Defeitos de Fábrica escrita por Lorena Luíza


Capítulo 5
V. Evolução cotidiana


Notas iniciais do capítulo

Espero que vocês gostem! :D Já tenho mais dois capítulos prontos, só falta postar.



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☂ ☁

Em matéria de bipolaridade, eu diria que Sorocaba se igualava à Alexander. Ora ficava fria, nublada, chuvosa e um pouco difícil de engolir; ora se ensolarava, proporcionando um clima mais aconchegante, amigável e até mesmo decidindo abrir um sorrisinho ou outro para mim.

Naquele dia, Sorocaba estava com um pouco de mau humor. O céu da cidade estava acinzentado e o clima, um pouco frio. As pessoas nas ruas do centro passavam de cara feia, agarradas com suas roupas de cores sem-graça e sem nem mesmo olharem para algo além dos copos quentes de café em suas mãos. Fico feliz por não me deixar abalar por dias feios ou frios, já que sempre gostei de usar roupas pesadas até mesmo quando o clima não pede por isso — mas não direi que trocaria esse tipo de dias pelos ensolarados e calorosos, isso seria uma bela de uma mentira.

Já o Sam... Sendo Sun, eu já o conhecia e sabia muito bem o quão morto ele ficava quando o clima não estava de acordo com seu jeito. Indo à escola, eu esperava encontrá-lo indisposto e com um mau humor igualável ao da cidade, mas me surpreendi ao encontrá-lo sorridente e parecendo de bem com o mundo.

— O que aconteceu? — perguntei com um sorriso enquanto ele se sentava à minha frente. Estava bonito, seuBOM HUMOR combinando com a camiseta amarela com uma carinha sorrindo que ele usava sob o cardigan cinza. — Acordou com o pé direito, Sam?

Meu amigo pendurou a mochila na cadeira e depois debruçou-se na minha mesa, abrindo um sorriso ainda maior que o meu. Definitivamente, não havia nada melhor para acordar do que ver aquele rapaz lindo sorrir assim — ainda mais para mim!

— Você não vai acreditar no que eu fiz ontem. — Sam olhou para mim com o mais sacana dos olhares. — Ah, não vai mesmo.

Já curiosa, ri e pedi para que contasse logo de uma vez. Imaginei que tivesse feito bagunça numa festa, surpreendido alguma pessoa ou simplesmente ficado com um alguém que queria muito, que eram os tipos de coisas que o faziam ficar entusiasmado. Ele tentou fazer um pouco de mistério, mas logo não aguentou a vontade de fofocar e soltou a notícia:

— Arrumei um encontro para o Kevin!

Sam deu um sorrisão sapeca e eu, sem entender ao certo, ergui as sobrancelhas. Encontro? Kevin? Como assim?

— Com você? — perguntei receosa, o coração atropelando algumas batidas. — Vocês dois... vão sair juntos?

Ele deu uma gargalhada e eu me forcei a dar um sorrisinho apenas para acompanhá-lo, já que não havia achado um mísero motivo para gargalhar naquela hora. Quando se recuperou da risada, perguntou hesitando:

— Eu? Sair com o Kevin? Nós dois? — Os olhos castanhos dele estavam até brilhando, com lágrimas de tão monstruosa que havia sido a risada. Ele sabia sorrir, mas não rir. Parecia que estava sendo possuído quando fazia isso. — Você é louca? Aquele chihuahua é insuportável, eu não sairia com ele nem que fosse a última pessoa do mundo!

Não consegui evitar o suspiro aliviado quando escutei aquilo. Um nó foi desfeito na minha cabeçona, mas logo se embolou outra vez:

— Mas você não gostava dele? — indaguei confusa, vendo um professor entrar e mandar os meninos tirarem os bonés. — Digo, já faz um tempo que você fica perseguindo ele por aí, então eu achei que...

— Não viaja, nunca que eu gostaria dele — interrompeu Sam com uma cara debochada. — Eu não converso só com gente que eu gosto, sabia?

