Defeitos de Fábrica escrita por Lorena Luíza


Capítulo 22
XXII. Sentindo falta


Notas iniciais do capítulo

Postando de novo porque da outra vez fiz merda! heheh



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Ela levantou as sobrancelhas, acentuando as linhas de expressão em sua testa, e as mãos apertaram com força as roupas que segurava no colo. 

— O... quê? — A voz de Angelina fraquejou e ela entortou o rosto, forçando uma risada em seguida. — Você está sonhando. De onde tirou isso?  

Eu a encarei firmemente, agarrando seu braço quando minha irmã deu alguns passos em direção ao banheiro. Puxei-a com força e fui olhada com raiva e surpresa em seguida. Ela abriu a boca, sem ter o que dizer de primeira.  

Era tão óbvio e tão ridículo que senti o impulso de dar um tapa em meu próprio rosto por não pensar naquilo antes.  

Nem Sam, nem Alexander, nem Rebecca ou pessoa alguma sabiam de mim as coisas que Angelina sabia... E nenhum deles odiava Alexander com a intensidade que ela odiava. Eu estava certa de que, caso ela topasse com ele na rua, estaria longe de ficar quieta. 

A índole de Angelina não importava — tanto faz se fizera uma coisa dessas querendo me defender ou não, era extremamente insensível da parte dela brincar comigo e com ele também. Mentindo assim, Angelina não estava sendo diferente do Alexander em meio àquilo. Incrédula com aquela situação, que com certeza era real, eu não conseguia nem mesmo pensar direito naquele momento. Era como se fosse uma piada de extremo mal gosto comigo.  

Ela odiando-o ou não, querendo que eu me vingasse ou não, não importava. Angelina nada tinha a ver com aquilo. Eu jamais envolveria minha irmã no meio de um problema meu — não era por ter os conselhos dela que eu imaginava Angelina se metendo no meu lugar!  

Quando foi que eu precisei dela para resolver os meus problemas assim?  

Se... Se eu precisasse dela para isso, de que havia servido escutar de meu pai que eu devia tomar minhas próprias atitudes? 

Ela era minha irmã e minha amiga... Não podia ser minha substituta assim, quando quisesse e como quisesse, sem o meu menor consentimento! Enquanto eu tentava ao máximo me esquecer de Alexander e seguir com minha própria vida, minha irmã inventava mentiras para trazê-lo de volta?  

— Você... falou para ele que eu ia me matar? — Minha mão tremia, agarrada o pulso dela, enquanto meus olhos ardiam. — Lina, como você pôde? O que você inventou de mim e por quê? Eu não mandei fazer nada disso! 

Os olhos claros dela não negavam o quão surpresa ela estava. Eles, mais do que definitivamente, não mentiam. Não mais.  

Eles oscilaram e ela abriu a boca, negando com a cabeça.  

— Eu não fiz nada. — Apesar disso, a boca dela mentia... muito. — Preciso ir trabalhar, Liana. Se você me soltar, vai poupar muito tempo. 

— Eu sei do que você fez...!  

— Me deixa em paz! — ela respondeu alto. Angelina tentou puxar o braço, mordendo o lábio quando não a permiti fazê-lo e me olhando nos olhos. Minhas unhas deixaram cinco riscos em sua pele. — Que saco! Olha aqui, pirralha, eu tenho mais o que fazer! Eu trabalho e eu estudo, não fico jogada em casa chorando o dia inteiro por causa de um fracassado que não é nem... gente. — Ela apertou os olhos, não parecendo se importar com o que dizia. — Eu estou pouco me fodendo para as amizades lixo que você arruma. Eu não perderia meu tempo com vocês dois nem mesmo se eu tivesse esse tempo sobrando, Liana. Nem mesmo se eu fosse a pessoa mais desocupada do mundo. 

Eu encarei meu próprio reflexo nos olhos dela, sentindo uma vontade desconhecida de dar um tapa em seu rosto agora. Mas... eu não faria aquilo. Eu estava longe de ser capaz de agir assim de novo com alguém qualquer, quem dirá com minha própria irmã.  

