Defeitos de Fábrica escrita por Lorena Luíza


Capítulo 6
VI. Você pode fazer tudo


Notas iniciais do capítulo

Capítulo grandão dessa vez! Preparem-se. XD



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❃ ✰ ❀

Naqueles tempos, parecia que tudo estava mesmo acontecendo da maneira mais contrária possível à que eu esperava: meu pai não acabou por ter um derrame quando apareci com o gatinho em casa, Angelina não ficou super entusiasmada com o fato de agora termos um bichinho e Sam, que sempre havia deixado claro que amava cães e até tinha um, mostrou-se encantado pela ideia de eu ter conseguido um animal de estimação para mim também mesmo sendo um gato (isso porque eu não mencionei o modo como o havia obtido, claro). O mundo estava mesmo meio de cabeça para baixo, mas tudo bem, porque assim ficava mais divertido e excitante esperar dia após dia o que viria pela frente.

Pareceu que Alex estava certo mesmo, pois foi apenas eu ter aparecido em casa com o gatinho nas mãos e contado o que havia acontecido que meu pai amoleceu completamente. Não sei nem porque eu nunca havia feito isso, já que conhecia o coração tão firme como prego na areia que ele tinha tão bem quanto qualquer outra pessoa. Sabia perfeitamente que, assim como eu, para ele bastava ver um bichinho com carinha triste para aquele homem enorme de mais de quarenta anos tornar-se a pessoa mais doce, infantil e bobinha na face da Terra.

Pode parecer exagero, mas nunca achei que existisse homem melhor do que o meu pai no mundo. Fico até meio envergonhada quando dizem que nós somos bastante parecidos! Tudo bem que há gente que diz que ele e eu somos meio só bobões demais para nossa idade, mas na minha visão a gentileza que meu pai e eu tentamos ter o tempo todo não se parece em nada com babaquice. Além disso, se é para dizer que nós compartilhamos dessas virtudes, não há nada que eu possa fazer além de ficar contente e agradecer, né?

Depois de perceber que a presença do gatinho em nossa família havia sido mais do que bem recebida pelo meu pai, faltava apenas uma pequena coisa: encontrar um bom nome para o bichinho. Eu nunca gostei muito de ficar na internet e jamais me dei bem com ela, já tendo pego vírus no computador umas cinco vezes só naquele ano, mas ainda assim fiz questão de procurar sugestões de nomes para gatinhos em alguns sites e cheguei a pegar algumas ideias bem legais e bonitinhas. Eu queria por Nicky, Diamond — esse parece algo que Sam daria como sugestão —, Nico ou simplesmente Pretinho. Já meu pai queria porque queria colocar Nescafé, Mickey — que sentido faz colocar o nome de um rato num gato, pai? —, Nestor ou Felix. Já a Angelina... Bom, a Angelina só sabia chamar o gatinho de "o filho da Liana".

Você pode achar isso estranho, mas eu vou contar exatamente o que a levou a começar a chamar o pobre do gato desse jeito. Acontece que, assim que colocou a pata na porta da minha casa, o bichinho cismou demais com a Angelina. Ele era meio parado, quietinho e aparentava até ser meio doente por estar sempre tremendo e encolhido, só que aí era só a Angelina passar perto que ele se transformava. Escalava as pernas e braços dela enquanto a garota estava sentada, desfiava suas blusas de lã para chamar a atenção e miava como se o mundo fosse acabar naquele mesmo dia e ele precisasse botar para fora toda a sua mágoa com a humanidade. Aí ela perdia a paciência, colocava o bichinho no chão e dizia sua marcante frase:

— Ah, vai lá com a tua mãe, me deixa em paz um pouquinho! — E depois berrava para mim: — Ô Liana! vem cuidar do teu filho aqui que ele não para de miar!

E foi assim que o gato ficou sem nenhuma das alternativas que eu e meu pai havíamos escolhido tão amorosamente. Para falar a verdade, eu até acho que Cláudio, meu papi-soberano, adorou a ideia de chamar o gatinho do mesmo jeito que a Angelina — afinal, se não tivesse gostado, por que a primeira coisa que ele fazia ao chegar em casa seria perguntar aonde e como estava o meu filhinho?