Olhei para minhas mãos sem encontrar nada para dizer. Aquilo era falsidade, e sendo assim podia ser até mesmo que eu fosse parte dessa gente sem saber. Talvez percebendo minha expressão um pouco desconfortável, Sam sorriu e esticou-se na cadeira, me dando um beijo demorado na bochecha.

— Que cara é essa, Lia? Relaxa! — Ele afastou-se e bagunçou meus cabelos, me deixando sem reação. — Eu adoro você, estou dizendo de gostar naquele sentido.

Envergonhada e um pouco decepcionada por levar na cara que ele não gostava de mim, apenas sorri em resposta enquanto ele, escutando o professor reclamar da conversa, murmurou um "me deixa, tio" e se virou para a frente. Fiquei encarando as costas dele com várias perguntas girando na cabeça. Um encontro para o Kevin? Com quem poderia ser? Que pessoa seria corajosa o suficiente para sair com uma pessoa com uma fama tão ruim como ele?

Bom, mas talvez Kevin fosse como Alexander. De longe, um monstro; de perto, um monstro maior ainda.

Não, espera. Tomei o rumo errado da frase, vamos recomeçar: talvez, Kevin fosse como Alexander. De longe, um monstro; de perto, uma pessoa até legal de conversar, apenas difícil de se compreender. Sim, é isso.

Durante as primeiras aulas, fiquei tentando separar mentalmente pessoas que poderiam querer sair com Kevin, mas não cheguei à nenhuma conclusão interessante. Talvez fosse alguém que não estudasse naquela escola, afinal Sam conhecia uma quantidade inimaginável de gente — parecia até a Angelina, que conhecia praticamente São Paulo inteira...

Logo no fim do segundo período, havia começado a garoar e desde então Alexander, sentado lá do outro lado da sala, parecia atarantado. Olhava para as janelas ao meu lado o tempo todo. A chuva apenas começava a engrossar e aumentar gradativamente, e com isso Alexander apenas pareceu ficar mais preocupado com alguma coisa.

— Deixou roupas no varal? — perguntei brincando no intervalo, enquanto esperava Sam voltar com o lanche da cantina e terminar de me contar a fofoca. Depois de Alexander ter retribuído minha boa ação dias antes, falar com ele havia se tornado algo bem mais fácil para mim e eu já tinha certeza de que uma pessoa ruim ele não era. — Você parece preocupado. Há algo errado?

Ele apenas me olhou de lado e saiu de perto, erguendo o capuz da blusa e indo em direção ao pátio. Franzi as sobrancelhas, vendo que ele provavelmente pretendia meter-se na chuva.

— Aonde você vai? Tá chovendo! — só para ser ignorada em seguida, falei. — Ei, eu estou falando com você!

Novamente fingindo que eu não existia, Alexander entrou na chuva sem se importar com o fato de que se molharia e foi andando até o portão. Segurou as grades com a mão e ficou olhando uns segundos sabe-se lá o que no outro lado da rua, depois dando um empurrão emburrado no portão e voltando para a área coberta com uma expressão terrivelmente descontente.

— Que foi? — indo encontrá-lo, perguntei. Os cabelos dele estavam úmidos, e como sempre, despenteados. Sempre que eu o via e parava para reparar em seus cabelos, me perguntava se era ele mesmo que os cortava, já que os fios estavam sempre com as pontas irregulares e um pouco arrepiadas demais. — O que você estava olhando?

— Não interessa — Alexander murmurou odiosamente em resposta. Ofendida, balancei negativamente a cabeça enquanto ele passava do meu lado sem nem olhar para a minha cara, resmungando qualquer coisa em seguida: — Não me faça ter que voltar a te mandar ir cuidar da sua vida.

