Defeitos de Fábrica escrita por Lorena Luíza


Capítulo 4
IV. Nada colabora


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem. o/



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♬ ♪

Minha cabeça doía e por algum motivo eu estava com uma vontade quase incontrolável de chorar. Eu não conhecia Alexander e nós não éramos sequer amigos, mas ainda assim o que eu sentia sobre ele não era uma simples vontade de defendê-lo — era quase uma necessidade, já que eu conhecia o sentimento de ser repugnada bem melhor do que gostaria de conhecer — e como devo ter dito umas mil vezes, não o desejaria para alguém em situação alguma.

Quando terminei de descolar todos os cartazes e papéis, estava suando e minhas mãos tremiam. Eu não suportava aquilo, aquela injustiça, aquela escola doentia... Eu sabia que já havia pensando milhares de vezes que não aguentaria permanecer mais um minuto ali, mas no dia seguinte eu simplesmente fingia ter esquecido tudo e dizia, mesmo sabendo que estava tentando me enganar, que estava tudo bem. Mas não, não estava, e talvez nunca ficasse.

Eu achei que já havia feito o melhor que podia quando, depois de me livrar dos cartazes rabiscados, fui para a minha sala. Encontrei-a vazia, mas havia por lá algo que apenas fez o modo horrível como eu me sentia se intensificar assustadoramente. Além de o quadro negro estar repleto de bobagens como as que eu havia encontrado pouco tempo atrás, a primeira mesa próxima à porta, onde Alexander se sentava, estava total e porcamente rabiscada.

Naquela escola, nós tínhamos que limpar as carteiras e cadeiras todas as semanas, o que fazia com que todos evitassem rabiscá-las demais para não dar muito trabalho depois. Claro, havia um ou outro que fazia isso do mesmo jeito — geralmente com as mesas dos outros (lê-se a minha) — e não se importava com o trabalho que daria para limpar mais tarde, e havia sido um desses idiotas, ou mais de um, que havia escrito tanta coisa estúpida na mesa do Alexander.

Agradecendo por ser alta o suficiente para poder alcançar cada canto, apanhei o apagador e comecei a limpar apressadamente o quadro negro. Ao terminar, o dito cujo não estava totalmente limpo, mas era impossível ler as palavras ou os desenhos que ali estavam minutos atrás. Em seguida, numa correria incessante, fui até a carteira de Alexander para pensar no que fazer.

Eu provavelmente não teria tempo suficiente para correr até o depósito, apanhar um pano e detergente para poder lavar e esfregar a mesa, mas também não queria fingir não tê-la visto e deixá-la ali com aquelas coisas ridículas desenhadas. Pensei em trocar a carteira por uma do fundo, mas ainda assim não adiantaria, alguém leria o nome dele ali e o problema ficaria trinta vezes maior. Também seria idiotice tentar apagar tudo com uma simples borracha.

Decidindo não gastar mais tempo fundindo o cérebro para pensar no que fazer, saí correndo da sala e fui até o depósito para apanhar algum pano, esponja ou detergente. As tias da limpeza não questionaram o motivo de eu precisar daquilo, provavelmente imaginando que eu havia derrubado algo no chão ou que simplesmente haviam rabiscado minha mesa e eu pretendia limpá-la — algo que, também infelizmente, era mais comum do que eu gostaria que fosse.

Depois de apanhar tudo, voltei como uma bala para a sala e comecei minha jornada de escrava Isaura. Comecei pelo pior, esfregando rapidamente os desenhos com o lado macio de uma esponja e depois passando para as palavras. Deus, que podridão! Aquilo quase fedia. Eu tentava, sem sucesso, retirar um "gtfo, faggot" escrito em canetinha quando derrubei o detergente e ele foi rolando talvez até a lousa.

Como estava de costas para ela, eu teria que me virar para ir até onde ficava. Ao fazê-lo, meu coração quase saiu pela boca. Eu estava tão concentrada em limpar a mesa que não havia nem olhado para trás para ver a havia uma penca de garotos que estava, lá da porta, me encarando com umas carinhas não muito contentes.