Mas como... Como ela havia sido capaz de falar daquela maneira comigo?  

Me tratando daquele jeito, como se eu não fosse nada além de um peso para ela e para o meu pai! 

— Você é uma mentirosa — entredentes, eu disse. As palavras saíram arranhando e trouxeram junto lágrimas, que começaram a escorrer pelo meu rosto. — Uma mentirosa! Eu achei que você fosse minha amiga...! Você me viu sofrendo durante aquele tempo todo pra me esquecer de tudo e então fez isso! 

Angelina continuou com a mesma expressão, apesar de parecer fraquejar quando se deparou com minhas lágrimas. 

Eu solucei, mas não soltei o braço dela. Eu não conseguia acreditar. A minha própria irmã... 

— Eu não fiz nada nessa droga desse seu celular — abaixando o tom de voz, ela disse. — Você foi atrás daquele lixo ontem, não foi? Está escrito na sua cara desde então. — Minha irmã mordeu o lábio inferior com força, me encarando com nervosismo e decepção. — Você... é um capacho, Liana. Um saco de pancadas. Você gosta de confiar em quem não presta, é isso. 

Angelina deu um passo em minha direção, empurrando as roupas que tinha no colo para cima de mim e indo para o quarto outra vez. Eu as segurei por impulso, incrédula com o que havia escutado da boca dela. Meu coração batia tão rápido que eu parecia escutar as batidas dentro da minha cabeça. 

Capacho. 

Sendo que eu havia aguentado aquele tempo todo sem ir atrás dele. 

Saco de pancadas. 

Por que, se já fazia tanto tempo que eu não me submetia a essa situação, fosse com o Samuel ou com Alex...? 

Decepção. 

Eu... era uma decepção, enquanto ela havia sido quem cometeu o erro de se intrometer onde não devia. 

— Se você pensa que eu não sei do que eu sou e do que eu faço — eu disse, entrando no quarto atrás dela e jogando as roupas em cima de sua cama —, você está muito errada...! Eu não sou droga nenhuma de capacho, Angelina! Eu não fui atrás do Alexander! 

Ela se virou para mim, com seu celular sendo segurado firmemente nas mãos, e me encarou como se enxergasse através de mim. 

Eu notei que nós estávamos falando muito alto. Como meu pai não havia aparecido ainda? Isso não era do feitio dele. 

— Ah, é? — ela perguntou, rindo de lado. — Então surgiu na sua cabecinha lenta assim, do nada, que alguém andava falando algumas coisas para o seu melhor amiguinho? — Angelina parou de rir e semicerrou os olhos, cruzando os braços. — Conta outra. Sua otária. Você é uma puta de uma otária. Você sabe qual é o seu erro? 

Eu levantei minhas sobrancelhas para ela. 

—Não! Você! Você sabe qual é o seu erro? — nervosa, eu perguntei de volta, apertando minhas unhas contra as mãos. — Você... pode falar e achar o que quiser de mim e do que eu fiz até então, mas você não está certa de ter ido inventar coisas no meu nome, Angelina, independentemente de como e porquê você foi fazer isso! E você não tem que me tratar mal quando eu não te fiz nada! 

— Eu não quero estar certa em coisa nenhuma! — a voz dela saiu num grito irritado. — Se eu não estou certa em querer proteger a minha irmã e me vingar por ela, você está certa de me trocar por quem chegou agora? Você acha que está, Liana? Só me responda se sim ou não! E então eu já vou parar de discutir com você agora mesmo! 

Eu parei onde estava, com lágrimas salgadas escorrendo por cima dos meus lábios e tremendo de nervosismo e raiva. Ela começou a chorar e esfregou com força os olhos, continuando a me encarar. 

— Por que... todo mundo só quer me proteger me machucando? --- eu perguntei entre soluços. — Eu não te troquei por ninguém, Angelina, eu... eu não preciso me vingar de ninguém, eu só quero que todo mundo fique bem, por que você precisava fazer isso? Por que não me contou nada? Eu só tinha você comigo, até agora eu não faço ideia do que você falou! 