Controlando-me para não ficar brava, agarrei o braço gelado dele para que parasse, recebendo uma encarada inacreditavelmente mais congelante do que o clima naquele dia. Hesitante, quase soltei-o, mas apertei os dedos ao redor de seu pulso para não deixar a gata arisca ir embora. Ele ficou me encarando de um jeito firme, mas não desviei o olhar mesmo assim.

— Dá um tempo — grunhiu e então se desvencilhou da minha mão, abaixando o olhar. — Deixa de ser grudenta!

— Eu não sou grudenta! — me defendi, sorrindo para ele em seguida. — Eu sou curiosa.

Alexander fechou a cara, usando sua expressão emburrada de sempre. Já achando que havia vencido outra vez, fiquei esperando ele abrir a boca para dizer o que estava fazendo na chuva quando, do mesmo jeito que eu havia feito com Alexander, senti uma mão agarrando meu braço do nada. Ao ver Sam parado ao meu lado e me encarando com a cara mais feia do mundo, gelei completamente.

— Já não te falei para parar de falar com essa coisa? — resmungou ele, começando a me arrastar para longe. Quando já estávamos alguns metros afastados de Alexander, Sam lhe fez um gesto obsceno e berrou para ele: — E você, seu puto! Vê se ergue essa calça, eu não aguento mais ver sua cueca!

Ainda sendo arrastada para um banco, admito que ri daquilo que o Sam havia gritado, afinal Alexander realmente andava com a cueca de fora. De longe, vi ele fechando a cara, nos mostrando o dedo do meio e indo apressado para a secretaria enquanto Sam me fazia sentar-me num canto. Percebendo que eu estava rindo, Sam começou a rir também.

— E não é verdade? — riu-se ele. — Não tem nem bunda para segurar a calça, onde já se viu!

Balancei negativamente a cabeça dando risada enquanto Sam me entregava o meu lanche.

— O problema não deve ser o bumbum, é que as calças que ele usa são largas — tirando meu salgado do saquinho, falei, e em seguida brinquei: — Já as suas e as minhas parecem ter sido costuradas no corpo.

Foi a vez dele de discordar com um aceno:

— Não, Liana, isso se chama estilo. — E então mordeu a esfirra dele, levando junto um pedaço do guardanapo sem perceber. Em seguida, resmungou, continuando a tentar queimar o filme do Alexander: — Coisa que seu amiguinho da cueca definitivamente não tem.

— Ah, vai falar que ele se veste mal? — Provocando, ergui uma sobrancelha e sorri. — Você não pode dizer que sim só porque não gosta do garoto, as roupas dele são sim bonitas. Você pode achá-lo chato, mas não pode negar que Alexander tem estilo...

Com a boca cheia, Sam revirou os olhos e murmurou um "mimimi" enrolado que me fez rir. Comi e fiquei esperando ele terminar enquanto via, de longe, Alexander saindo da secretaria soltando fogo pelas ventas. Pensei em ir atrás dele de novo para perguntar o motivo, mas estava curiosa sobre o que Sam iria me dizer sobre o encontro do Kevin e decidi ficar por ali mesmo.

— Continua o que você estava querendo me contar hoje mais cedo — pedi com um sorriso. — Sobre Kevin.

Animado, Sam ergueu as sobrancelhas e ajeitou-se no banco, parecendo se entusiasmar por eu tê-lo lembrado daquilo. Limpou a boca antes de começar a contar e depois bateu as mãos uma na outra para limpá-las.

— Ah, é uma longa história! — exclamou ele. — Então, você lembra a hora em que eu saí para passear ontem, lá para a quarta aula?

Era assim que ele chamava as situações em que pedia para beber água ou ir ao banheiro: passeios. Assenti com a cabeça e o deixei prosseguir:

— Eu estava passeando pelos corredores quando vi o Kevin com a Susana numa esquina. E você não vai acreditar no que ele estava fazendo!

