Eu me sentia parte da família. Estávamos sentados sobre a mesa saboreando o almoço feito pela Cecília e sua “auxiliar de cozinha”, no entanto eu só fiz a sobremesa. Era disso que falávamos: sobre o quão deliciosa estava à comida, até o Jonas mudar de assunto:

— Está mesmo estudando música? – olhou para mim.

Arrisquei um olhar para a Cecília. Com a conversa que tivemos na cozinha, eu sentia que devia dizer sim a tradição, apesar de isso não ser bem o que eu queria. Interessante que até ontem a tradição para mim era apenas a tradição, o que virou minha vida de cabeça para baixo. A Cecília me fez pensar de outra forma: a partir da tradição, eu poderia ser a engenheira do meu destino.

Assenti, enfim olhando para ele.

— Ultimamente, tenho pensado em estudar música também. Não sei, acredito que deve ser bem melhor que estudar matemática. – fez cara de nojo.

— Matemática não é tão ruim! – rebati.

Jonas é só mais um de muitos que dormem na aula de matemática porque o conteúdo da disciplina é complicado. Flagrei isso muitas vezes e desde criança.

— Se não fosse, talvez você não tivesse substituído a engenharia pela música.

Ouvir aquelas palavras era uma facada no coração. Abaixei a cabeça e ouvi que o Jonas gritou de dor, não eu. Cecília havia chutado a perna dele. O Carlos riu baixinho enquanto o León parecia ignorar.

— Interessante – falou León pela primeira vez -, semana passada o Jonas disse que estudar música era quase insuportável e agora diz totalmente o contrário, porque será?

Eu sabia por quê. Jonas sempre me falara coisas que me agradassem para que eu pudesse dar chances a ele, mas perdeu as que não tinha quando falou que preferia estudar música que matemática – eu penso o contrário. Ponto para mim, menos um para ele.

Ergui a cabeça e vi que o Jonas ignorou o comentário de León e voltou a beliscar a comida que estava em seu prato. O almoço seguiu-se em silêncio.

+++

Francesca e Maxi estavam pensando besteiras sobre eu estar na casa do León desde cedo. “Veio visitar a sogra, Violetta?” ou “Qual foi a reação da sua mãe ao saber do seu namoro com a Vilu, León?”. Eu apenas ria, enquanto León entrava na brincadeira. Depois de muito tempo brincando, desviamos dos assuntos paralelos e focamos no trabalho.

— Bem, eu pensei na música Para Tu Amor— sugeriu Francesca.

— É um solo e somos um grupo – comentou León.

— E os instrumentos vão ser tocados sozinhos? – Maxi riu.

De fato, a letra indica um solo e precisa da música. Só indica, não necessariamente tem que ser.

— E se transformarmos em dueto? – dessa vez eu quem sugeri.

— Isso! Como somos dois meninos e duas meninas podemos escolher um casal para cantar e outro para tocar, já que a música não precisa de tantos instrumentos.

Olhei para León feliz por ter construído minha ideia.

— Em quem seria esse casal para cantar? – perguntou Francesca.

— Talvez o casal apaixonado não me perdoe por separá-los, mas eu gostaria que a Francesca fosse com o León. – opinou Maxi.

Em quem eu votaria? Não queria votar em mim e no León, pois entenderiam errado, nem nele com a Fran, mas são as únicas opções que restam.

— Eu também. – murmurei.

León olhou para os lados como se estivesse pensando em algo para falar.

— Nunca ouvimos a Vilu cantar, certo?

— Mas eu não quero cantar, certo? – rebati.

Ele bufou e mais uma vez pensou no que ia dizer:

— E se eu votar em você?

— Empata e então a Francesca ganha. – ri.

— A Fran não vai votar nela mesma!

— Quem disse que não? Essa daí pode ser mais convencida que a... – juro que ia falar Ludmila – Francesca.

Era uma guerra que ele havia declarado pensando que poderia ganhar, mas estava perdendo e era disso que eu mais ria. Quando finalmente percebeu que estava perdendo e não tinha mais o que dizer, se rendeu:

— Ok, eu voto na Francesca – fez cara feia.

Suspirei aliviada e a Fran arregalou os olhos.

— Com o Maxi – continuou, mas rindo.

Maxi sorriu malicioso para o León.

— Desde quando você quer ficar com a Fran, Maximiliano? – brinquei.

— Desde quando você e o León querem namorar, Vilu? – rebateu com cara de preguiça.

León arremessou uma almofada na cara do Maxi.

— Respeite a menina! É uma menina de família e jamais pensou em namorar.

Assenti rindo. Tomei o braço de León para olhar a hora no seu relógio, mas ele nem percebeu, pois estava muito ocupado discutindo com o Maxi. Dessa vez, ele estava ganhando.

Perdemos quase uma hora nessas discussões e nada do trabalho além da Fran ser a escolhida para cantar. Ainda que o León tivesse votado no Maxi, estou mais aliviada por não ter que cantar para a turma.

Abracei o León.

— Que foi? – ele beijou minha cabeça.

— Me protege desses loucos! – enterrei minha cabeça no peito dele.

Ele riu.

— Depois falam que não têm nada juntos. – alguém murmurou.