Até mesmo me esquecendo do detergente, fiquei parada com um sorriso idiota na cara. Eu estava ferrada, já que, pela cara dos rapazes, provavelmente haviam sido eles os responsáveis pela arte na carteira — e não pareciam ter gostado nada do que eu estava fazendo retirando-a dali.

— Bom... dia — tendo a certeza de que estava ficando roxa, falei, escondendo a mesa logo atrás de mim. — Vocês chegaram cedo, huh?

Eles me olharam sem dizer nada, entrando na sala em seguida. Fui rodeando abobadamente a carteira de modo a esconder o que estava sobre ela com o corpo, sentando em cima dela em seguida, mesmo sabendo que aquilo só deixaria a situação pior. Eu sentia as gotas de suor descendo na minha fronte enquanto o maior deles encarava o meu sorrisinho amarelo com um rosto totalmente descontente e os olhos semicerrados de quem está louco para dar um murro bem no centro da minha cara.

Os segundos em que ele ficou me olhando fixamente talvez tenham sido os mais amedrontadores da minha semana. Nós nos encaramos por um curto período de tempo antes de o garoto me virar o rosto, dar uma gargalhada para os amigos e ir se sentar. Eles cochicharam alguma coisa e riram alto em seguida, deixando uma Liana parada na mesa próxima à porta com a cara mais confusa do mundo.

Eu ainda estava fundindo a cabeça para tentar criar uma teoria para entender no que eles estavam pensando quando percebi um vulto negro na porta, bem ao meu lado, e quase dei um berro. Alexander entrou, como de costume, sem dizer uma mísera palavra e ficou me olhando sobre sua mesa com uma de suas piores expressões de desgosto.

Vendo-o agora mais de perto, admito que deixei um pouco de lado o susto para ficar ainda mais surpresa com o quão delicado o rosto dele era, mesmo que tomado por um semblante de puro "queria estar morto". Seu nariz e lábios eram tão delicados, tão perfeita e irritantemente proporcionais que devo ter ficado uns bons segundos encarando ele sem perceber até que, parecendo estar incomodado, Alexander bufou e falou:

— Além de estar na minha mesa, vai ficar me olhando com essa cara de babaca?

Quase me esquecendo de que estava escondendo a sujeira da carteira, pulei de cima dela para o chão no mesmo instante. Só não fiquei parada com cara de idiota outra vez pelo o que havia acabado de escutar, já que, de perto, a voz dele também era bem mais bonita e estranhamente "melodiosa" do que eu me recordava de haver escutado antes. Prefiro a do Sam. Ele estava indo se sentar quando olhou para os rabiscos, olhou para mim, olhou para a mesa outra vez e voltou a olhar para a minha cara com uma sobrancelha erguida, como se dissesse "ok, agora explique-se".

— Olha, não fui eu quem fiz isso — tratei de falar. — Na verdade, eu até mesmo estava dando um jeito de tirar isso daí, já que eu não achei legal e não quis que você acabasse vendo e tudo mais, só que aí...

— Aham. — O olhar de "conta outra" que o garoto me direcionou até mesmo me fez perder a fala. — Só diga quem me garante isso.

— O quê? — Franzi o cenho no mesmo instante, estendendo as mãos. — Olha para essas coisas, eu estava realmente limpando a mesa. Eu por acaso me pareço com alguém que faz esse tipo de coisa, de sair rabiscando as carteiras dos outros sem motivo nenhum?

Alexander olhou para o detergente e a esponja nas minhas mãos sem falar coisa alguma ou mudar a expressão. Sem parecer se importar ou achar estranho o fato de minha voz ser feminina e minha aparência não, como todo mundo que não me conhecia costumava fazer, ele jogou o caderno em cima da mesa e depois sentou-se preguiçosamente.

— Como quer que eu saiba? — respondeu por fim. — Eu não te conheço.

— Olha... — Respirei fundo. — Você simplesmente poderia deixar de ser arrogante e me agradecer pelo favor que eu te fiz? Não é difícil.