Não direi que eu me importava com o fato de fazerem essa brincadeira com o gatinho e eu, já que eu já gostava demais dele e para mim estava tudo bem chamá-lo assim. Sempre que eu olhava para os olhos grandes, amarelos e acuados dele, por algum motivo me lembrava do Alex e me perguntava como ele estaria se saindo com os irmãozinhos do meu filho. Isso não era preocupação, claro, pois já tendo cinco gatos em casa ele provavelmente estava se saindo perfeitamente bem para cuidar deles. Torci para que, diferentemente do meu bichinho, os que Alex estava cuidando não estivessem tão quietinhos e estranhos. Meu pai, que disse já ter tido um gatinho na infância, disse que o comportamento do Filhinho era bastante incomum e até mesmo começou a procurar um dia livre na agenda para o levarmos ao veterinário, coisa que me deixou um pouco preocupada. Meu refúgio era pensar que, assim como Alex, o gatinho era apenas quieto e difícil de interagir demais, apesar de ser normal.

Falando no baixinho mais pavio curto do mundo depois do Kevin, eu diria que depois do que havia acontecido naquele dia chuvoso as coisas acabaram mudando um pouco entre nós dois. Além de eu ter pego o número do telefone dele para caso acontecesse algum imprevisto com o filhinho e eu não conseguir resolvê-lo, às vezes ele até me mandava uma mensagem ou outra no Whatsapp (do modo mais sério, certinho, chato e sem emojis possível, mas ainda assim mandava). Claro que ele ainda vivia dizendo que eu era grudenta, meio burra e que não sabia deixá-lo em paz, mas já não me olhava com tanta ignorância e não fugia de mim sempre que eu me distraía. Só que havia algo que ele não me deixava fazer de jeito nenhum, diferentemente do Sam: mexer no cabelo dele. Isso era uma injustiça enorme, já que as pessoas que têm cabelos compridos servem justamente para serem boazinhas e deixarem as que não têm mexerem neles.
Para compensar a proibição no toque de cabelo, nós dois sempre ficávamos escutando música juntos, principalmente no intervalo ou educação física. Era divertido fazer aquilo, mesmo que eu nunca soubesse em que diabos de língua estavam as músicas que ele ouvia. Ora parecia inglês, ora japonês, ora árabe... Nunca tive coragem de perguntar diretamente, afinal qualquer coisa para ele era motivo de me chamar de idiota. Não que eu acreditasse nisso, eu sabia que no fundo ele me achava legal.

Às vezes, eu pegava Alex, sentado lá do outro lado da sala, me observando de rabo de olho com uma carinha indecifrável. Quando ele não desviava o olhar assim que eu percebia, eu ficava silenciosamente tentando fazer caretas para ele rir — o que, depois de um tempo, passou a não ser mais tão difícil assim. Não sei se o motivo de eu gostar tanto de fazê-lo rir era apenas o fato de eu ser a única pessoa capaz de fazer isso ou se, afinal, era porque ele ficava realmente com uma cara muito bonitinha quando dava risada — apesar de não ser nem de longe tão hilária e encantadora como a do Sam, claro!

Mencionando o Sol, nós não andávamos mais tão próximos devido à todo o esforço dele em juntar Kevin e Susana, mas por vezes nós parávamos para conversar e ele enfim me contava alguma coisa sobre como andava sua missãozinha de cupido. Segundo ele, o passeio a quatro no cinema não havia dado muito certo, pois Kevin havia dormido no meio do filme e ele, Susana e o André haviam resolvido rabiscar a cara dele com canetinha enquanto o pobre do garoto estava adormecido. Claro que isso não o deixou nem um pouco feliz e eu até reclamei com Sam por ter sido uma sacanagem enorme, mas no final ele apenas deu risada e disse que havia ideia da Susana, não dele. Aham... Conta outra, amigo, eu te conheço melhor que qualquer um.

Depois do que havia acontecido, Sam e Kevin ficaram alguns dias sem se falar, e por influência de Angelina, eu tive a cara de pau de chamar o mais velho para sair e fazer algo comigo num sábado. Não foi a primeira vez em que fiz isso, claro, e apesar de ele sempre sumir no dia combinado, eu sempre fui tão besta que nunca desisti de realmente tentar conseguir ter um encontro legal com ele. Angelina nunca havia escondido que achava que eu estava fazendo o maior papel de trouxa tentando conseguir algo com Sam já sabendo que ele não gostava de garotas, mas ainda assim sempre dava um jeito de me ajudar a tentar a sorte — afinal, ela tinha muito mais experiência com isso do que eu e provavelmente sabia muito bem do que estava falando.

Só para completar minha idiotice, novamente me aventurei na internet e fiquei lendo umas matérias meio toscas em sites de garotas sobre o que fazer e o que não fazer na frente de um cara. Apesar de ser tudo muito generalizado, bobinho e infantil, acabei lendo tudo do mesmo jeito, já que algo que nunca faço é recusar ajuda — por mais que ela diga algo irônico como "garotos detestam meninas-macho, então seja o mais delicada possível". Sacanagem comigo, não?