Olhei para os olhos de León, por um segundo percebi como eles brilhavam e vi o meu reflexo. Ele sorriu, fiz o mesmo, afastando-se aos poucos dele.

— Cala a boca, Maxi! – ordenei.

Ele me obedeceu. León começou a encará-lo com um olhar ameaçador e disse:

— Saia daqui seu anão de jardim! Eu e Vilu somos apenas bons amigos...

— Blá, blá, blá... Sempre a mesma desculpa! – falou com ar de riso.

— Beleza, tá certo! – León olhou para mim e mudaram de assunto.

Não tinha percebido quando o Jonas apareceu aqui na sala. Ele conversava com a Francesca sobre algo que eu não pude identificar, mas se o Jonas estiver flertando-a, serei a primeira a não apoiar. Minha amiga merece alguém melhor e o Jonas não a merece.

— Hey, o Jonas deu uma sugestão – falou a Fran, finalmente para nós todos. Suspirei aliviada por não ser uma tentativa de flerte do Jonas. Quando todos escutaram, continuou: - Um beijo! A música é romântica não é?

Revirei os olhos. Se a ideia for aceita, a Fran vai beijar o León – se ele for escolhido. Minha melhor amiga com o meu melhor amigo. Só de imaginar o meu estômago aparentava ter borboletas. De repente um mal estar se acumulava, não sentia mais minhas pernas e minha visão começou a escurecer.

+++

Abri os olhos devagar e reconheci o meu quarto na casa dos Vargas de certa. Os meus olhos, ainda que pesados, conseguiam ver a Cecília na porta e os meus ouvidos deduziam que ela conversava com alguém, mas não consegui identificar quem. Logo se despediu da pessoa e se aproximou de mim, perguntando-me se eu estava bem e eu assenti.

— Não quer dormir aqui esta noite? – fez uma pausa e continuou: - Você terá mais um tempinho para continuar o trabalho.

— Meus pais esperam que eu volte para casa hoje.

— Entendo – lamentou –, mas você pode vir aqui quando quiser. Decoramos seu quarto do jeito que preferir... Será necessário um novo closet?

Ri com a sua empolgação e balancei a cabeça em afirmação.

Mas eu sentia falta daqui, do meu quarto cor de rosa decorado quando eu tinha só 12 anos, das flores desenhadas na parede, de dormir tarde apenas observando se havia esperança nas estrelas, se é que a esperança é uma delas. Brilham, mas não iluminam. Estão longe, por isso não as alcançamos.

Minha guarda pertencia ao meu pai, como foi declarado pela justiça, mas quando ele precisava viajar eu vinha para cá, tanto que tenho o meu próprio quarto. Talvez eu sentisse que essa casa me deixa mais a vontade do que a que é minha de fato.

— Você soube que o León e Francesca apostaram sobre a sua altura? – perguntou rindo.

— Sério? Quem venceu? – ri.

— A Fran!

Respirei fundo. Já era esperado, pois o León sempre perde. Era estranho pensar que meus melhores amigos viviam apostando coisas em relação a mim e como a Francesca é a “negociante”, eu tenho medo do que ela poderá pedir para o León e, principalmente, do que apostará.

— E onde o León está? – perguntei, ele ainda não tinha vindo aqui.

— Está lá embaixo com a Ludmila,

— Ah – falei sem expressão.

Era horrível pensar que o León preferia ficar com a sua namorada que com sua melhor amiga, mas eu sabia que ele não é um insensível e egoísta. Com certeza, a Ludmila está prendendo-o com suas ordens ou talvez não porque acabei de vê-lo parado na porta olhando para mim.

— Estavam falando de mim? - perguntou com um sorriso.

— Não, filho convencido!

León fingiu espanto e levou a mão ao peito, mas logo desfez porque deve ter lembrado o verdadeiro motivo de estar aqui. Colocou a mão no bolso e veio até mim.

— Como você está? – perguntou preocupado.

— Acho que estou bem, obrigado.

— Só ficarei aliviado quando você disser que tem certeza.

Olhei para a Cecília que ria. Que filho teimoso ela tem.

— Eu estou bem León, por favor, não se preocupe mais! – garanti e ele assentiu.

— Bem, eu vou falar com o Carlos para te levar em casa, Violetta – falou a Cecília enquanto saia.

León me olhou decepcionado.

— Não vai ficar? – sua voz tinha tom de tristeza.

— Eu tenho que voltar para casa porque meus pais estão a minha espera.

— Nós ligamos para seu pai e avisamos. – insistiu.

— E deixa-lo mais preocupado? Não León! Eu já falei com a Cecília e ela disse que posso vir aqui quando eu quisesse. Quem sabe semana que vem?

Ele acariciou meu rosto, sorrindo.

— Eu te acompanho até em casa – sussurrou em meu ouvido.

Ri.

Eu não duvidava que León fosse o melhor amigo que há nesse mundo. Ele está sempre preocupado, sempre querendo ajudar... E me ajudou muito. Quero tê-lo eternamente ao meu lado, mesmo nos piores momentos, mesmo que não possamos mais confiar um no outro, mesmo que algo apareça contra nós dois. O caminho é longo e com muitos obstáculos, mas eu sei que nossa amizade pode muito bem ultrapassá-los.