Fiz uma pausa para pensar. Susana era sem dúvidas uma das garotas mais bonitas não apenas dos terceiros anos, mas da escola inteira. Apesar de um pouco esnobe, ela era muito inteligente e tinha um relacionamento com André, um cara também muito influente e bonito (porém não tão inteligente) que fazia parte do basquete. Sam era, claro, amigo dos dois. O problema era que eu não consegui estabelecer mentalmente relação nenhuma entre Kevin e a Susana, a não ser uma de inimizade, já que ele colecionava um ódio gratuito por todo o mundo.

— Ameaçando-a? — não conseguindo imaginar nada, sugeri isso. — Sei que é maldade pensar assim, mas...

Sam sorriu com o canto dos lábios e balançou negativamente a cabeça, inclinando a coluna para sussurrar no meu ouvido:

— Ele estava se declarando para ela.

Senti um arrepio subir pelo meu corpo inteiro, não identificando se era por causa da notícia ou pelo sussurro ao pé do ouvido. Vendo eu me encolhendo, Sam deu risada e colocou o dedo nos lábios, soltando um "shh" chiado:

— Mas é segredo, tá?

Nós trocamos um sorriso e eu fiz que sim com a cabeça, deixando-o bagunçar meu cabelo. Eu simplesmente amava quando ele fazia aquilo.

— Então, continuando... Ela rejeitou ele, claro, afinal está num rolo com o André. — Sam fez uma cara meio feia quando mencionou o fato de Susana estar com aquele cara, mas logo se recompôs e prosseguiu: — Só que aí eu já tinha escutado e fui atrás dele. O baixinho estava puto, claro, e quase meteu a mão na minha cara quando me aproximei para perguntar sobre o que realmente havia acontecido. Admito que o bichinho é bravo mesmo, mas nós já havíamos nos falado algumas vezes e não foi muito difícil convencê-lo a desabafar comigo. Ele disse que gosta da Susi há algum tempinho e que havia decidido tentar logo a sorte antes que ela e o André começassem a namorar de verdade, sabe? Bem corajoso da parte dele.

Escutei tudo soltando uma simples exclamação de surpresa a cada frase ouvida. Admito que fiquei muito surpresa ao saber que Kevin gostava da Susana, e fiquei ainda mais surpreendida ao saber que alguém como ele tivera coragem de se declarar para alguém mesmo que não gostasse dessa pessoa há muito tempo. Eu já nutria sentimentos babacas pelo Sam havia mais de um ano e nada de ter coragem de dizer alguma coisa... É, parecia que o pequeno Kevin era mesmo duro na queda.

Automaticamente, passei os olhos pelo pátio à procura do assunto da nossa conversa. Demorei para encontrá-lo em meio à todos os alunos, mas depois de alguns segundos encontrei a figura dele sentado num canto com cara de poucos amigos. Ele era bonitinho, com seus cabelos pretos, expressão entediada e olhos bem claros.

Sam soltou mais alguns detalhes bobos sobre o quão bem ele havia se saído em se aproximar do garoto, mas não prestei muita atenção até ele começar a dizer o que fez sobre aquilo. Não me surpreendeu saber que ele tomara uma atitude, já que Sam era o tipo de pessoa que não aguentava ver os outros enrolados e não fazer nada (talvez um pouco trouxa, como eu). Eu havia ficado mesmo mais interessada do que deveria naquele assunto, então escutei atentamente o que ele tinha a dizer:

— ...Eu não disse ao Kevin que faria isso, mas assim que saí de perto dele e encontrei Susana, a chamei para sair, assim como chamei também o André. Nós somos amigos, então ela aceitou rapidinho. Combinamos de ir ao cinema hoje à tarde.

— Você que a chamou? — Franzi o cenho. — Mas e o Kevin nisso?

— Calma, cocada, eu já chego lá. Inventei que levaria um amiguinho que fiz recentemente e tcharam! — Sam jogou confetes e explodiu fogos de artifício imaginários no ar. — Aí é que entra o nosso querido chihuahua.

Fiquei olhando uns segundos para ele sem dizer ou fazer absolutamente nada. Eu não estava acreditando naquilo.

