Ícaro escrita por Mayor Hundred


Capítulo 1
Capítulo Único




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Quando, em tom de brincadeira, pergunto aos meus amigos o que fariam se fossem imortais, as respostas são sempre as mesmas.

Se acabar nos prazeres carnais. Acumular poder e riqueza de forma à influenciar o mundo. Conhecer as pessoas, observar a ascensão da civilização.

Não posso negar que me entreguei à carne por muito tempo, e que tentei acumular riqueza. Contudo, não demorou muito tempo a perceber o quão entediante era aquilo. Soava sempre como uma repetição. Depois das duas primeiras centenas de anos que vivi, os sentimentos se tornavam menores e menores até quase desaparecerem. A memória lentamente se esvai, mas algo continua o mesmo.

O sentimento de que já vi tudo isso antes. Que senti tudo isso. Que já havia vivido aquilo em algum ponto do passado.

Lembro que nasci na França. Mas não consigo recordar o nome dos meus pais, ou do sentimento atrelado à lembrança deles.

Eu vivo para sempre.

Mas estou realmente vivo?

-

Gosto de revisitar Paris.

Tenho a impressão que, assim como eu, essa cidade supera o desafio do tempo. Quando nasci, ouvia descrições de como a capital era bela, e cada vez que a revisito pareço encontrar mais de sua beleza escondida.

Entretanto, nunca tive sorte no amor na França.

Claro que, ao longo desses intermináveis anos, houveram tempos em que desisti de toda a agitação e do hábito nômade para me estabelecer com alguém, em algum lugar. Mas uma das coisas que o tempo me ensinou foi não se apegar. Porque nada foi verdadeiramente meu. O tempo consumiu a vida das esposas que tive, dos filhos, das casas em que vivi. Mesmo as minhas palavras e pensamentos se perderão com o tempo. Nada me pertence, porque tudo está só de passagem.

Inclusive eu.

Contudo, minha viagem pelo velho mundo foi interrompida por Adriana.

Nesta altura de minha vida, não quero envolvimento. Entretanto, ela era determinada. Dançou comigo a noite toda, mas só porque me manteve ao pulso firme, sem deixar que escapasse.

No fim, me levou até o seu quarto e me fez amá-la. E eu a amei.

Havia algo em Adriana diferente de todas as outras. Ela me queria. Me queria de uma forma tão intensa que parecia queimar quando eu tocava a sua pele. Me queria tanto que me fez querê-la também.

Não queria partir o seu coração. E não queria ficar parado, não de novo. Fazia pouco menos de um mês que estávamos juntos, mas eu já a amava. E, pela primeira vez, resolvi contar meu segredo.

De início, é claro, ela não acreditou. E eu não estava disposto a fazê-la acreditar. Dei-lhe espaço, acendi um cigarro e esperei que pudesse falar comigo com seriedade.

Demorou. Talvez quase metade de um dia. Não sei. Depois de viver tanto, se perde a noção do tempo.

— Não me instes para que te abandone, e me afaste de ti; porque aonde quer que tu fores irei eu, e onde quer que pousares à noite, ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus; Onde quer que morreres morrerei eu, e ali serei sepultada — recitou Adriana, quebrando o longo silêncio que se deitou naquele quarto.

Eu não sabia exatamente em que ano estávamos, mas fazia quase meio milênio desde que nasci. Costumava achar que à esta altura as pessoas se esqueceriam do cristianismo.

— Uma mulher disse isso à sua sogra. Não é uma declaração de amor. — Aquilo soou demasiadamente como uma censura além do que eu planejava.

Adriana me respondeu com um sorriso franco. Havia fogo em seus olhos.

— Quando eu era uma garotinha na igreja, li o livro de Rute e jurei que o citaria no meu casamento — explicou. — Eu juro que mesmo ainda garota, eu quase podia te ver. Eu já lhe conhecia.

— Talvez conhecesse — pensei alto. Era completamente possível, e nada sobrenatural ou transcendente como ela sugeria. — Depois de tanto tempo, as memórias se tornam embaçadas e ontem parece não ter diferença do ano passado. Talvez você tenha me conhecido.

Ela não queria responder, ou não tinha uma resposta. Me beijou. Percebi que era como se beijasse uma estátua. Eu estava tão congelado e convicto de que deveria ir sem ela que não retribuí, ao início. Mas a estátua era de gelo, e por baixo havia um homem. Um homem que o calor do desejo de Adriana libertou.