Angelina me olhou por longos segundos, com raiva, antes de levantar o braço e começar a mexer em seu próprio celular. 

Ela atirou-o em cima de mim e eu o peguei ainda aceso no ar, com minhas mãos trêmulas. 

Quando o olhei, eu notei que o celular estava aberto em seus SMS mais recentes e li o nome de Alexander entre os primeiros. Havia muitas mensagens ignoradas dele. Quase vinte. 

Meu coração atropelava as batidas e eu levantei o olhar para ela, sem coragem para ler uma palavra além das que li. 

Apesar de que eu já sabia, a confirmação me machucou ainda mais e eu a olhei, incrédula, enquanto meus olhos marejavam. 

— Você realmente... 

— Interprete como você quiser — ela disse, como se estivesse cuspindo as palavras. — Não é nisso que você é boa? Em ver tudo da maneira como você quer ver? 

Eu continuei olhando-a enquanto minha garganta fechava. 

— C-cala a boca... 

Angelina sentou na cama de uma vez, cruzando as pernas. 

— Tadinha de você — murmurou ironicamente. — Não queria tanto saber do drama que eu fiz para o seu grande amigo? Está em suas mãos, logo aí. Enquanto ler, já vá pensando no que dizer para defendê-lo, porque eu estou esperando. 

— Cala a boca, Angelina. Cala a boca. Você ainda teve coragem de negar... — A vontade que surgia em mim era de bater na cara dela, eu não canso de repetir. — Preste... atenção no que você está dizendo para mim. 

Ela estava olhando para as próprias unhas. 

— Você vai contar para quem que eu fiz isso aí com você? — ela desdenhou. — Para um amigo imaginário? 

Aquilo me atingiu como um golpe no rosto. 

Eu não chorei mais. 

— Quando você ficou tão infantil? 

— Você é quem precisa ir passar a noite com o papaizinho e eu sou a infantil? — Ela levantou o rosto para mim, com os olhos avermelhados. — Você por acaso sabe o que aconteceria se eu pedisse a ele para fazer isso? 

— Desde quando — eu disse e me aproximei dela, olhando-a por cima — o pai me trata diferente de você? 

— Desde que você nasceu?  

Eu encarei-a. Por dentro, meu sangue fervia. Eu não a trataria daquela maneira nem mesmo se eu passasse dos meus próprios limites.  

— Eu por acaso tenho algum privilégio? 

Foi possível escutar meu pai andando apressado pelo corredor e eu nem mesmo me virei para olhar para ele quando entrou, fazendo barulho. Angelina olhou para ele, mas eu estava vidrada nela. Me corroendo por dentro porque nem Lina, nem eu éramos mais quem já havíamos sido. No meu caso, eu me sentia até melhor por isso.  

Porque, meses atrás e naquela situação, o que eu faria além de chorar e não dizer nada com nada?  

E então agora eu olhava nos olhos dela. Dizia o que eu pensava. Eu me controlava.  

— As duas! Vocês sabem que horas são? — ele começou a falar e eu nem mesmo prestava atenção, de tanto que a encarava e com tantas coisas se passando pela minha cabeça ao mesmo tempo. — Vocês acham que só existe a nossa família nesse bairro?! E vocês são irmãs, eu nunca vi as duas brigando! Eu espero que haja um motivo muito bom para eu ser obrigado a ver duas mulheres crescidas gritando antes das dez da manhã!  

O nosso pai continuou e continuou a falar, mas nós estávamos perdidas uma no rosto da outra.  

Eu não senti curiosidade de ler nada no maldito celular dela ou escutar mais coisa nenhuma que saía de sua boca agora.  

Estava com raiva.  

Não era mágoa, tristeza, dor.  

E era tão difícil eu sentir isso que não me reconhecia ali, mas eu estava fazendo o que vinha a minha cabeça e o que eu achava certo — foi por isso que não me arrependi.  