— E você disse que era o Kevin? — perguntei ao Sam.

— Ah, claro que não, né? — Meu amigo sorriu incrédulo. — Se não, ela não aceitaria sair comigo!

Foi a minha vez de ficar descrente, mas não sorri. Ergui uma sobrancelha e fiz uma careta esquisita. Sam só podia ser biruta, mesmo. Ele pretendia levar para sair duas pessoas que não se davam bem sem elas nem mesmo saberem disso? Tudo bem que Sam adorava fazer surpresas, mas isso não era nem um pouco legal quando eram surpresas ruins!

— Você acha que isso vai dar certo? — perguntei um pouco confusa. — Acho que a Susana não vai gostar nadinha dessa ideia doida. E se o André souber o que aconteceu e ficar bravo? Você já viu o tamanho dele, né? Se brigar com o Kevin, amassa o coitadinho que nem uma lata de refri.

— Você que pensa! — Sam deu risada e passou o braço por cima do meu ombro. — Relaxa, colega. Tá comigo, tá com Deus. Vai dar tudo certo, hoje mesmo o Kevin e a Susi vão sair de mãos dadas do cinema, e com isso...

— Espera aí. — Olhei-o desconfiada, as narinas se dilatando levemente. — Não me diga que você tá tentando separar a Susana e o André para... Ah, não, Sam! Não me diga que...

— Aham! — Ele encolheu os ombros e abriu um sorriso enorme. — Vou estar unindo o útil ao agradável, ué. A Susana provavelmente vai ficar ultra feliz com o Kevin, e assim o André fica livre para mim! Ele não merece a baranga que é obrigado a pegar, Liana. Eu só estou ajudando todo mundo a ficar contente, então não me olhe com essa cara, tudo bem?

Chateada, olhei-o de lado e depois suspirei, olhando melancolicamente para os chicletes grudados do teto do refeitório. Então era com o André que ele estava querendo ter alguma coisa, e não com Kevin. Estranho, eu havia imaginado tudo errado... Realmente Sam tinha uma mente muito boa para surpreender os outros, fosse de um modo bom ou ruim. Apreciei, como sempre, a vontade dele de querer deixar todo mundo feliz, mas não achei interessante o fato de que ele pretendia usar um meio um pouco incerto para alcançar isso.

A alguns metros de onde nós estávamos, a chuva caía no chão formando poças não muito fundas, apesar de perigosas para os pés de distraídos como eu. Por sorte, eu trazia sempre uma sombrinha na mochila, então não ficaria parecendo um patinho descabelado na hora da saída. Sam geralmente não trazia nada, mas era só estalar os dedos para meninas da escola inteira aparecerem e lhe entregarem guarda-chuvas o suficiente para proteger a cidade inteira — coisa que me deixava desanimada, já que a cena de nós dois dividindo a proteção de um guarda-chuva me parecia tentadoramente fofa (mesmo que impossível).

Após o fim do intervalo, Alexander ainda parecia tão emburrado e preocupado quanto antes. Graças ao fato de ninguém querer fazer dupla conosco na aula de inglês, o professor nos colocou para sentarmos juntos. Ele resistiu o máximo que pôde para não ficar comigo, dizendo que gostava de fazer as coisas sozinho, mas não adiantou nada e pouco depois nossas carteiras já estavam lado a lado.

— Posso te chamar de Alex? — eu perguntei alegremente em certo momento. — Você sabe, Alexander é cansativo. É um nome grande demais.

Ele estava com uma cara emburrada, segurando o queixo com a mão e olhando para as janelas do outro lado da sala com as sobrancelhas e os lábios franzidos. Ignorou o que eu havia dito sem mais nem menos, então decidi que passaria a chamá-lo de Alex mesmo sem ele ter aceitado isso — afinal, quem cala consente, não é mesmo?