Alexander revirou seu par de olhos muito negros e repetiu demoradamente o ato de bufar.

— Favor? Pra falar a verdade, eu até mesmo gosto que fiquem tentando me atingir. Ah, além disso... eu não me lembro de ter te pedido alguma coisa, então você fez porque quis.

Incrédula com o que havia acabado de escutar, abri a boca para responder, não encontrando nenhuma resposta e fechando-a em seguida. Como diabos aquele Alexander podia estar sendo tão mal agradecido? Eu havia sido legal e me preocupado com o estado em que aquele tonto ficaria ao se deparar com as bobagens aqui e ali que haviam escrito sobre ele, e era daquele modo que eu era agradecida?

Nós ficamos nos encarando em silêncio, eu ainda descrente com sua falta de educação e ele sem parecer estar dando a menor importância para coisa alguma até que, retomando a conversa, ele perguntou:

— E essa mesa, esta aqui. — Ele mostrou a carteira em que estava sentado. — Ela é de quem?

Cheguei a dar risada da pergunta, mas logo parei. Eu não devia sequer rir diante de um cara chato como ele.

— Ora — falei. — É sua.

Alexander forçou um sorriso que me deu vontade de acertar arrancar com um alicate aquele maldito piercing que ele tinha no canto da boca.

— Bingo. — O sorriso debochado daquele baixinho aumentou. — E sabe quem tem que cuidar dela?

Ele me olhou de um modo exatamente igual ao que olhara o "príncipe ocidental" dias antes.

— Isso mesmo: eu. Vai cuidar da sua vida.

Apesar de antes eu achar que não era possível ficar mais incrédula, foi provado o contrário no momento em que eu escutei aquilo. Indignada e começando a me irritar, novamente abri a boca para responder e tive que fechá-la outra vez, virando as costas para ele no mesmo momento e atravessando a sala para ir ao meu lugar.

Quando me sentei, eu ainda estava com a cabeça fervendo de arrependimento, afinal eu havia quase morrido de preocupação por alguém que nem mesmo agradecera pelo que eu havia feito. Sim, eu devia ter pensado melhor... Logo na primeira vez em que dei de cara com Alexander, já devia ter percebido o quão ruim ele era e desencanado de tentar protegê-lo, mas não!, eu precisava mesmo ter sido uma idiota e tê-lo julgado melhor do que ele merecia. Droga, Liana, qual seu problema?

Só devo ter despertado dos devaneios quando levei uma bolinha de papel na cabeça. Já imaginava que havia sido um daqueles caras que me provocavam diariamente quando virei a cara quase me transformando num monstro de tanto ódio, coisa que eu quase nunca fazia, me abaixando para apanhar a bolinha e fazer quem havia a atirado em mim engoli-la de uma vez só. Acho que eu nunca havia ficado tão venenosa quanto naquela manhã.

Ao me virar vi, do outro lado da sala, Alexander com o braço erguido e um sorriso terrivelmente travesso se formando nos lábios, cada olho fechado num "n" que teria sido engraçadinho se eu não o achasse um completo maldito. Caso eu não odiasse tanto palavrões, teria mandado ele ir para o lugar mais horroroso que existe, mas simplesmente me abaixei para apanhar a bolinha, que estava meio aberta no chão. Legal, nem para amassar direito um pedaço de papel aquele babaca servia.

Eu podia não xingá-lo, mas, diferentemente de como era com os outros caras, eu não iria simplesmente ignorar aquilo. Eu usaria a minha mira poderosa e minha força descomunal para acertá-la bem no chifre daquele idiota, rezando para que um calo que fosse até o teto nascesse bem ali.

Acontece que, bem no momento em que apanhei o papel, reparei num pedaço de palavra escrito ali. Só de curiosidade, terminei de abri-lo para ler algo além do minúsculo "iga" que podia ser visto, me deparando com algo bastante controverso escrito ali.

"Obrigado."