Eu joguei o celular para ela.  

— Você nunca foi mais idiota, Angelina — eu lhe disse. — Você não está sendo alguém nem sequer um pouco diferente do que você acha que o Alexander é.  

Meu pai não merecia escutar nada do que eu dissesse a ela e eu saí. Além disso, a Angelina não era burra — ela sabia muito bem que, na situação em que estava, ela não tinha direito nenhum de dizer o que havia dito. Eu... sabia que ela não era alguém ruim, mas ainda assim estava longe de ter um pingo de razão.  

Angelina era a única pessoa além de meu pai que eu tinha e então ela desdenhava do valor que eu dava a ela, debochava do fato de eu ser sozinha, ignorava todas as minhas tentativas de me tornar alguém melhor com a ajuda dela.  

Ela... só queria me atingir porque estava com ciúmes.  

Eu a conhecia e ela me conhecia, Angelina sabia que aquilo me machucaria como machucou.  

Mas eu não tinha tempo para chorar, ficar pelos cantos ou qualquer outra coisa do tipo.  

Eu continuaria fazendo o que eu queria fazer.  

Não era como se eu houvesse deixado, de um momento para outro, de ser ingênua. Nem como se eu deixasse de me importar com minha própria irmã. Estava longe de ser como se, por conta de um briguinha, eu me tornasse alguém totalmente diferente do que eu sempre havia sido.  

O que acontecia era que eu senti menos medo.  

Menos inferioridade.  

Incapacidade.  

Era como se, pelas primeiras vezes, eu estivesse percebendo que nem tudo o que eu escutava era, necessariamente, uma verdade absoluta.  

Eu não quis entrar no quarto outra vez para pegar algo, então saí para a área e tirei as minhas roupas — sim, lá fora; não dava para nenhum vizinho ver. Eu vesti jeans e moletom que estavam no varal e coloquei o pijama na cesta, perto do tanque, para lavar depois. Calcei os tênis na sala e saí.  

Talvez eu me arrependesse. 

Aquele devia ser o apartamento certo. O número batia e a porta estava entreaberta, como se alguém houvesse acabado de abri-la para sair. Olhando-a de longe, eu comecei a caminhar em sua direção com as unhas apertando as mãos e a garganta trancada. 

Eu não sabia o sobrenome de Alexander. Não sabia o nome de sua mãe, nem de seu pai, ou de seu irmão. Eu não sabia nem o nome de algum dos gatos dele. 

Meu coração batia tão forte por estar mentindo que minha voz quase não saía. O porteiro ligou para o apartamento, perguntando se eu podia subir, e então eu me questionei sobre o que estava fazendo. Pareceu que seria terrível. 

Mesmo sendo uma situação supostamente aterradora a mesma altura, eu não sentia o mesmo medo absurdo e desespero de quando precisava atravessar a rua para tocá-lo. Não era como se eu me sentisse tão lixo quanto naquele dia anterior. Eu sei, faziam apenas horas desde que havia experienciado aquilo, mas... Ao mesmo tempo em que a memória do acontecimento era viva, aparentava ter ocorrido meses, até anos atrás. 

Parecia que alguma coisa tinha mudado. Bem, bem lá no fundo de mim. Podia ser momentâneo e, mesmo que fosse, eu... estava ali para me aproveitar desse momento. 

Os passos que faltavam iam se tornando escassos. Eu não sabia o que diria, faria ou o que veria. Ele provavelmente ficaria com ódio por eu aparecer assim, repentinamente, ainda mais depois de tudo o que ocorrera. Minha cabeça ficava repetindo para que eu me arrependesse, voltasse, cancelasse todos os planos... 

E então eu me lembrava de todas as coisas que já tinha feito. 

Desde cortar os cabelos escondida, até me declarar para o Sam e fazer de tudo para não magoar os sentimentos de Alexander quando ele contou o que sentia por mim. 

Se eu era capaz disso e também de outras coisas, era capaz de colocar todas as cartas na mesa — as minhas e também as dele. 