Na sexta-feira anterior ao dia do encontro, eu estava ansiosa demais para não contar à ninguém, então meu alvo fácil foi claramente o pobre do Alex. Eu sabia que ele não daria a mínima para aquilo e não ficaria com dez por cento do entusiasmo que eu tinha, mas por finalmente ter alguém além de Angelina para fofocar sobre Sam, resolvi contar também ao meu mais novo amigo sobre minha mais recém conquista.

— Quero saber o que é que eu tenho a ver com isso — Alex resmungou como um vovô rabugento assim que soltei minha notícia. Por mais que eu já esperasse esse tipo de reação, não direi que não fiz uma cara emburrada ao escutar o que ele havia dito. — Eu lá tenho cara de quem tá interessado na sua agenda?

— Não seja chato, eu só queria contar porque nós somos amigos — justifiquei-me. Adicionando um detalhe, falei cantarolando: — É que nós vamos passar a tarde juntos amanhã, então eu quis te contar!

Sorri encantada para ele, que agora tinha no rosto a mesma expressão séria e indecifrável de quando me olhava na aula.

— Ai, vai ser tão legal, eu mal posso esperar! — exclamei quase histérica, entrelaçando os dedos das minhas duas mãos. Se estivesse de pé e não sentada no banco do refeitório, com certeza teria dado uns pulinhos. — Se não ficar com vergonha, eu peço para ele tirar uma foto comigo e mostro pra você, certo?

Visivelmente entediado e sem o menor interesse no meu assunto, Alex deitou a cabeça sobre a mesa e ficou me olhando sem dizer nada. Era impressão minha ou as sobrancelhas dele eram naturalmente franzidas daquele jeito irritado?

— Pela sua cara, já imagino suas intenções sujas com esse cara — murmurou, sorrindo maldoso em seguida. — Sabe, Polliana, é tão fácil ler a expressão de gente depravada como você.

Não sabendo se era por vergonha ou indignação diante do que havia escutado, senti minhas bochechas pegando fogo e desviei irritada o olhar. Eu detestava ouvir coisas estúpidas assim, mas odiava trezentas vezes mais escutá-lo me chamar de Polliana. Vinha sendo assim desde que uma professora decidira nos chamar pelos nomes na chamada, e não pelos números da lista.

— É só Liana — corrigi. — E eu não sou depravada, só quero passear e passar um tempo com o meu amigo. Seria o mesmo se eu e você fôssemos sair, entende?

— Não seria — foi a vez de ele corrigir algo. — Eu não sou seu amigo, eu não sairia com você e você provavelmente não tem a intenção de me agarrar quando surgir a primeira oportunidade, então não é a mesma coisa.

Fiquei pretérita. Eu realmente deixava tão na cara que gostava do Sam? E opa, espera; aquele tonto do Alex ainda insistia em dizer que não era meu amigo?

— Ora, shh, você não está dizendo coisa com coisa — num misto de vergonha e irritação, reclamei de nariz erguido. — Minhas intenções com o Sam são o menos pervertidas possível, não vou me abalar com nada do que você disser. E olha! — Vendo que ele não poderia reagir no momento, estiquei-me sob a mesa para bagunçar os cabelos dele. Vitória!, daquela vez eu consegui. — Não importa se você quer ou não, nós somos amigos e ponto final! Chega de dizer que não, hein?

Alex fez uma cara feia e afastou a minha mão, mas logo deu um sorrisinho outra vez e riu, as maçãs do rosto se elevando docemente enquanto ele fazia isso.

— Vou pensar no seu caso.

— É bom mesmo! — Sorri. — Enfim, Alex... Eu queria te perguntar umas coisas. Você se importa?

Ele mudou um pouco a expressão, mas não pareceu surpreso ou preocupado. Apenas torceu os lábios e levantou a sobrancelha direita pela milésima vez no dia. Um pouco desconfortável, mas ainda assim curiosa, hesitei um pouco antes de realmente perguntar o que queria. O que eu havia lido no site da Capricho não havia sido o suficiente para tirar todas as minhas dúvidas, então talvez perguntar diretamente para um cara me ajudasse, não é?

— Digamos que você e uma garota vão sair juntos. O que você acharia estranho que ela... — comecei, mas logo senti algo como uma alfinetada e interrompi a mim mesma. — Espere. Ahn, me desculpe perguntar, mas você gosta de garotas, Alex?

