O Garoto da Lua escrita por Ryskalla


Capítulo 4
Capítulo 4 - Moros




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Nada.

Nada. Nada.

Eu estava procurando há meses.

E ainda assim, sequer uma chama de esperança. Arkell não foi útil, ninguém era útil… Como uma existência poderia simplesmente desaparecer? Ela tinha que estar morta. Tinha. Como poderia viver durante meses isolada de qualquer contato humano? Nem mesmo as sereias ofereciam alguma pista.

E ainda havia a boneca.

Essa era outra que havia sumido.

Meu poder estava ficando mais fraco?

Contudo, isso não importava. Era apenas uma boneca. Provavelmente está no fundo do mar. Sim, sem motivos para me preocupar.

Conforme vou ficando sem respostas, posso sentir novamente a sensação desesperadora de não conseguir me controlar. A sanidade era algo muito frágil. Ao menos a minha.

Eu estava sozinho.

Eu estou sozinho.

E ainda assim, não quero encontrar ninguém.

Sozinho.

O estoque de comida estava acabando… Isso me preocupou. Eu estava com tanta fome. Como era comer? Quase havia me esquecido.

Mas havia ordens.

Eles foram espertos. Sim. Um grupo de religiosos fazia oferendas à Ilha.

E assim meu estoque novamente se encheu.

Não queria comer peixe, odeio peixe.

O que me lembra…

Minha mãe. Sim. Onde ela estava?

Lugar algum.

Morreu.

Morreu?

Sim.

Abracei meus joelhos e apreciei as palavras, sem conseguir lê-las de fato. Eu fui um livro.

Eu sou um livro.

O livro. Não posso permitir.

Minha mente está fugindo. E eu irei morrer se ela escapar. Como estava a vida dos outros?

Um grupo de crianças.

Crianças.

Adolescentes.

Qual era a diferença?

A idade.

Quantos anos eu tinha?

Gritei, não aguentava mais. Deixei que a vida daquelas crianças invadisse minha mente.

Eu não ficarei louco… Eu não sou louco.

Não era como se Nathan odiasse a Instituição. Não, realmente gostava do que aprendia nela. Havia virado monitor, então os pequenos bancos já não o incomodavam, mesmo que ficar em pé não fosse exatamente melhor. E estava cada vez mais próximo da fileira da frente. Logo o professor em pessoa passaria a matéria, e não outro monitor superior.

O problema eram os outros alunos.

Seu pai era um banqueiro. Fazia parte do pequeno grupo que havia prosperado mais do que a maioria após a coroação da rainha Analiese. E isso lhe rendia uma série de problemas. Ninguém odiava a rainha, é claro, mas odiavam os que viviam uma boa vida.

Nathan era um garoto ingênuo que se deixava levar pelas palavras do pai. Acreditava de todo coração que a vida de todos havia melhorado e que os pobres continuavam nesse estado devido a preguiça que sentiam. Nunca Anankes foi tão próspero e feliz. Ele podia observar essa falta de esforço na Instituição. Fazia o seu melhor para ensinar àqueles que tinham dificuldade, mas… nada poderia fazer por aqueles que não queriam aprender.

No fim, os outros jovens o consideravam terrivelmente esnobe.

E, obviamente, o invejavam por sempre ter comida em casa.

Ainda assim, o garoto era inacreditavelmente magro.

Nathan teria sido para sempre uma criança solitária se não fosse por Gisele.

E Otávio. Mas Nathan sabia que Otávio gostava mesmo era da companhia de Gisele.

O que era um problema. Ele também gostava.

Antes de Gisele, Otávio fazia parte do grupo de garotos que costumavam atormentá-lo. Conforme os anos iam passando, as brincadeiras ficavam cada vez mais violentas. Foi uma sorte Gisele estar lá para surrá-los.

Ele nunca viu uma garota com tanta força.

Otávio partilhava de seu espanto e foi devido a isso que abandonou seu bando e formou uma amizade duvidosa com Nathan.