Quando cheguei próximo ao número do apartamento de Alexander, parei diante da porta entreaberta e lentamente ergui a mão, pretendendo bater na porta ou qualquer outra coisa que viesse à minha cabeça no momento. 

Olhei meus dedos ossudos, que não estavam trêmulos nem nada. Eu estranhei aquela sensação. Ainda que não fosse uma situação fácil, não era como se meu coração estivesse tão indeciso assim. 

Ele sabia o que estava fazendo. Dizia-me o que fazer. Eu só obedecia. Entre meu coração falando, estavam as palavras de Angelina gritando idiotices dentro da minha cabeça, me dando força para continuar. 

Ela me odiaria, mas não havia mais nada para ser feito. 

Toquei a porta com leveza e ela se abriu rapidamente, com um ruído que me surpreendeu. Quando isso veio à minha mente, eu lembrei-me de que, após falar no telefone, o porteiro havia deixado claro que a pessoa no telefone disse que eu poderia subir e que esperaria por mim a partir de já. 

Os olhos dele pairaram sobre os meus, interrompendo todos os meus pensamentos e meus batimentos cardíacos por um momento. 

Alex estava com um meio-coque no cabelo, uma blusa preta e calça cinza de moletom. Andava em direção à porta, mas parou ao me ver e encostou o ombro à parede. Não havia expressão em seu rosto. Ele olhava para mim como se não desse a mínima --- ou como se estivesse se importando muito, a ponto de me encarar daquela maneira. 

Eu não sabia diferenciar. 

A única coisa que sei foi que, ao contrário do que sentia momentos atrás, eu definitivamente não estava tranquila sobre vê-lo. Era claro que, depois de vê-lo totalmente devastado no dia anterior, vê-lo um pouco melhor agora me dava uma sensação melhor, mas, ainda assim... Não era bom. 

Um gato passou se enroscando pelas minhas pernas e saiu.  

— Alex... — minha voz saiu do fundo de mim e eu resisti ao ímpeto de abraçá-lo e me desculpar ininterruptamente. Levantei a mão, sem saber o motivo, e ela parou no ar. — E-eu... 

 

Alexander não havia se mexido desde que o percebera ali. Continuava levemente curvado como antigamente. E a expressão, agora, era a de antes. Como se os acontecimentos recentes e as faces dele que eu vira não fossem nem mesmo capazes de existir mais. 

Um Alexander raivoso e outro chorando desesperadamente sobrepuseram aquele Alex inexpressivo diante de mim e meu coração se despedaçou. 

Nem uma mísera palavra se atrevia a sair de minha boca naquela hora. 

Os passos que dei em direção a ele me fizeram sentir que eu nem mesmo me lembrava como andar. A cada dezena de centímetros que diminuía em nossa distância, era como se uma mão espremesse meu coração com os dedos usando uma força que só aumentava. Eu precisava colocar tudo a limpo, mas... 

Eram tantos traumas. E eu achei que os tinha superado, mas só os camuflava de mim mesma enquanto estava longe dele. Mas eu sabia que algo em mim havia mudado completamente. 

"Eu amo você" dito em sua voz se repetiu dentro da minha cabeça. "Você não deve ser você mesma e fazer o bem aos outros esperando algo em retorno." 

Assim como essas palavras, as de meu pai também se reviveram naquele momento. 

— Eu... sinto muito por aparecer assim. — Engoli em seco, sem notar diferença em sua expressão com minhas palavras. Mais próxima, eu o olhava en seus olhos mais ainda. E via suas olheiras profundas, o descuido com a aparência, com a própria vida. — Eu somente senti que precisamos conversar. Não foram estabelecidas... muitas coisas ontem. Acho que devemos isso um ao outro, Alexander. É isso. 

Suas bochechas estavam coradas e se destacavam no meio do rosto quase fúnebre. Ele deixou os olhos penderem e os lábios se entreabriram. Eu sabia que tudo estava errado, mas havia algo mais que não estava nos conformes ali. 