Ele ficou com uma cara totalmente limpa naquela hora. Estava tão sério que eu até achei que havia dito algo errado, afinal existiam muitos garotos que se ofendiam profundamente quando escutavam uma pergunta como essa. Alexander podia ser um pouco diferente e não aparentar se ofender com coisa alguma, mas talvez no fundo ele fosse um cara como tantos outros que existem por aí e tivesse achado um absurdo o que eu havia perguntado. Eu, nervosa, já começava a pensar num modo de mudar de assunto para não irritá-lo quando, normalmente, ele me respondeu:

— Gosto de humanos. Humanos bonitos, preferencialmente. — Inexpressivo, coçou a bochecha e tamborilou os dedos nela, olhando para algum lugar do refeitório. — Já você, não. Você gosta do Sam. Você gosta daquilo. — Ele apontou Sam descabelando os cabelos do pobre Kevin e lhe pedindo desculpas num canto do local; o mais novo tinha uma cara totalmente impaciente e tentava a todo custo afastar o rapaz brincalhão de si, parecendo estar se controlando o máximo que podia para não estapeá-lo. — Aquilo definitivamente não é gente. Ele tá torturando o moleque, Polliana.

Fiquei mais surpresa com o que ele havia dito do Sam do que com a resposta principal. Eu não queria começar a defender o lado humano do garoto que eu gostava, então apenas fiquei quieta, afinal Alex sabia melhor do que qualquer um como me fazer querer iniciar uma discussão.

Então ele gostava de gente de sua mesma espécie, independentemente do sexo e diferentemente de Sam, que gostava apenas de garotos. Fiquei tão indiferente quanto ele diante da revelação, pois não sabia o que esperar, então logo prossegui com o que queria saber.

— Ah, sim — eu disse, ficando nervosa depois. — Me... Me diz como você gostaria que alguém aparecesse para você num encontro.

Ele me olhou desacreditando.

— Você tá querendo tirar informações minhas pra saber como agir com o Sam?

Tenho certeza de que corei à ponto de me parecer com um tomate maduro naquela hora.

— Não seja idiota. Eu não sou ele, não tenho como te responder isso. — Alex suspirou pacientemente. — E por sorte nunca serei. Só se eu incorporar um espírito bobo alegre e doente que fica olhando as cuecas dos outros, mas não cheguei nesse nível de mediunidade ainda e portanto não posso fazer nada por você.

— Mas Alex! — Franzi tristemente as minhas sobrancelhas. — Você é um cara! Tem que ter pelo menos algo em que você possa me dar uma dica!

Impaciente, ele franziu os lábios e passou a mão na testa.

— Não interessa, não é porque eu sou um cara que sou igual a ele — murmurou —, nem nunca vou ser. Ninguém vai, e nem é porque ele é o maior babaca que existe por aí; é porque ninguém é igual à ninguém, pronto, acabou. Agora para de veadagem e desiste desse encontro, seu crush tá lá agarrado no baixinho e não vai nem te dar bola quando se encontrarem.

Fazendo bico, cruzei os braços decepcionada. Por Alex ser meu único amigo além de Sam, eu esperava sua ajuda, mas agora que havia visto que ele estava certo sobre o que havia dito, não vi nenhuma saída além de rezar para que tudo desse certo no encontro — e também para que aquele tonto do Sam desgrudasse logo do Kevin, lógico! E aquela história de que ele queria apenas fazer Susana namorar com ele, hein? Aonde havia ido parar?

Mesmo já sabendo que ele estava certo no que havia dito, insisti em tentar fazer Alex dizer alguma coisa que me fosse útil no dia seguinte, mas ele podia mesmo ser um maldito e me ignorar muito bem quando queria — e quando não queria também. Só fui obrigada a desistir de continuar enchendo o saco dele quando nós fomos embora da escola.

A rotina de eu e Sam voltarmos para casa juntos havia simplesmente desaparecido desde o encontro dele com Kevin, e agora os dois voltavam juntos todo dia, às vezes também com o casal André e Susana. Com isso, eu e Alex passamos a voltar juntos diariamente. Apesar de eu gostar muito da companhia dele, Sam e eu já nos falávamos pouco o suficiente para eu sentir uma falta tremenda das nossas conversas triviais durante o curto caminho de volta para casa, então eu sempre ficava olhando de longe ele se afastando agora com Kevin e seus outros amigos. Alexander não gostava nem um pouco disso.

— Para de fazer essa cara de cachorro que caiu do caminhão de mudança — recebendo uma cotovelada, ouvi-o resmungar enquanto caminhávamos juntos. — Você parece que gosta de ser rejeitada.

— Fica quieto! — Sei que fiquei vermelha, devolvendo a cotovelada dele com a mesma força que ele havia usado. — Garoto chato!

Ele revidou o golpe e nós ficamos nos acotovelando patética e infantilmente no meio da calçada até Alex começar a rir do nada, encolhendo-se e me deixando continuar dando tapinhas fracos em seu ombro. Eu estava brava, mas acabei me deixando contagiar pela risada de criança dele e nós ficamos parados ali, em pleno sol de meio-dia e atrapalhando o circular das pessoas, rindo como dois abobados de algo que nem mesmo nós dois tínhamos conhecimento do que era.