Ficando ainda mais incrédula, virei o papel para ver se havia algo no verso, me deparando com algo ainda mais confuso naquela parte.

"PS: isso não significa que eu fui com a sua cara."

♬ ♪

— Tá brincando? Que idiota! — exclamou Sam na fila da cantina. — Meu Deus, Liana, como assim você não deu um soco bem no meio da cara desse bosta?

Eu havia acabado de contar a ele o que eu e Alexander havíamos falado no começo da aula, e Sam não fizera a menor questão de disfarçar seu descontentamento em relação àquilo.

— Fala baixo, Sam, caramba! — ralhei. — Mas, olha, ele foi chato mas me agradeceu depois, então talvez não seja uma pessoa tão ruim assim como eu e você pensamos. Deve haver um motivo, entende?

— Por que você perdoa tão fácil? — Ele franziu as sobrancelhas e soltou um muxoxo. — Você viu o jeito que ele te tratou, não viu? Deixa ele se fodendo sozinho, já tá mais do que na cara que ele não tá nem aí pra nada. Você só vai arrumar problemas se continuar com essa mania de resolver a vida dos outros enquanto a sua própria tá um caos, sabia?

Eu olhei de lado para ele, andando um lugar na fila antes que alguém aparecesse e entrasse na minha frente. Abaixei a cabeça em silêncio, deixando escapar um sorriso. Talvez Sam estivesse se importando com o modo como eu estava sendo tratada ou com como estava minha vida, afinal. Não custava nada sonhar.

— E o que ele poderia querer? — perguntei. Ainda se fosse você, eu entenderia, pensei. — Eu o interpretei mal, só isso. Se ele fosse realmente chato, não teria feito questão de me agradecer mais tarde.

— Deve ter sido orgulho — retrucou Sam olhando para um canto do refeitório. — Eu não duvido nem um pouco disso.

Eu olhei por reflexo para a direção em que ele olhava, vendo que, enquanto três das quatro mesas estavam entupidas de gente se acotovelando, somente Alexander estava sentado na restante. A crueldade das pessoas era incrível, mesmo. Haviam preferido se enfiar em latas de sardinha ao invés de simplesmente dividir uma mesa com ele.

Ainda que eu visse que ele não parecia se importar, por algum motivo eu tinha certeza absoluta de que aquilo estava errado. Todo mundo se importa, ninguém gosta de ficar sozinho. Alexander podia ser a pessoa mais estranha do mundo, mas eu tinha certeza de que, nisso, ele não era uma exceção.

— Nossa, a cara dele me irrita — resmungou Sam fuzilando-o com o olhar. — Que carinha ridículo. Eu, no seu lugar, não moveria uma palha pra ajudá-lo.

Sem querer discordar ou concordar, apenas torci os lábios. Sam era mesmo um pouco egoísta. Eu não entendia o motivo de ele ficar sempre grudado no Kevin, já que eu havia achado muita coisa em comum entre ele e o Alexander. Bom, ambos eram irritadinhos, um pouco baixos, andavam pelos corredores com a cara fechada e ninguém chegava perto. Isso era o suficiente para o Sam também querer chegar no Alexander, não?

Acho que não. Talvez Sam gostasse mesmo do Kevin, ou então apenas tivesse algum motivo a mais para querer se aproximar dele.

Voltando ao assunto de Alexander, tudo bem que eu havia morrido de raiva quando ele fora um completo chato comigo, mas admito ter parado um pouco para pensar depois do "obrigado" — afinal, vai ver ele estava simplesmente mal humorado, não é? Todos têm um dia em que apenas acordam de mal com o mundo, talvez Alexander só estivesse em dias assim o ano todo.

Depois de comermos alguma coisa, Sam e eu saímos da cantina e ele foi conversar com alguns amigos, me deixando sozinha. Sentei-me num banco qualquer e, só de curiosidade, fiquei olhando Alexander sozinho lá na mesa do refeitório com sua usual cara de zumbi. Por não querer levar outra patada, pensei um pouco antes de me aproximar, mas logo eu já estava indo até lá e me sentando do outro lado da mesa, ficando de frente para ele.