— Não precisamos — Alexander respondeu. Sua voz veio do fundo, também, afetada. Quase um sussurro. — Eu já fiz tudo o que eu devia fazer. 

— Isso não é totalmente escolha sua — de prontidão, eu disse. — Não é você quem decide tudo e não é a primeira vez em que faço isso... Você sabe que se eu quero respostas, eu vou atrás delas, você não sabe? — Fiz uma pausa, engolindo em seco e abaixando a minha voz. Apesar de saber que sua mãe trabalhava, notei que não sabia se de fato havia outra pessoa em sua casa ou não. — Você... sabe que eu fui quem mais se deu mal nisso tudo, eu até mesmo disse que precisava de muito tempo, mas pensei a respeito e estou dando minha cara a tapa de novo porque acredito em você. Também sabe que eu tenho uma cabeça... tão cheia de coisas que nunca estou em paz de verdade com tudo à minha volta. Eu acho que eu mereço ao menos ser honesta e ter a sua honestidade em troca depois de tantas coisas que ocorreram. 

Ele expirou devagar o ar que tinha no peito, com um som grosso. 

— Olhe para mim... — pedi. 

Seus olhos escuros encontraram os meus, mas ele abaixou-os em seguida, encolhendo os ombros. Tão calmo e controlado, ele não parecia nem mesmo ser alguém capaz de ter emoções devastadoras. Eu cheguei a me perguntar se tudo não havia passado de alucinações minhas. 

— Desculpe — Alex respondeu. — Se depender de mim, não vai acontecer. 

— Por que não? 

Ele ficou em silêncio, cabisbaixo. 

— Por que não? — insisti, dando um último passo em direção a ele. — Não é como se me devesse alguma coisa, mas é apenas que esse assunto é realmente importante para mim e agora que tive algum tempo para pensar, agora que consegui criar coragem e vim atrás... 

— Você pode ir embora? — ele me interrompeu, mesmo que estivesse falando baixo e pausadamente. — Eu não estou querendo ser grosso, eu só... não quero falar... agora. Não quero receber ninguém na minha casa agora, muito menos você. 

Eu franzi as sobrancelhas, totalmente contrariada. 

— Por que não olha para mim quando fala comigo?— Senti-me mal por exigir dele algo que eu geralmente não era capaz de fazer com ninguém. — Consegue entender o que significa para mim? Consegue entender o quanto foi difícil para mim tomar essa decisão? Eu me preocupo tanto e você... Você... Disse tantas coisas ontem! 

Eu senti que poderia começar a chorar de novo e parei de falar. Alexander meneou com a cabeça, levantando devagar a mão para passar no cabelo e jogá-lo para trás, e então notei que estava trêmulo. Não um pouco trêmulo, mas muito. 

Senti uma pontada em meu coração. 

— Tá... tudo bem? 

— Sim. 

— Você está passando mal? 

— Vá para casa — ele falou, apertando os olhos. — Por favor, Polliana. 

Sem dizer qualquer coisa, eu tirei sua mão dos cabelos e toquei-o na maçã do rosto. 

Por algum motivo, eu não me senti... repelida dele. 

E então eu me lembrei de novo de como o vira no dia anterior. Daquela chuva que eu tomei por minutos, mas de como não fazia ideia de quanto tempo Alex passara a tomando sem nem usar um guarda-chuva para se proteger. Eu me recordei da maneira em que naquele momento, tive certeza de que estava muito mal. 

Não só pela expressão ou pelo choro e palavras, mas como tremia e como estava com uma aparência deplorável. 

Quando pensei em ir falar com ele, simplesmente não passou pela minha cabeça que Alexander estaria daquela maneira. Enquanto eu subia, não pensei se estaria em estado de conversar comigo. Eu não lembrei de como cabeça dura e se recusaria a cuidar-se ou aceitar a ajuda se alguém estando claramente precisando disso. 

Ele me amava. 

Havia tentado me proteger. 

Eu não tinha tempo para ficar envergonhada sobre isso agora. 