Eu gostava de quando Alex começava a rir do nada, fosse da minha cara ou não. Por vê-lo desde o começo das aulas sempre parecendo bravo, cada sorrisinho, por mínimo que fosse, que eu conseguia arrancar dele me era quase um presente — afinal, ele era meu amigo e eu gostava de vê-lo parecendo estar bem, ainda mais se fosse por minha causa.

Nós caminhamos o que faltava para passarmos na frente do prédio aonde ele morava e eu recebi um beijo na bochecha antes de ir embora. Sam também me dava um beijinho todos os dias, mas estranhei o fato de Alex, que era tão carrancudo, ter feito aquilo. De qualquer modo, mesmo tendo me deixado surpresa, aquilo foi legal da parte dele. Mesmo que esse tipo de ato fosse comum entre amigos e bastante simpático, acho que nunca me acostumaria com aquilo.

O prédio onde ficava o apartamento de Alex era muito alto e estava sempre cheio de carros na rua logo à frente. Eu morava numa casa normal, então me perguntei se era bom morar talvez num andar bem alto e viver olhando o centro de Sorocaba lá de cima. Perguntei-me também com quem Alex morava. Eu já sabia que, diferentemente de Sam, ele tinha uma mãe e um irmão, mas será que como o meu outro amigo ele também morava com uma tia, prima ou qualquer outra pessoa da família?

Sam morava com uma tia e duas primas, uma quase da idade da Angelina e a outra bem pequenininha. Ele tinha uma mãe, mas não falava com ela havia muito tempo porque, alguns anos atrás, o namorado que ela havia arrumado não havia ido nem um pouco com a cara, personalidade e principalmente sexualidade do Sam — gente, como alguém podia não gostar dele? — e havia convencido a mulher a expulsá-lo de casa. Claro que havia mais uma montanha de problemas que haviam resultado nisso, mas Sam sempre procurava demonstrar o mínimo possível que ainda se importava com o que havia acontecido e não me contava muito sobre o que havia acontecido anos atrás. Eu achava os atos da mãe dele um total absurdo, claro, pois um filho vale mais que qualquer relacionamento, e o modo como meu pai se comportara quando se divorciou da mamãe havia sido a maior prova disso para mim.

Depois de me despedir de Alex, simplesmente fui para casa. Depois de fazer o de sempre e tentar brincar um pouco com o Filhinho, demorei para dormir. Estar apaixonada é algo estranho. Ao mesmo tempo em que chega a ser um aperto no coração ficar pensando na pessoa antes de dormir, sorrir para o teto enquanto pensa no rosto dela é algo tão bom que chega a ser até quase masoquista — já que, no meu caso, a probabilidade de algo entre Sam e eu surgir era menos de dez por cento.

Mas estava tudo bem. Eu já ficava contente só de poder tê-lo como meu amigo e ter tido a oportunidade de passar uma tarde com ele, então devia estar mais do que agradecida. Se nós nunca ficássemos juntos, tudo bem, mas se por bondade do destino algo a mais decidisse surgir entre nós dois... aí seria melhor ainda.

❃ ✰ ❀

Acho que, por paranoia, acabei aparecendo na praça aonde nos encontraríamos um pouco cedo demais. Eu estava nervosa e não queria chegar atrasada, mas admito que ter aparecido mais de meia hora antes do momento combinado, duas da tarde, tinha sido um pouco de exagero.

Eu havia me esforçado o máximo possível para não aparecer muito feia ou estranha, mas não cheguei à escutar os conselhos da Angelina, que provavelmente me enfiaria em alguma das suas roupas cheias de flores ou estampas de corujinhas. Depois de um bom tempo encarando o espelho, acabei saindo de casa com uma camiseta azul escura com capuz que eu adorava, jeans e tênis cinzentos e uma bolsa simples e preta atravessada no peito. Como não havia muito para fazer no cabelo, deixei-o como sempre estava.

Obviamente, Sam ainda não estava lá quando cheguei ao parque Kasato Maru. Eu gostava bastante dali, principalmente quando acontecia algum evento por perto ou coisas assim. Só de lembrar do nome do local, lembrei-me da cara de japa do Alex enquanto me sentava na grama e fiquei tentando lembrar o sobrenome dele. Não obtive o menor sucesso, afinal, como já disse, minha memória só presta para o que não importa.