— Oi — falei meio dura. — Cê tá legal?

Alexander mexia no celular e, como sempre, escutava música. Em cima da mesa, bem em sua frente, havia uma caixinha rosa de leite de soja com morango e uma embalagem vazia de barra de chocolate. Percebendo-me, ele ergueu os olhos e respirou fundo, tirando um dos fones.

— Você de novo?

— É. — Sorri brevemente. — Você estava aí sozinho, aí achei que poderia achar legal ter alguma companhia, mesmo que seja eu.

Ele ergueu uma das sobrancelhas. Quanto mais eu o olhava, mais o achava parecido com uma garota.

— Sabe, eu não te disse aquela hora — falei amigavelmente —, mas o meu nome é Liana.

O vi forçar um sorriso de meio-segundo antes de recolocar o fone no ouvido e voltar a me ignorar totalmente. Comecei a me esforçar para não voltar a odiá-lo, e manter o sorriso nunca foi tão difícil.

— Escute. Sobre o que você disse aquela hora, de até mesmo gostar que fiquem tentando te atingir... — comecei. — Que diabos você estava dizendo?

Alexander me olhou desconfiado e prendeu o cabelo escorrido atrás da orelha. Eu não havia reparado até então, mas ele usava muitos piercings e brincos ali. Eu, que já havia quase desmaiado apenas para fazer um furo em cada orelha poucos anos atrás, senti um calafrio na espinha apenas de olhar para tudo aquilo.

— Ora, é claro, não é? — disse ele. — Bom, eles ficam dizendo ou escrevendo por aí que não me querem nessa escola e tudo mais, que minha presença os incomoda ou qualquer coisa. É legal ler isso. Sabe por quê?

— Por quê?

Ele soltou uma risada nasal:

— Ué, porque eu continuo aqui. Não estou me importando com o que falam, é apenas isso: podem dizer o que quiserem, já que nada vai mudar. Eu não estou ligando para coisa alguma e, além disso, até me sinto bem vendo o quão desocupadas as pessoas podem ser a ponto de tentarem atingir alguém com coisas assim.

Escutei o que ele tinha para dizer sem falar uma palavra. Ele tinha realmente um modo bizarro de pensar. Aquilo era tão estranho, eu jamais havia pensado em algo assim! O máximo que poderia se passar na minha cabeça quando alguém dizia que não me suportava era um sentimento pesado, de tristeza. E Alexander estava dizendo que sentia o que, orgulho? Que tipo de biruta ele era?

— Eu, hein — foi o que me limitei a dizer. — Você é esquisito.

— Ah, sério? — Alexander fez uma cara descrente. — E quem é você para dizer isso?

Torci os lábios em resposta. Ok, ok, ele estava certo.

Nós ficamos em silêncio por algum tempo. Ele havia recolocado os fones nos ouvidos e até mesmo parecia que eu já não estava mais ali. Eu detestava me sentir invisível, então logo coloquei a cabeça para funcionar, tentando pensar em algo para dizer. Fiquei olhando ele com cara de paisagem por alguns segundos antes de falar alguma coisa:

— O que você tanto escuta nesse celular para não fazer nada além disso?

— Música? — ele perguntou de volta com uma cara de "dããã".

— Isso eu sei! — exclamei. — Mas suas músicas são tão boas para você ouvi-las o dia inteiro?

— Na minha visão, ou audição, sim. — O garoto me olhou sem expressão por alguns segundos. — Por que eu as escutaria se não achasse isso?

Devolvi a encarada dele com uma cara pensativa e depois estendi o braço:

— Tá, isso faz sentido. Mas me deixa ouvir, hm? Quero ver se é mesmo tudo isso.

— Não dá. — Revirou os olhos. — Só tá pegando um lado.

— Eu ouço só em um, mesmo.

— Não, eu estou escutando nele agora.

— Mas caramba! Então você estava com os dois nos ouvidos por quê?