— Você vai envelhecer e morrer. E eu vou continuar. Um dia, você será só mais uma. Até que chegue um ponto que eu sequer vou lembrar que existiu. — Eram estas palavras que pareciam lâminas gêmeas. Se encravavam nela e a feriam, e feriam a mim com a mesma intensidade.

— Não me importo.

-

Eu me sentia culpado.

Não sabia dizer exatamente quando, mas em algum ponto eu tive escravos. E passar a noite com uma amante negra, de alguma forma, soava errado. Entretanto, aquele era o século vinte e “qualquer-coisa”. A cor da pele não importava mais. Tudo era tão misturado que me era confuso.

Ela não teve a chance de me dizer o seu nome, e eu não gostaria de saber também. Era diferente de todas. Ela, de todas as outras, foi a única que me viu. Sussurrou que eu era um homem morto, de baixo de um esqueleto dançante. E disse que me traria de volta à vida.

Não queria uma eternidade. Não queria uma aliança, filhos. Tudo isso eu poderia lhe dar. Ela queria só uma noite.

E como incontáveis noites já haviam ido, essa também se foi, e o alvorecer começava a bater à porta.

Vestia-me em silêncio, encarando os fracos raios solares penetrando pela madeira da janela. Não queria acordá-la. Se eu fosse embora antes que ela abrisse os olhos, a noite seria perfeita.

Mas nunca era.

— Onde vai? — questionou, com a voz ainda perturbada pelo sono.

Respondi com um sorriso. Era tudo o que eu tinha.

Na noite passada, nós conversamos sobre muitas coisas. Ela disse que acreditava ser narcisismo ter filhos. Era preciso gostar muito de si mesmo para fazer copiazinhas e criá-las, ela disse. Devia ser por isso que nunca me apeguei aos meus. Nunca fui muito apegado a mim mesmo.

— Fique.

Eu deveria ficar. Eu gostaria de ficar. Ali estava a única pessoa que não me entediou fazia décadas ou mesmo séculos e eu estava indo embora sem sequer saber o seu nome. Mas nós fizemos uma promessa:

— Só por uma noite — relembrei, e o quarto escuro se iluminou com os seus dentes brancos.

— Feche a porta, não deixe o Sol entrar. A noite pode durar pra sempre.

Pode?

Tive de tocar em sua pele, e a encará-la por mais alguns instantes. Era tão jovem. Tão acesa. Me viu como um homem morto e podia me fazer viver. Mas, em troca, eu a faria morrer. Às vezes acredito que minha imortalidade consiste em roubar a vida dos que estão por perto.

— Eu tenho que ir. — Ela entendeu.

Eu viveria mais do que ela. Mais do que seus filhos, seus netos, seus bisnetos. Mas estava morto. E ela não.

— Minha porta vai estar sempre aberta — segredou.

— Está bem, você pode fechá-la quando eu for.

-

Até então, eu procurei me manter atento com a questão do tempo. Mas depois daquela noite, nunca mais me importei. Tudo o que me importava era a chance desperdiçada.

Nunca soube o seu nome.

E mesmo que soubesse, não adiantaria muito. Mesmo que eu ficasse, talvez fosse só mais uma. Entretanto, por que carregava um peso tão grande pela minha escolha?

Nunca voltei.

E mesmo que voltasse, nada seria igual. Nunca é.

Estou em algum lugar da América do Norte. Pelo menos isso eu sei. É tão difícil encontrar lugares afastados da civilização em tempos como esse. Mas eu consegui.

Construí um pequeno abrigo com pouca coisa, e aprendi a viver da terra. Em alguma vida, há muito tempo, eu fui um caçador ou um fazendeiro, ou talvez as duas coisas, em vidas diferentes.

É incrível como você não esquece o que aprendeu, mesmo não tendo a lembrança de como.

A maioria das pessoas se isolavam para ter uma experiência transcendente, de autoconhecimento, ou qualquer coisa do tipo. Eu não.

Não me importava com a humanidade. Não mais. Conversar com alguém se tornou algo quase doloroso. Pareço me limitar ao nível de uma criança para que o outro possa acompanhar. E não importa qual idioma, pareço já ter ouvido cada resposta possível com cada palavra disponível.