— Você tá tão estranho hoje — tentando arrancar dele alguma palavra, comentei. — O que foi fazer na secretaria no intervalo?

— Pedir... para ir embora. — Alex coçou o pescoço, parecendo estar com a cabeça nas nuvens. Eu não havia parado para reparar até então, mas alguns poucos fios de cabelo da nuca dele eram tingidos de azul escuro. — Mas não deixaram sem a autorização dos pais. Minha mãe não atendeu o celular quando liguei, então...

Ergui as sobrancelhas, olhando-o curiosamente.

— Está se sentindo mal? — perguntei. — Aonde é que dói?

Ele me olhou pacientemente, suspirou e fez que não com a cabeça, esfregando os olhos com as mãos.

— Tá com medo da chuva? — voltei a perguntar, brincando em seguida: — Mas você nem é de açúcar! Além disso, eu trouxe um guarda-chuva, então eu te dou um espacinho sob ele na hora de ir embora. Você não mora longe, né, Alex? Ah, é mesmo! Nem te perguntei, mas você é desse bairro?

— Você fala demais — Alex resmungou. — Cala essa boca um minuto, por favor. Você me dá vontade de cometer suicídio.

Soltando uma exclamação, olhei feio para ele e cruzei os braços. Cara chato, nunca me leva a sério, pensei comigo mesma enquanto voltava a tentar responder um questionário infernal. Meu Deus, eu odiava inglês, inglês era o demônio em forma de matéria escolar. Fiquei tentando pateticamente completar uma sentença até Alex perder a paciência, tomar a folha da minha mão e responder tudo sozinho.

Depois de as aulas terminarem, eu mal tive tempo de tirar o guarda-chuva para nós dois da mochila antes de ele sair da sala na frente de todo mundo. Já que Sam sairia da escola com Kevin e nós não voltaríamos para casa juntos, saí da sala indo atrás do Alex, logo virando algumas esquinas de corredores e descendo as escadas. Eu achei que ele teria parado para me esperar diante do portão, mas quando cheguei lá vi que o biruta já atravessava a rua na chuva, mesmo.

Enquanto tirava a mochila das costas e a abria para pegar o guarda-chuva, vi que eu não podia mesmo duvidar do nível de loucura do Alex, que havia parado do outro lado da calçada e começado a tirar inexplicavelmente o moletom que usava. Alguns garotos berraram alguma bobagem sobre a rua não ser lugar para strip-tease enquanto ele cobria com a blusa a abertura de uma não muito grande caixa de papelão que estava abandonada na calçada. Havia um papel com algo escrito colado nela, mas era impossível ler o que escreveram ali devido à chuva, que havia borrado totalmente as letras. Foi no momento em que Alex pegou-a que desisti não apenas de pegar o guarda-chuva, mas também de tentar entender alguma coisa do que estava acontecendo.

Deixando para lá e apenas erguendo o capuz da minha blusa, atravessei rapidamente a rua enquanto via Alex se afastando com a caixa nos braços. Meu Deus, ele era muito doido, e eu estava sendo mais doida ainda por segui-lo! Maldita seja essa curiosidade horrorosa que sempre tive, que vive me enfiando nas situações mais estúpidas possíveis.

Fui correndo atrás dele e berrando seu nome enquanto o via se afastar cada vez mais, me ignorando totalmente. Caso eu tivesse algo além da minha mochila comigo, com certeza teria atirado naquele cabeçudo, mas por não ter apenas continuei seguindo-o até vê-lo parar sob a cobertura de uma loja fechada. Depois de por a caixa no chão, ele apoiou as mãos nos joelhos, respirando pesadamente.

— Seu doido! — eu gritei no meio da chuva. — O que você acha que tá fazendo? Quer morrer de pneumonia? Idiota!

Engraçado como, naquele momento, não percebi que o que eu estava fazendo era exatamente o mesmo que ele. Ao me aproximar, comecei a reclamar enquanto Alex ficou me olhando do jeito emburrado de sempre, arfando de cansaço. Gotas de água da chuva rolavam pelo seu rosto e braços, pingando de mechas dos cabelos. Ele estava corado e descabelado por causa da corrida.