— Cara... — murmurei, levantando preocupadamente as sobrancelhas. — Não é como se eu quisesse fugir de assunto nenhum, mas você está extremamente quente, está com febre. 

Ele moveu a cabeça para o lado, ainda encostado à parede. 

— Eu não estou — respondeu, abrindo os olhos apenas para me olhar torto. — Eu só quero ficar sozinho na minha própria casa. É pedir demais? Eu... nem quero você aqui. 

— Você disse que não seria grosso e então está falando assim comigo — nesse momento, foi minha vez de interromper. Eu levantei seu queixo, fazendo-o me olhar. — Se você mentiu sobre isso, então mente também sobre estar bem. Eu não sou uma idiota. 

Ele mostrou os dentes e curvou as sobrancelhas para mim. 

Aquela expressão contrariada... 

Por que eu senti falta dela, mesmo entupida de preocupação? 

— Eu não estou ligando nem um pouco para o que diz. 

Os olhos dele continuavam rasgados e ele, teimoso. Como uma mula. Um babaca que achava que não importava para ninguém.  

Acima de qualquer ressentimento que tivesse, acima de Angelina me odiando, acima de qualquer culpa... 

Minha decisão era a de fazer o que eu quisesse a partir dali. 

Eu não era uma pessoa que não ligava para ninguém --- mesmo que ele quisesse que eu fosse assim. Até porque sua tentativa de me fazer ser esse alguém havia dado errado o suficiente para que ambos devessem desistir. Merda, eu... não devia ligar tanto. 

— Eu também não estou ligando nem um pouco para o que diz — repeti, respirando fundo. — Não vou embora daqui, Alexander. 

Ele continuava quente como se estivesse sob o sol naquele exato momento, mas tremia como se estivesse dormindo nu no Everest. 

Tinha uma boca grande, mas seus olhos pesavam e estava parecendo uma criança. 

Ter vontade de estrangulá-lo ficava entre um sentimento péssimo e ótimo ao mesmo tempo, como se o ódio estivesse numa extremidade da balança e a preocupação, logo na outra. 

Alexander tirou minha mão de seu queixo e seu corpo inclinou-se para a frente. Ele apoiou a cabeça em meu ombro. Toquei-o nas costas para que não caísse mais. 

— Faça... o que quiser — murmurou. 

— Isso vai incluir ser obrigada a te carregar e entrar em todos os cômodos, procurando o seu quarto, pra te jogar numa cama e te fazer descansar — respondi de prontidão. — Caso você não vá por vontade própria. 

Ele balançou negativamente a cabeça. 

— Não sei o que estou pensando — disse baixo. — Eu vou me arrepender... Minha cabeça está doendo pra caralho. Eu sou um bosta. 

Franzi as sobrancelhas e o ajudei a caminhar pelo corredor. Ele piorou a ponto de mal conseguir dizer qual das três portas era a de seu próprio quarto. Meu Deus, cara, eu... 

Nós, antes, estávamos obviamente na sala. Eu não costumava visitar ninguém que vivesse em um apartamento. Era um cômodo apertado e básico, somente com um quadro grande que chamava a atenção. Tudo de cores claras e nos conformes. Dali, dava para ver a cozinha, que era pequena também. 

Não havia muita personalidade ali, mas, de qualquer maneira, era o que eu esperava da casa dele e era o que eu não esperava ao mesmo tempo. 

Era bem... casa de asiático. Extremamente limpa, sem nada sobrando. Com uns enfeites aqui e ali, perfeitamente distribuídos, sem nada "gritando". A mãe dele devia ser muito organizada, eu pensei. 

— Por que... você está fazendo isso? — no corredor, encostado à mim, ele perguntou baixo. 

Aquela parte do apartamento era escura e sem absolutamente nada. Eu o olhei e só podia ter o vislumbre de Alexander ali. Com o cabelo desarrumado e a cabeça tão baixa que eu mal via seu rosto. 

Fiz a mesma pergunta para mim e a resposta não veio tão rapidamente quanto queria. Abri a boca para dizê-la, mas não a disse. Não sabia se era o que ele queria ouvir. 

