÍVIA: Gostaria que o senhor fosse para casa, vovô.

CARLOS: Que ideia absurda! Crianças e velhos não podem ficar com suas famílias, você sabe disso. É lei!

LÍVIA: Eu sei, mas...

CARLOS: Nem pense em falar isso em voz alta mais uma vez. As crianças precisam ser separadas dos seus pais para serem educadas pelo Governo e pessoas velhas são um peso morto. Por que alguém iria querer uma coisa dessas na própria casa?

LÍVIA: Desculpe, vovô. Não falarei disso de novo.

CARLOS: Faz muito bem. Já sabe o que vai ser?

(Lívia suspira).

LÍVIA: Recebi as revistas programáticas do Governo e uma assistente foi me visitar. As opções que eles separaram para mim são boas, mas...

CARLOS: Mas o que, menina? Escolha a que der mais dinheiro e faça!

LÍVIA: Não parece abusivo que eles tenham que escolher o que vamos estudar? E que depois disso já predeterminem onde vamos trabalhar? Eu só queria um espaço para pensar sobre o que eu realmente gostaria de fazer.

(Carlos estapeia a face da neta).

CARLOS: Menina ingrata! O Governo te educa, alimenta e te oferece três pílulas de Soma por dia! Ainda quer contestar? Eles dão meia pílula de Soma aos velhos, não vale mais a pena gastar conosco. Sabe o que eu faria para ter três doses por dia? E você ainda fica reclamando... Querendo escolher... Deveriam mandar você para um dos centros reeducativos, lá você aprenderia de verdade o que é ser uma boa cidadã.

(Lívia abaixa a cabeça, despede-se do avô e vai embora do asilo, sentindo-se mais sozinha do que nunca).

Ato Terceiro

CENA I

Apartamento de Bernardo. Ele está deitado na cama, escrevendo em um caderno. Alguém derruba violentamente a porta e soldados adentram o espaço. Bernardo tenta esconder o caderno.

SOLDADO 1: Nem se dê o trabalho. Vimos que você estava escrevendo. O que por si só já é um crime absurdo. Escrever aquilo que não lhe é solicitado. Por acaso a ordem de algum superior lhe mandou escrever?

BERNARDO: Eu não estava...

SOLDADO 2: Eles sempre tentam mentir, como se fôssemos cegos.

SOLDADO 1: Escrever é o menor dos seus problemas. Olhe a quantidade de livros aqui!

BERNARDO: São todos permitidos pelo Governo! Nenhum título ilegal!

SOLDADO 1: Bom, eu não acredito muito nisso. Há muitos livros aqui e, como todos sabemos, nossa amada pátria só permite três. A História Contada pelo Governador, As Origens do Soma e Como Estar Sempre Feliz.

BERNARDO: São vários exemplares! Sou um cidadão muito apaixonado pelo...

SOLDADO 3: As capas são dos livros do Governo, mas o conteúdo é diferente. Quem escreveu esse tal de 1984?

SOLDADO 1: O que você disse? 1984? Isso é pior do que eu pensava.

SOLDADO 2: Ter esse livro é considerado alta traição. Lê-lo... Você leu esse livro?

BERNARDO: Não! Eu juro! Não li, não sei do que se trata! Eu juro!

SOLDADO 1: Decidiremos isso depois. Me entregue as pílulas.

BERNARDO: Eu não sei do que você está falando.

(Soldado 2 e 3 erguem Bernardo da cama e começam a desferir vários golpes. Minutos depois, Bernardo está arquejando ao chão).

SOLDADO 1: Vou pedir mais uma vez... Onde estão as pílulas?

BERNARDO: Atrás dos livros na estante.

SOLDADO 1: Bom garoto. Sua namorada vai ficar orgulhosa. Ela estava muito preocupada com você quando veio nos procurar. Queimem os livros, cadetes. Todos eles.

SOLDADO 2: Devemos levá-lo agora, senhor?

BERNARDO: Para onde vão me levar? Eu exijo saber!

SOLDADO 1: Não é óbvio?

BERNARDO: O Centro? Não, por favor.

SOLDADO 1: Você é um elemento hostil e a sociedade elimina tais elementos.

CENA II

Lívia está sentada na sala da assistente social. Beatriz fita a garota sem desviar o olhar.

LÍVIA: Acho que já sei qual das opções vou escolher.

BEATRIZ: Hum... Bom, querida, houve uma mudança nos planos. Você não vai poder ingressar em nenhuma escola de ensino superior.

LÍVIA: Por que não? Eu fiz tudo que me mandaram fazer!

BEATRIZ: O negócio é que, depois de alguma pesquisa, consideramos você um elemento hostil.

LÍVIA: Elemento hostil? Mas é assim que chamamos os traidores! Eu não fiz nada!

BEATRIZ: Sem dúvida nenhuma. Você não fez nada. Ainda. Mas você quer fazer, esse é o problema. Você quer ter uma atitude, uma voz. Não podemos permitir isso.