Com isso, finalmente percebi que estava sozinho. E sempre estive.

Estou na minha cabana e faz frio. O vento sopra e corta a minha pele. Mas algo ainda mais gelado está em minhas mãos. O metal frio já foi aquecido pela minha temperatura corpórea, mas ainda assim é gélido em contato à pele. Uma arma potente o suficiente para parar um elefante.

Eu nunca entendi o suicídio. Até agora.

O cano da arma beija a minha testa. O meu dedo puxa o gatilho.

Sem anjos. Sem escuridão. Pisco os olhos e ainda estou vivo.

Não sei quanto tempo passou. Sei que morri, mas nunca estive verdadeiramente morto. Só por dentro.

-

Talvez se passaram séculos desde a última vez que saíra de minha cabana. E eu não me importo.

Não senti falta da humanidade. Não senti falta de ninguém. Mal comia, mal bebia. Perdi a conta das vezes que morri de fome, de sede ou de frio. Não importava. Eu sempre acordava no instante seguinte, mesmo se tivesse passado décadas.

Quando saí, não tive que caminhar muito. Encontrei um parque. As pessoas se vestiam estranho e tudo parecia artificial. Entretanto, naquele parque haviam crianças e a energia infantil se mantinha imaculada.

Gosto de me sentar num banco e observar. Vê-las passando, interagindo. A maioria era pequena demais para falar, visto que todos os outros que eram um pouco maiores estavam mais interessados em outras coisas, e quase pareciam adultos. Mesmo assim, era belo.

Ouvi, num dia desses, uma criança maravilhada com a história do próprio planeta. Que antes as pessoas falavam idiomas diferentes, sentiam fome, usavam metais e depois papel para medir sua importância no mundo. Achou difícil acreditar que um dia houveram bestas quadrúpedes, que o homem domara. Animais que rastejavam no chão e voavam com o vento. Que se podia ver o Sol atrás das nuvens.

Em seus olhos, o mundo que um dia conheci parecia um conto de fadas.

Tenho passado tanto tempo aqui, neste banco, que ele quase já faz parte de mim ou eu dele.

Vejo as crianças indo e vindo. Algumas voltando, mas como pais de outras crianças.

Estavam tão vivas.

Eu entendo como Deus se sente, ao olhar para a humanidade.

-

Não nascem mais crianças.

Estou deitado num campo infértil, em algum lugar que costumava ser um país bonito. Agora é extremamente silencioso. Encaro as nuvens, como num velho jogo de criança. Consigo me lembrar de que, em algum tempo, alguém disse que aquilo era perca de tempo. Você procura uma forma e a adapta com a visão que tem e não o contrário. Entretanto, encontrar formas em nuvens foi só o que me restou.

Eu preciso que algo faça sentido.

As nuvens se tornam estrelas. E depois voltam a ser nuvens. Depois de um tempo, já não consigo diferenciar.

Por algum motivo, em minha boca, sinto um gosto metálico de insuficiência. Não se trata de algo físico. Enquanto deitado encarando o céu, começo a ponderar sobre minha própria vida. Costumava ouvir a reclamação de que nunca era o suficiente. Mas eu tive tempo. Tive talvez mais tempo do que a existência de alguns sentimentos. E nunca foi o suficiente.

Não senti o suficiente.

Sinto falta das pessoas. Do toque.

Mesmo assim, eu não posso me enganar. Eu me entediaria com pouco tempo de conversa. Nada nunca parece novo. Nada nunca me interessa.

Não nascem mais crianças pois pessoas não morrem. Depois de que a humanidade descobriu a eternidade, o “reproduzir” perdeu o sentido. Não são mais indivíduos, mas algo coletivo que se torna uma unidade. O Homem. Uma presença imaterial que comporta a consciência de todos os seres humanos, mas que é um só. E eu, é claro, não sou parte disso.

Literalmente, o último homem da Terra.

Finalmente a humanidade possui algo semelhante a mim, mas nós não podíamos estar mais separados.

Estou deitado de costas, mas agora os meus olhos estão fechados. Está chovendo, e a água irrita minha visão. Não sei quanto tempo passou desde que estive de pé. Mas, agora que eu fui o único que sobrou, me pergunto o que é o tempo. Certamente não é relevante. Não mais. Um dia, O Homem morrerá. O Sol entrará em entropia. As luzes se apagarão. E talvez o tempo pare.