Tal amizade rendeu uma ótima vantagem para Otávio, que conseguia entender melhor a matéria com a explicação do garoto. O monitor responsável pela sua fileira era aquele tipo infeliz de pessoa que não é levada a sério e Otávio simplesmente não conseguia prestar atenção em nada do que ele falava.

E aquele era o fim de mais um exaustivo dia na Instituição, Gisele só queria andar por aí e arrumar alguma encrenca, Otávio certamente a seguiria. Porém, sempre acabavam indo observar os pássaros, pois era o que mais fazia Nathan feliz. O garoto tinha um caderno repleto de desenhos, havia desenho dos amigos, também, contudo estes ficavam escondidos em seu quarto.

— Hey, Nathan… Quantos pássaros mais você vai desenhar? — Gisele o questionou, após alguns segundos em silêncio. O rapaz certamente seria um excelente pintor quando crescesse.

— Quantos eu puder… Quando ficar adulto, terei que cuidar do banco da família. Então não terei tempo para observar os pássaros. — informou, com a expressão cabisbaixa.

— Que história é essa? — Ele não entendia a razão, mas Gisele parecia exasperada.

— Achava que ele seria o quê, Gis? Ele é rico, vai herdar tudo do pai. Não que isso seja ruim, sabe, porque ele é rico.

— Meu pai vem falando bastante disso...diz que temos que servir a rainha Clara e que não poderei fazer isso desenhando pássaros. Ele está ficando velho. — Seu traço ia ficando mais pesado conforme sua raiva ia crescendo. Parou e respirou fundo, fechando o caderno. Quando chegasse em casa, rasgaria aquele desenho. Já possuía vários pardais em seu caderno.

— Quer dizer que não vai ser pintor? — uma nova pergunta carrancuda.

— Não posso — respondeu, transtornado por ela continuar com o assunto.

— Claro que pode. — Ela não iria desistir?

— Quer desistir desse assunto? — gritou.

— É, loirinha. Que tal desistir de proteger esse franguinho? — Ótimo. Era tudo o que precisava, o antigo bando de Otávio aparecendo para atormentá-los. Mas desta vez não estavam sozinhos. Nathan não conhecia os três rapazes mais velhos. — Otávio, ele paga bem? Ou é você que tá pagando?

O grupo começou a rir e a gesticular insinuações que Nathan preferia ignorar. Otávio, por outro lado, estava terrivelmente ofendido diante delas. Gisele já estava de pé, seus olhos azuis brilhando de expectativa. Era como se ela adorasse uma boa briga.

O problema eram os outros três.

Não haveria uma luta justa ali.

No entanto…

Não poderia ser.

Como ele estava ali?

Eu podia senti-la voltando.

A paranoia.

Quase havia me esquecido de mim mesmo… Era o único momento em que ficava em paz: quando observava o destino dos outros.

Eu era apenas olhos.

Não interferia.

Não existia.

Não pensava.

Mas agora ele estava lá.

Ele deveria estar morto.

Ou se afogando.

Aubrey.

Era fácil reconhecê-lo.

O que Aubrey estava pensando?

Aubrey não pensava.

Aubrey não tinha destino.

E eu não conseguia parar de observar o destino daqueles três jovens.

Houve uma briga, contudo Aubrey tinha vantagem. Ele sabia da movimentação dos adversários. O trio observava espantado.

Façam com que ele morra, pensei.

E bem que tentaram.

Por onde quer que o atacassem, Aubrey conseguia desviar. Ele parecia fraco e abatido, mas ele tinha uma faca. Isso fez com que os três rapazes desistissem, assim como o grupo responsável por atormentar Nathan, Otávio e Gisele… A morte deles não deveria ser agora, embora eu quisesse forçá-la.

Aubrey não os mataria.

Não podia reescrever o destino de ninguém naquele momento.

Eu me afastei do livro, gritando. Estava encolhido no chão, como uma criança.

Diga-me o meu destino, garoto da lua…

Mas eu não podia.

É claro que pode…

Não posso, não posso, não posso…

Eu estava sangrando.

Por quê?

Havia arranhado meu rosto.

Levantei.

O que eu deveria fazer para que o medo fosse embora?