Fiquei olhando umas crianças correndo para lá e para cá numa parte próxima e vendo qualquer coisa no celular enquanto esperava dar a hora combinada. Até a meia hora passar, vi crianças chafurdando a cara na terra e abrindo o berreiro, mães morrendo de vergonha e quase lhes descendo a chinelada, umas adolescentes andando de patins e uma senhorinha jogando migalhas de alguma coisa para o chão como se houvesse pombos ali. Provavelmente esquecera os óculos em casa.

Depois de algum tempo, olhei para o relógio do parque e vi que já eram duas e quinze.

Ele não havia aparecido ainda. Fiquei tranquila, afinal se havia algo em que Sam era bom, era em se atrasar. Continuei olhando as crianças correndo no parque e as meninas de patins refazerem o caminho pelo qual haviam acabado de passar enquanto a velhinha conversava com os pombos imaginários.

Duas e quarenta e cinco.

Procurando continuar com energia positiva, varri a preocupação da mente, mas ainda assim fiquei olhando para a rua ao redor do parque à procura de Sam. Eram apenas quarenta e cinco minutos... Quem sabe houvesse aparecido um imprevisto e ele tivesse ido resolvê-lo, não é?

Mas ele teria me enviado uma mensagem... Não é?

Vi a velhinha ir embora, as meninas dos patins sentarem-se sob uma árvore e as crianças pequenas jogando pedrinhas de cima da ponte. Reparei que, numa árvore não muito distante da minha, uma garota de roupas coloridas dormia de um jeito preguiçoso, com o traseiro virado para o meu lado e o cabelo castanho meio rebelde. Perguntei-me o que a fizera escolher um lugar tão esquisito para tirar uma soneca.

Três e vinte.

O céu já começava a ficar alaranjado. As crianças pequenas pareciam ter se cansado e agora só ficaram conversando debaixo de uma árvore. As meninas dos patins tiraram um pouco de sarro da outra que dormia sob a árvore e foram embora. A garota que dormia acordou finalmente, sentou-se e ficou lá sem fazer nada, eu olhando para ela e ela olhando para mim.

Dez para as quatro.

Já fazia duas horas que eu estava ali e Sam não aparecia de modo algum. Mesmo estando com o alarme de notificações ligado, eu olhava o celular de dez em dez segundos e já começava a ficar preocupada. Talvez houvesse acontecido alguma coisa. Não era a primeira vez que Sam simplesmente sumia em dias que marcávamos encontros, mas ele sempre mandava mensagem. Havia algo errado.

Mesmo eu tendo enviado umas mil mensagens a ele, Sam não respondeu sequer uma. Eu via que elas haviam alcançado o celular dele, mas ainda assim o rapaz não as havia visto. Ainda agoniada, não fui embora. Talvez ele aparecesse uma hora ou outra. Sam não era uma pessoa ruim, não me deixaria sozinha esperando-o de propósito.

Quatro e vinte e cinco.

A garota de cabelos castanhos levantou-se preguiçosamente de onde estava e abaixou com alguma dificuldade a saia rosa, amarela e azul pastel de tutu que usava. Achei que ela iria embora, mas terminando de abaixar o cabelo e a roupa, veio andando até aonde eu estava sentada.

Eu nunca havia visto alguém vestido de um jeito tão fofo como o dela, apesar de muito chamativo e provavelmente ímã de piadas maldosas. Usava uma camiseta delicada em rosa bebê com a estampa de um pônei, e sob a saia em camadas que já mencionei, meias listradas em branco e amarelo com um par de polainas rosa por cima. Seus tênis eram encantadores, com duas asinhas de cada lado dos pés, e ela tinha uma bolsa em forma de urso branco ao lado do quadril.

— Sua namorada não veio? — ela perguntou com um sorriso empolgado e encantador, colocando o cabelo de um corte chanel reto, curto e castanho atrás da orelha e se sentando ao meu lado. Seus lábios eram de boneca e o nariz bem pequeno, com grandes olhos verdes de cílios curvados. Ela era muito, mas muito bonitinha e não parecia passar dos quinze anos. Lembrava-me um Ursinho Carinhoso. — Nós dois estamos esperando a mesma coisa aqui faz tempo, né? Meu namorado também furou hoje. Vou meter a mão na cara dele quando encontrá-lo, sério.

Eu sorri em resposta, me surpreendendo com uma pessoa tão fofa como ela dizer algo tão violento como "vou meter a mão na cara dele". Não que isso a tenha feito ficar menos bonitinha, claro.

— Na verdade não — falei simpática. Já havia aprendido havia muito tempo que não devia esconder a identidade, então logo de cara já falei: — Eu sou uma garota. Não tenho uma namorada... Estava esperando o meu amigo.

Ela ergueu as sobrancelhas muito finas e soltou um "oh".