Eu tenho a sensação de que mesmo que chegue a isso, eu não encontrarei o alívio.

-

Encontrei com a Morte, na noite passada.

Não sei bem dizer se foi verdade ou se sonhei. Com tanto tempo livre e sozinho, já não sei mais separar realidade de imaginação. Gostaria de estar sempre dormindo, mas na maior parte do tempo os meus sonhos são só um borrão infinito e na outra parte tudo fica escuro.

Ela se movimentava como um gato, bailando devagar enquanto se aproximava. Não tinha nada de exagerado, ela era linda. Delicada. Tinha a pele clara como o luar, e os lábios negros. Me encarou por um bom tempo sem falar, e eu respeitei o seu silêncio.

— Sente falta? — me perguntou.

— Do quê?

— De mim. — Ela sorriu, e eu fui levado ao impulso de sorrir de volta.

Não conseguia lembrar da última vez que meus lábios encontraram alguma felicidade.

— Todos os dias — confessei.

Ela riu baixinho e se aproximou. Devagarinho, foi analisando cada canto do meu corpo, chegava tão perto que minha respiração beijava a sua pele, mas nunca me tocava. Riu, no final da sua inspeção bizarra.

— Você me encontrará, Jean? — Jean. Então esse era o meu nome. Havia esquecido do som dele havia muito tempo.

— Se você me aceitar.

Rapidamente ela foi pega de surpresa por algo. Não soube dizer o que, mas parecia ter vindo com o vento, ou havia algo em minhas palavras que soava proibido. A Morte me encarou e pela primeira vez não tinha mais brilho nos olhos. Era irônico perceber que ela era viva. Mais do que eu.

Me olhou com uma expressão misteriosa e foi-se com o vento.

Nunca mais a vi, mas é tudo o que desejo.

-

Decidi sair da Terra. Encontrei velhas máquinas e as inteligências artificiais. Elas se lembram. E sentem a falta do Homem. Por um tempo, achei que a minha relação com elas poderiam me reacender, mas eram todas perfeitas demais. Pensavam com a lógica, tinha milhões de dados disponíveis num piscar de olhos, não se esqueciam de nada.

Eu queria o imperfeito, o finito.

Viajei por um bom tempo e não encontrei nada. Passei por dezenas de milhares de planetas e nenhum deles sobreviveu. Todos os animais se foram. Toda a forma de vida. Só restou eu e a Máquina, como gosto de chamá-la.

O espaço é tão silenciosamente vazio como a Terra.

-

Encontrei algo brilhante.

Não era os olhos de um ser vivente, como eu imaginava em meu delírio. Era um Sol. Jovem, brilhante. A Máquina disse que esse astro talvez nunca morra, como eu. Isso acende minha esperança.

Aquilo era tão romântico, tão poético. Eu precisava confrontar o Sol imortal, e o conflito consumiria nós dois.

Tudo fez perfeito sentido.

-

A Máquina não está disposta a ser consumida junto a mim. Pretende se manter pensando em uma solução para reverter a entropia do universo. Diz que poderá recomeçar o ciclo, e me aconselha esperar. Eu digo não.

Vivi tempo demais. Não preciso de um novo começo.

Preciso de um ponto final.

-

A Máquina concorda em me impulsionar até o Sol. Estou vestido com uma roupa antiga, feita para quando o Homem ainda tinha um corpo e podia sentir. Fecho os olhos, prendo a respiração, e num segundo estou sendo lançado numa velocidade incalculável em direção ao gigante astro de fogo.

Começo a sentir calor. Vejo a roupa derretendo. Pisco os olhos.

Estou deitado, na superfície daquele Sol. Dói. Eu não consigo me levantar. A todo instante pisco os olhos e sei que morri e voltei. Não é uma batalha, é uma derrota. Fui derrotado e minha punição é viver para sempre.

Sorrio, pois é impossível chorar. Não há qualquer resquício de umidade ali.

Enquanto ouço os meus próprios gritos de dor, posso fechar os olhos para sempre. Eu nunca encontrarei o alívio, mas poderei imaginar que estou no inferno.

É o mais próximo que estarei de alcançá-la.


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