Ele fez uma cara emburrada e me olhou feio, endireitando as costas. Encarou-me como se eu fosse uma criança de cinco anos sem entender qual o resultado de dois mais dois.

— Você não entendeu ainda que eu só não quero que você ouça? — resmungou. — Que garota chata, cara. Eu já falei demais com você hoje, me deixa em paz!

Olhei incrédula para ele.

— Por que você é tão chato? — bufei. — Eu estou sendo legal, então faça sua parte.

— Quem consegue ser legal perto de você? Você é irritante. Está me estressando!

— Se você não me quer por perto, simplesmente diga!

— Some da minha frente então!

Eu fiz cara de brava e cruzei os braços, fingindo que ia me levantar apenas para ver se ele iria dizer para eu me sentar outra vez. Já de pé, permaneci parada esperando por alguns segundos antes de, convencida de que ele não abriria a boca para dizer que havia se arrependido do que dissera, voltei a me sentar.

— Quanto mais eu me esforço pra não começar a te detestar, mais você parece pedir por isso — grunhi com as mãos apoiando o queixo. — Mas desista, eu não vou sair daqui, não importa o quão idiota você seja. Agora eu estou definitivamente decidida a te irritar.

Ele ficou me olhando por alguns segundos antes de, pela primeira vez que vi, começar a rir — mesmo que tenha sido por apenas uns segundos.

— Tá bom, você venceu.

Ele sorriu de uma forma bonitinha, os olhos novamente se transformando em dois risquinhos, e tirou o celular de cima do colo, arrumando os fones e entregando para mim. E foi aí que eu comecei a entender o modo dele agir: primeiro, Alexander vai te irritar e ser o mais chato possível, mas então depois vai sorrir e fazer o que você queria — como uma criança fazendo birra, exatamente como havia sido com o "obrigado" pela limpeza da mesa.

— Entendi qual é a sua, Alexander — falei e sorri. — Agora eu entendi.

O garoto ergueu uma sobrancelha e eu estendi a mão para pegar o celular dos dedos dele. Diferentemente da mão do Sam, a de Alexander era pequena, do tamanho da minha, e a palidez da mesma contrastava com a blusa preta que ele usava. Quando encostei nela por um curto momento, estava fria, como se tivesse acabado de ser mergulhada em água gelada. Minha suspeita de que ele era um zumbi apenas foi confirmada.

O celular estava com a tela desbloqueada, numa música pausada chamada Nothing Helps. Eu não conhecia a banda e a imagem do álbum não me chamou muito a atenção, mas ainda assim dei play e fiquei esperando começar. A batida do começo era legal.

Eu não tinha um gosto muito consistente e bem formado sobre gêneros musicais, sendo que eu ouvia qualquer coisa que fizesse meus ouvidos ficarem contentes, independentemente de estilo, nacionalidade ou seja lá o que fosse — sendo que eu podia estar escutando sertanejo de manhã, heavy metal à tarde e samba antes de ir dormir e nunca havia me incomodado nem um pouco com isso.

Caso eu houvesse me deixado julgar, eu imaginaria que as músicas que Alexander ouvia seriam aquelas bem pesadas e cheias de berros, mas pelo menos a Nothing Helps me agradou bastante — e provando que ele realmente havia inventado aquilo para me espantar, os dois fones estavam funcionando muito bem.

— Legal — falei depois de ouvir quase metade da música e sorri, na verdade querendo dizer "menos agressiva do que eu esperava". — Sério mesmo.

Ele repetiu seu ato característico de erguer uma maldita sobrancelha toda hora e sorriu surpreso. Devolvi o celular também surpresa, afinal ele já havia sorrido diversas vezes enquanto conversávamos. Apesar de meio estranho, talvez aquele carinha não fosse tão insuportável quanto presumi.

— Você achou legal mesmo? — Alexander parecia desconfiado, mas ainda assim aparentou simpatizar um pouco com o que eu havia dito.

— Sim! — Sorri outra vez. — É legal.