Uma tempestade estava vindo…

Eu deveria fechar a janela.

Moros… Moros… Você não pode perder agora. Não deixe que ela faça isso com você.

Não vou perder. Minha sanidade permanece comigo.

Eu não sou louco.

O que você pode fazer a respeito?

Irei me acalmar. Enquanto livro me mantive calmo. Mesmo com a dor e o desespero. Eu estive calmo o suficiente para compreender que nem tudo estava fora do meu alcance. Era meu corpo e eu podia transformá-lo da forma que eu quisesse.

Eu tenho o controle do meu corpo.

Tenho controle da minha mente.

Eu só precisava respirar fundo.

E respirei.

Apenas isso. Respirei fundo e retornei para o livro. O que estava acontecendo agora? Gisele parece interessada em Aubrey. Sim, garota, precisamos descobrir mais…

Certas coisas podem ser mortais, por mais que você não dê nada por elas. Tesouras, por exemplo, eram as armas favoritas dela. Apenas uma pessoa em desespero usaria uma tesoura como arma. E lá estava ele: misterioso, magro, com olhos mortos. Ninguém o veria como ameaça. E a garota tinha certeza de que ele era um assassino.

Quem em sã consciência não iria confiar em um assassino?

Otávio e Nathan olharam emburrados para ela quando a jovem os abandonou para seguir o estranho. Sabia que a aparência dele não era agradável. Ele poderia facilmente ser confundido com um morador de rua por causa dos cabelos maltratados. As roupas tinham uma aparência nova, contudo eram estranhas. O clima em Anankes era quente demais para aquelas roupas.

— E ela agora vai ficar me seguindo? — Gisele o ouviu murmurar, por vezes tinha a impressão de que ele falava sozinho ou talvez sua voz fosse absurdamente baixa. Outra coisa incomum para o reino de Anankes… era um lugar tão barulhento que todos gritavam sem perceber. — Cecille, não tem graça.

— Meu nome é Gisele. — A jovem explicou. Cecille, de onde ele tirou aquele nome?

— Não perguntei seu nome… — O moreno parou e a observou longamente com seus olhos cansados. Sua pele tinha um aspecto engraçado… ela não saberia explicar ao certo o que era.

— Não estava falando comigo? — ela ergueu a sobrancelha e ele pareceu se incomodar.

— Eu falo sozinho — esclareceu e lhe deu as costas.

— Ninguém fala sozinho.

— Eu falo. — Pelo tom de sua voz, a garota percebeu que havia irritação.

— Onde você aprendeu a lutar daquele jeito? — Ele parou novamente, a expressão fechada como a tempestade que diziam se aproximar.

— Sua mãe não se preocupa com você? Vá pra casa. — O homem pareceu surpreso quando ela cruzou os braços.

— Minha mãe não tem preocupações. Qual seu nome? — Queria mudar de assunto, quanto menos falasse a respeito disso, melhor seria.

— Não vou falar meu nome. — E após alguns segundos, sua expressão mudou. — Por quê?

— Por que o quê? — Era confuso conversar com ele, talvez ele realmente falasse sozinho.

— Por que quer saber meu nome? — Agora fazia sentido, ao menos um pouco. Talvez ela que fosse confusa, afinal.

— Quero agradecer ao meu salvador. — Não era óbvio? E claro, ela estava curiosa, porém, ele não precisava saber disso.

— Aubrey… Meu nome é Aubrey. — Havia algo de estranho quando ele dizia o próprio nome… Talvez ele não gostasse dele. Gisele também odiava seu próprio nome. Odiava o motivo por ter esse nome. Ela era tão fraca.

— Obrigada, Aubrey. Por ter salvo a mim e aos meus amigos — estendeu a mão, no entanto, ele ignorou o gesto. Agora ele estava indo embora e, por mais que ela tenha pensado em seguí-lo, não o fez. Sabia que tornaria a encontrá-lo, cedo ou tarde. Um ímpeto incontrolável de descobrir mais sobre aquele estranho tomou conta de sua mente.

E, sendo dessa forma, não havia um momento do dia em que Gisele não pensasse em Aubrey.


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