— Pode começar a me explicar que babaquice foi essa — ficando um pouco aliviada por já não estarmos mais debaixo da chuva, briguei. — Aonde é que já se viu uma coisa dessas? Sair correndo sem blusa no meio da chuva, ainda por cima catando uma caixa e saindo correndo! Você por acaso é doido? Olha, eu sempre achei que você tivesse um parafuso a menos, mas dessa vez você se superou!

— Só... olha dentro — ele arfou finalmente, apontando com a cabeça para a caixa.

Olhei-o desconfiada, me abaixando no chão e pegando uma ponta do moletom que cobria a caixa para descobri-la. Não pude deixar de me surpreender com o que havia dentro dela quando tirei o pano dali: uma meia dúzia de olhinhos assustados olhava curiosamente para mim, surpresos com a minha presença. Despenteados e molhados, os gatinhos, quase todos pretos ou cinzentos, desataram a miar ininterruptamente e a apoiar-se nas paredes molhadas da caixa de papelão. Numa tentativa falha e penosa de sair dali, eles começaram a arranhar as paredes em busca de escalá-las, mas isso não seria possível nem mesmo se a caixa fosse mais baixa. Puxando a caixa para perto, sentei-me num degrau da loja fechada enquanto olhava incrédula para os gatinhos abandonados.

— Estavam do outro lado da rua desde manhã — vindo se sentar ao meu lado, Alex disse. Ele pegou o moletom que havia usado para cobrir a caixa e começou a tentar enxugar um pouco um dos gatinhos, fazendo o mesmo com os outros em seguida. — Achei que não demoraria muito para aparecer gente e pegá-los, mas ainda estão todos aqui até agora. Imaginei que não sobraria nenhum, mas não imaginei que fosse começar a chover assim do nada. Também não tenho o menor palpite de quem poderia ter tido a grande ideia de largar uma caixa cheia de gatos no meio da chuva e nem fazer questão de buscar, mas com certeza vou encher o saco dele de bicuda assim que descobrir.

Ele falava num tom muito sério e irritado enquanto me contava o que havia acontecido. Realmente, eu não tinha a menor ideia de que fosse aquilo... Enquanto todos da escola achavam que Alex era um tipo terrível de pessoa, ele saía por aí resgatando gatinhos?

Aquilo definitivamente me fez pensar no quão ruins nós, humanos, podemos ser, e o quão inevitável nos é julgar à primeira vista e não levar em conta o velho ditado sobre o quanto as aparências enganam. Alex, sob sua máscara de garoto chato, ignorante e indiferente, havia se importado com algo que ninguém havia sequer parado para reparar. Ele podia ser o que fosse, mas naquele momento foi simplesmente inegável admitir que ele tinha um coração maior do que muita gente por aí — inclusive eu, que mal havia reparado naquela caixa solitária quando havia chegado na escola.

De alguma forma, eu não sabia ao certo o que devia dizer naquela situação. Eu estava surpresa demais, parada com a boca aberta olhando-o enquanto um gatinho preto mordiscava de leve os meus dedos. De repente, um sorriso foi surgindo nos meus lábios conforme eu me dava conta de tudo o que havia acontecido. Sim, eu estava certa em tê-lo defendido tantas vezes e não devia ter me arrependido em momento algum de ter feito isso. Alex valia e merecia isso mais do que eu poderia ter imaginado. Naquela hora, eu tive certeza absoluta de que ter conhecido alguém legal como ele havia sido mesmo muita sorte.

— Sério que era por isso que você estava tão encucado? — Sorrindo, afastei amigavelmente a franja úmida dele de sua testa com os dedos. — Você é legal demais, Alex! Por que não te conheci antes?