— Ah, eu não sabia, linda! — exclamou. Meus olhos passearam no colar de unicórnio que ela tinha enfeitando o pescoço. — Desculpa. Meu nome é Rebecca. E o seu?

— É Liana. — Sorri em resposta, encolhendo os ombros e me sentindo meio mal por ela ter um nome tão bonito enquanto eu havia sido castigada com o maldito "Polliana". — Sinto muito por seu namorado não ter vindo.

Rebecca ergueu uma sobrancelha e ajeitou-se no banco. Ela estava sentada de um jeito meio desleixado, com as pernas meio abertas e as costas curvadas. Fez uma cara emburrada e meio debochada quando escutou o que eu disse, apoiando o cotovelo no joelho e a mão no rosto.

— Namorado, pff — soltou um som meio vergonhoso, coçando a bochecha e resmungando uns palavrões que eu não identifiquei perfeitamente. — Eu não devia nem chamar aquele tonto assim. Sabe, eu não moro muito perto e vim vê-lo, ele simplesmente não apareceu! Nossa, Eliana, você não faz a menor ideia do tamanho do ódio que eu tô pegando desse garoto, menina...

Surpresa, eu não sabia se corrigia o modo como ela havia dito meu nome ou se tentava confortá-la pelo o que o "namorado" havia feito. Sem palavras, fiquei quieta. Quer dizer que ela se aproximava de alguém que não conhecia na praça e começava a contar toda sua trajetória de vida a ela? Aquela garota era biruta ou o quê?

— Nossa, que chato, né...? — eu finalmente disse. Ela ainda resmungava alguma coisa quando falei isso. — Me desculpe, mas vocês namoram pela internet?

— Ah, nem! Não sou trouxa! — Rebecca respondeu com uma naturalidade notável. — Ele morava lá também, faz um tempinho grande já que veio pra cá. Ele nunca foi de falar bastante comigo, mas agora piorou ainda mais! Eu devia é arrumar um bofe novo enquanto ele tá aqui, já que o babaca deve é ter encontrado alguém nessa cidade, por isso parou de me dar bola. Não que ele já tenha dado, claro. Ok, nós não somos namorados, mas a gente sempre ficou, então temos praticamente um relacionamento, entende, Eliana?

— Uh... acho que entendo sim. — Sorri, desconfortável com a situação dela. — É Liana o nome, Rebecca...

— Desculpe de novo, amor. É que eu não sou acostumada com o nome de gente do interior, entende? E me perdoe pelo desabafo, é que eu realmente tô achando uma filha da putagem o que ele tá fazendo comigo.

Quê? Nome de gente do interior?

— Olha, não sei, mas... — comecei.

— Ah, mas é assim que os rapazes são — Rebecca interrompeu. — Eles só olham para o próprio umbigo. Eu achei que o meu namorado fosse diferente, já que ele é bem bizarro e tem um jeito diferente que nem o meu, mas cheguei à conclusão de que é um cara como qualquer outro. Aí quando eu reclamo, ele diz que não me deve nada. Como não, Eliana, me explica? Como não?

Com um sorriso totalmente estático e sem graça, fiquei escutando o que ela tinha dizer sem achar modo nenhum para reagir. Parecido com ela? Perguntei-me se o namorado era colorido, fofo e meio agressivinho que nem ela. Só podia ser!

E, gente, aquela garota não tinha parafuso nenhum. Tudo bem que qualquer outra pessoa em seu lugar ficaria mesmo revoltada pelo quase-namorado tê-la deixado sozinha depois de tanto esforço, mas ficar me perguntando o motivo disso era meio confuso demais para meus miolos processarem.

— Mas se vocês não são namorados, você não acha que é um pouco demais exigir tanto dele? — tentei opinar, com medo de levar na cara aquela bolsinha de urso que ela usava atravessada no peito. — Bom, é... Eu não sei, não conheço vocês, mas...

— Não, amiga. A gente tá ficando desde que era criança, conheço o lek desde que ele batia na sua cintura — resmungou Rebecca. — Sério, sacanagem dele não ter pedido ainda para me namorar. Eu sou tão legal, nós somos perfeitos um para o outro. Ele até fazia chapinha e pintava meu cabelo. Mas aí, ele tinha que vir para cá e desde então eu ando por aí com esse, essa.... — Ela pegou uma mecha do cabelo e a olhou com repugnância. — Essa porra de black power!

Eu dei risada, mas não da desgraça dela, e sim porque o cabelo estava perfeitamente liso e o exagero dela em relação a ele havia sido imenso. Acho que eu nunca havia conhecido uma pessoa tão doidinha que nem ela. Emburrada, Rebecca resmungou algumas coisas sobre ter montado um look (foi isso o que ela disse?) especialmente para encontrá-lo e o cara não ter nem aparecido, até que parou do nada.