Fazê-lo sorrir também foi mais fácil do que eu esperava, mesmo que o sorriso tenha saído mais irônico do que verdadeiro.

— Ora, talvez então eu esteja indo com a sua cara.

♬ ♪

Alexander não era muito bem o tipo de pessoa que eu já houvesse conhecido alguma vez na vida. Ele tinha um jeito muito estranho de se expressar, um vocabulário com palavras que eu nunca havia escutado antes e uma boca trocentas vezes mais suja que a do Sam, mas ainda assim eu o considerava uma boa companhia — mesmo que ele tentasse me enxotar sempre que eu me aproximava. Acho que eu tenho mesmo essa mania de querer chegar perto de gente que deixa claro que não quer nada comigo.

Alexander, apesar de não ter me tratado de um jeito tão ruim quanto eu esperava, se mostrava bastante difícil de se fazer abrir a boca e continuava olhando para mim como se eu fosse uma idiota. Eu não sei o motivo, talvez fosse apenas sono, cansaço ou mau humor normal, mas ele parecia sempre bravo e não falava com ninguém. Às vezes, me custava para fazê-lo dizer alguma coisa enquanto "conversávamos", mas eu sempre insistia e uma hora ou outra ele falava — nem que fosse apenas para me mandar calar a boca.

Aos poucos, ao verem que ele realmente não estava nem aí para coisa alguma, os garotos pararam um pouco de aproximar-se dele para enchê-lo. Deviam ter perdido a graça, já que o máximo que Alexander fazia ao escutar o que eles diziam era olhá-los sem expressão alguma no rosto e continuar fazendo o que já fazia antes. Tch, quem dera eu pudesse fazer isso...

Talvez tenha sido por inveja dele e desejo por ser mais como aquele cara que eu me grudei tanto nele nos dias seguintes. Ele não escondia o quão descontente e irritado ficava por eu persegui-lo tanto, mas ainda assim eu continuei tentando imitá-lo o máximo que podia para dar um jeito de tentar me livrar de quem me enchia.

Sobre Sam, mesmo depois de eu ter contado a ele sobre a outra conversa que eu e Alexander havíamos tido, ele não se convenceu de que aquele cara podia ser menos chato do que parecia. Continuava fuzilando-o com o olhar sempre que o via e vivia me dizendo que eu devia deixar logo de ficar falando com ele, mas eu achei que seria muita crueldade me aproximar dele apenas para deixá-lo de lado e continuei, mesmo Sam sendo contra, a trocar umas palavras com ele ocasionalmente.

Sabe, eu acho que, tirando o fato de Sam não concordar com meus atos, naqueles tempos estava tudo indo bem demais para continuar sendo assim. Meu pai, que já estava sozinho há algum tempo, andava saltitando pela casa por ter conhecido uma mulher que, segundo ele, era a mais maravilhosa que já havia encontrado na vida. Além disso, eu estava fazendo um novo amigo na classe (por mais que ele me mandasse tomar naquele lugar todos os dias), e Angelina estava feliz por ter arrumado um emprego numa loja de roupas.

Sim, estava tudo indo muito bem e por isso eu esperava algo ruim — e eu dei de cara com esse algo logo numa manhã de segunda-feira. Do mesmo modo que haviam feito com Alexander, haviam feito comigo, e tinha até mesmo demorado bastante para isso acontecer. Tudo, exceto meu armário que, por algum motivo, estava limpo, estava uma zona. O quadro negro estava uma nojeira total, assim como a minha mesa, mas eu não tive muito tempo para me preocupar com aquilo assim que coloquei os pés dentro da sala — porque Alexander estava, do mesmo jeito que eu havia feito por ele, tentando resolver tudo para mim antes mesmo que eu chegasse.

♬ ♪

Oh, sim, ok, tive uns dias ruins
Então, preso na minha mente, eu não
Tenho realmente certeza de quem sou
E nada parece acontecer completamente do jeito que eu queria
(Nothing Helps — ONE OK ROCK)


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham curtido c: E desculpa alguma coisa.