Só percebi que aquilo havia sido absurdamente estranho depois de já ter dito e visto a cara emburradamente constrangida que ele fez. Perguntei-me se o motivo de o rosto dele ter ficado tão vermelho de uma hora para outra ainda seria o da corrida, rindo da expressão engraçada que ele tinha no rosto.

— Grudenta... pra caralho — ele murmurou e desviou o olhar, apenas fazendo com que eu risse mais ainda.

— Ah, não é verdade! — Tentei bagunçar seus cabelos, mas Alex afastou minha mão da cara dele com uma cara impaciente. Não importava se era meio chato e se irritava facilmente; ele era muito bonitinho mesmo assim, e eu não podia esconder de modo algum o quão contente estava por ter feito amizade com alguém desse jeito: — Você é uma graça, okay? Eu estou muito contente de ter você como meu amigo.

Alex me olhou feio, com uma cara de quem não acreditava em uma palavra do que havia escutado.

— Eu não gosto de falsidade. Pare com isso — resmungou. — Você não me conhece há nem um mês. Não enrola, tá bom? Eu não sou estúpido. Não acredito nesse tipo de coisa, e se você realmente quer continuar falando comigo, é bom que não fique esperando que eu vá retribuir esse tipo de falsidade gratuita.

Foi a minha vez de olhar torto para ele.

— E você acha que o que define o significado de uma amizade é o tempo? — indaguei com as mãos na cintura. — Você tá errado, então! Quando a gente gosta da pessoa, não importa há quanto tempo a conhece, nem nada assim. Não tem nada a ver, entendeu?

Suspirando, ele ergueu uma sobrancelha. Dava para ver na cara dele que não me respondeu apenas por não querer começar a discutir. Como eu também não queria, logo fingi ter esquecido o que havia acabado de ouvir.

— Que seja. — Sorri encolhendo os ombros. — De qualquer modo, você vai levar todos esses gatinhos consigo para a sua casa? Seus pais deixam?

— Mãe — corrigiu ele, fazendo com que eu ficasse meio constrangida. — Deixar, não deixa. Mas ela sabe que, sempre que some com algum gato que eu arrumo, eu apareço com pelo menos dois a mais em casa — então eu diria que já estou fazendo ela desistir de me prejudicar.

Dei risada brevemente e ele apenas sorriu com uma sobrancelha erguida. Seria bom se, na minha casa, também fosse assim. Meu pai dizia que eu não era madura o suficiente e não cuidava direito nem de mim mesma, então nunca havia me deixado ter um gatinho, cão ou qualquer outro animal. Isso não era justo, já que Angelina também gostava de bichinhos e fazia até faculdade para ser veterinária.

— Quer dizer que você já tem animais em casa, então.

— Tenho.

— Quantos?

— Contando o meu irmão, é... seis. — Surpresa com a quantidade, abri a boca num "o" e ia opinar quando ele, interrompendo-me antes mesmo de eu começar, prosseguiu: — Agora, doze.

Com um milhão de possibilidades passando pela cabeça, sorri de um modo confiante em resposta.

— Onze — corrigi. — Você não se importa se eu cuidar desse pretinho, né?

Mesmo que a expressão dele não tenha mudado, tenho certeza de que vi os olhos do Alex se iluminarem e voltei a sorrir alegremente em resposta, pegando um dos gatinhos no colo e começando a pensar num nome para dar a ele.

☂ ☁

A este ritmo está tudo bem? Você está realmente feliz por estar comigo?
O que está acontecendo? O disjuntor entre eu e você
O que está acontecendo? O que está acontecendo com você? Eu quero conhecê-lo

O que fazer agora? Você me deixa sem palavras
Estou assustado, nós apreciamos nosso tempo desperdiçando-o
Mas isso me fez me sentir muito mais feliz
O porquê eu não sei, mas esses são sorrisos que nunca voltarão...
(Nichijou Evolution, ONE OK ROCK)


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Notas finais do capítulo

Gostaram? Não esqueçam do review! :D