LÍVIA: Não! Não sei do que você está falando! Não quero nada disso, eu juro!

(Beatriz se recosta na cadeira e suspira)

BEATRIZ: Você tem tomado suas doses de Soma?

LÍVIA: Sim!

BEATRIZ: Não minta! Eu descobrirei se estiver mentindo.

LÍVIA: Talvez eu tenha esquecido alguns dias... Mas não foi de propósito!

BEATRIZ: Lívia, o Soma é vital na sua idade. Todos os hormônios e essa coragem adolescente são incontroláveis. Você precisa do Soma ou vai...

LÍVIA: Prometo que vou tomar todas as doses! Mas, por favor, não me manda para O Centro.

BEATRIZ: Eu gostaria de poder ajudar, de verdade. O problema é que, quando você pensa uma vez, nada vai tirar isso de você. Vai continuar tendo ideias. Não posso permitir isso.

LÍVIA: Mas eu não quero ideias! Juro! Não vou pensar, nunca mais!

BEATRIZ: Você precisa ser levada para O Centro, não é definitivo, eles vão ajudá-la.

LÍVIA: Mas as pessoas que vão para o centro não voltam. Elas nunca voltam.

BEATRIZ: Porque ainda estão em um processo longo que requer muita atenção e cuidado.

LÍVIA: Por favor...

BEATRIZ: Seus pais já concordaram com a remoção e seu avô disse para que cuidássemos de você. Faremos isso.

LÍVIA: Eles... Eles concordaram?

BEATRIZ: Mas é claro... Falamos aqui de um bem geral. Essa harmonia coletiva foi o que você ameaçou colocar em risco. O que é mais importante? A sua vida ou a vida de milhares? Não existe “eu”, Lívia. Somente nós. Você não pode pensar algo sem que todos pensem. Você não pode fazer algo sem que todos façam. Entende? Tal qual uma erva daninha, seus pensamentos poderiam ter repercussões inimagináveis.

LÍVIA: Eu sou só uma garota... Que diferença isso faz no panorama geral? Como uma pessoa pode mudar um sistema? Qual a importância de um único indivíduo? Você não vê que eu não sou uma ameaça?

BEATRIZ: Ah, você é. Tudo que é necessário para sacudir as estruturas de um castelo de concreto é uma ideia. Uma única ideia. Um único indivíduo tendo essa ideia. Só isso. Uma pessoa pode mudar tudo.

LÍVIA: Como eu faria isso? Sou só uma garota!

BEATRIZ: Da forma mais perigosa possível, mudando outras pessoas. Deixando um legado. A inspiração é algo perigoso. Você muda sua vida e, em seguida, têm-se uma cadeia de alterações.

LÍVIA: Nunca achei que eu pudesse fazer isso... Como? Nunca exteriorizei o que pensava.

BEATRIZ: Todas as decisões que tomamos dão um peteleco em uma peça de dominó, causando uma reação em cadeia. Coisas minúsculas no dia-a-dia... Você entra no táxi que outra pessoa queria pegar e o dia inteiro dessa pessoa muda. O tempo é alterado. Tudo por questões de segundos... Volte no tempo e perceba a cadeia que nos trouxe até aqui. Uma ideia muda tudo.

LÍVIA: Como você pode saber que outros não terão ideias também? Talvez as mesmas?

BEATRIZ: Acha que é a única? Todos que estão no Centro tiveram ideias. Você não será a última. Agora vou conduzi-la até seu destino. Garanto que essas seus pensamentos acabarão.

ATO QUARTO

Cena Final

Toda a mobília é retirada do tablado. Bernardo e Lívia aparecem em pé, lado a lado. Ao redor deles, outras pessoas. Todas elas com as mãos amarradas. Os soldados chegam, fuzis na mão.

BERNARDO: O que está acontecendo?

SOLDADO 1: Cala a boca!

LÍVIA: Deve haver algum erro, estamos aqui para sermos dirigidos ao Centro. Para a correção.

(Um dos soldados gargalha).

SOLDADO 1: Só há uma correção para o que existe dentro da cabeça das pessoas. Virem todos de costas.

(Todos os com as mãos atadas viram de costas. Muitos choram. Bernardo encara a dura realidade de ser somente um grão de areia e sente-se encurralado consigo mesmo. Sozinho.).

BERNARDO: Todos nós saímos de cena sozinhos.

(Lívia estava chorando. Funga e olha para o lado).

LÍVIA: O que você disse?

(Ela não ouve a resposta. As luzes se apagam. O barulho seguinte é ensurdecer e, depois, o silêncio.).

Com exceção dos poucos centímetros que cada um possuía dentro do crânio, ninguém tinha nada de seu.

1984, George Orwell.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Então, é isso. Espero que não tenha sido uma calamidade.
Até o próximo!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Melancolia Líquida" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.