— Sua vez. — Ela ergueu uma sobrancelha, olhando para mim. — Vai, amiga. Bota para fora a raiva de teu crush por ele ter te largado aqui.

"Crush"? Eu não havia falado absolutamente nada sobre o Sam e ela já vinha dizendo que ele era minha paixão?

Gente, eu ando realmente por aí com uma cara tão evidente de babaca apaixonada?

— Ahn, na verdade, eu não estou brava por meu amigo ter se esquecido do nosso encontro... — murmurei olhando para meus joelhos. Em comparação às pernas da Rebecca, as minhas mais pareciam um par daqueles pauzinhos que os japoneses usam para comer (ironia eu dizer isso sentada no meio de uma praça em homenagem ao centenário da chegada dos japoneses ao Brasil, haha). — Tá tudo bem. Ele é meio esquecido, mesmo. Não tem problema, realmente não tem problema. Além disso, eu já não esperava que algo fosse dar certo comigo, então...

Mesmo tentando disfarçar, eu falei aquilo com um sorriso e um tom de voz tão instáveis que a Rebecca provavelmente percebeu que eu havia ficado meio magoada. Eu não esperava aquilo, mas ela simplesmente avançou em cima de mim e me deu um abraço estonteantemente apertado. Eu fiquei sem reação, parada como uma idiota enquanto ela me dava um beijo demorado na lateral da bochecha e bagunçava os meus cabelos.

Aquilo foi tão amável, tão doce da parte dela que eu realmente não tinha a menor ideia de como poderia reagir. Fiquei ali parada, com a saia fofa de tutu dela encostada na minha perna e os cabelos castanhos entrando na minha boca e olhos. Rebecca não me conhecia, mas ainda assim havia me dado uma demonstração tão bonitinha de carinho... Ela era mesmo doidinha ou havia gostado de mim?

Provavelmente era doida. Não, com certeza era.

— Fica assim não, Elianinha — ela errou meu nome de novo. — Nem sempre as coisas dão certo.

Sem ter o que dizer, apenas abaixei a cabeça. Eu não a conhecia. Nós não éramos amigas. Sabíamos apenas o nome uma da outra. Só que, depois da Angelina, eu já via e tinha certeza que ela seria a primeira amiga que eu fazia na minha vida inteira. E eu estava embasbacada por causa disso!

— Você arrasa, pode fazer tudo. Bota a cara no sol e brilha, amiga, acredite em si! — Rebecca me soltou e deu um sorriso enorme, radiante. Parecia mesmo uma boneca com aquelas roupas em cores pastel e cabelos curtinhos. — Tenho certeza de que ele gosta de você. Se não gostar, me chame, ok? Nós quebraremos a cara dele e perguntaremos depois!

Fiquei apenas rindo enquanto ela treinava uns soquinhos divertidos no ar. Engraçado, mesmo. Enquanto o ar dela era todo fofo, infantil e gracioso, Rebecca parecia um tipo muito engraçadinho de garota invocada e de pavio curto. Talvez se não tivesse "namorado", eu poderia apresentá-la ao Kevin.

Nós ficamos conversando qualquer bobagem até ficar um pouquinho tarde e eu precisar ir embora. Ela me deu um beijinho simpático na bochecha antes de nos despedirmos, e disse que, mesmo que precisasse voltar para casa uns dias depois, não esqueceria de mim. Eu sei que corei de vergonha ouvindo aquilo, pois nunca alguém além de Sam e meus familiares havia me dito algo tão gentil. Rebecca me deu o número do celular dela e disse que eu devia enviar uma mensagem para ela assim que pudesse, assim como quando alguém me perturbasse. No final das contas, eu já não estava mais tão magoada com o fato de Sam ter esquecido de mim, e quem sabe havia acabado de arrumar uma guarda-costas que mais parecia a Hello Kitty...

O fato de que eu havia acabado de fazer a minha primeira amiga e que já estava prestes a me separar dela ocupava bem mais do que deveria no meu coração, mas eu estava contente. Ela demonstrara se importar comigo, afinal.

❃ ✰ ❀

Você pode voar, você pode brilhar
Pode ser mais forte, pode ser mais brilhante
Você pode fazer isso, você pode fazer isso
Fazer isso, fazer isso

Eu sei que cometo erros, mas
Ao invés de não fazer nada...

Você pode fazer tudo, mesmo quando você se sente perdido
Apenas continue acreditando em si mesmo e continue
Encontre o seu "qualquer coisa" lá onde a estrada está sumindo
Tudo, tudo
Você pode ter tudo
((You can do) everything, ONE OK ROCK)


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Notas finais do capítulo

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