Perguntei qual porta era e foi naquele momento em que Alex hesitou, mas mostrou a porta à esquerda com a cabeça. Eu girei a maçaneta e lá também estava escuro. Não dava para notar os detalhes, mas, naturalmente, era pequeno e a janela estava fechada. 

Alexander tinha uma cama de casal, por algum motivo. O quarto inteiro cheirava como ele e estava tão nos conformes que eu sentia como se houvesse entrado num quarto de alguém que nem sequer conhecesse. 

Eu não fiquei reparando tanto assim nas coisas quando entrei ali. Havia uma cômoda de lado entre a porta e a cama, que era junto à parede. Eu dei a volta nela e Alexander se sentou devagar no colchão. 

— Você devia se deitar — eu disse. 

Ele olhou para o lado, respirando devagar. 

— Por que você está fazendo isso? 

— Não... importa. 

— Por quê? 

Alexander olhou para mim com os olhos pesados e eu me senti desconfortável a um extremo. 

— Você sabe o que eu sou? — ele perguntou. — Independentemente do que eu estou ou do que eu disse, das minhas intenções, de tudo... Não romantiza as porras dos problemas. Eu só fui abusivo com você e... 

— Um amigo — respondi, cortando-o. — E... porque eu quero. 

Ele continuou com os olhos nos meus e um silêncio ficou no quarto. Mesmo que fosse dia, estava tudo escuro como se fosse noite ali. Só ali, no mundo inteiro. 

Eu quase podia ouvir meu coração batendo. 

— Você tomou chuva e não está bem por motivos que são relacionados a minha pessoa --- continuei quase seca, mas sincera. — Eu me importo. 

Ele fechou os olhos de novo, sem mudar sua expressão. 

— Desculpe. 

Eu caminhei até sua figura para fazê-lo deitar na beirada da cama. Alexander estava mole e continuava queimando de febre. Ele murmurou alguma coisa que não consegui entender e procurei, pelo quarto, algum cobertor para jogar em cima dele e travesseiros. 

Havia dois interruptores perto da porta e eu acendi o primeiro, que mostrou ser uma luz bem forte. Apaguei-o e tentei o segundo. A luz era mais amarelada e baixa. 

— Eu já apago — falei —, só vou ver onde tem algo para cobrir você. Alexander, você comeu hoje? Se não comer, é óbvio que não vai melhorar... 

Alex concordou com um murmúrio. 

— Escuta, tem algum remédio, um termômetro ou qualquer coisa aqui na sua casa? 

Eu somente o olhei quando a resposta, novamente, foi monossilábica. Ainda que muita coisa precisasse ser perguntada, ele não devia conseguir pensar em nada para falar. Se pensasse, eu duvidava muito que saberia me dizer onde estaria. 

Agora que estava claro, dava para ver como aquele quarto era, realmente, de Alexander. Nos pôsteres, na organização, nos CDs sobre a cômoda e e... nos instrumentos que ele tinha. 

Aquele menino sabia tocar violão? Guitarra..? Desde quando? 

E havia aquele notebook vermelho, tantos cadernos e livros, uma cesta entupida com uma infinidade de papéis amassados... O que tanto eu não sabia? Aqueles pôsteres com desconhecidos de olhos puxados me deixaram absurdamente curiosa. 

Eu não queria sair abrindo o guarda-roupas dele, nem mexer em coisa alguma. Ainda que tudo estivesse passando rápido, a última coisa que me deixaria confortável seria estar na casa dele, ainda mais com ele naquela situação. Mas eu queria fazer o que sabia fazer antes que piorasse e ficar pensando em não ser invasiva atrasaria as coisas. 

Depois de Angelina me dizer aquelas coisas e brigarmos, eu devia dizer aquilo a ele, mesmo que eu mesma não houvesse digerido ainda que ela, minha única e melhor amiga, pudesse inventar tudo aquilo para prejudicar-nos ainda mais. 

Angelina na verdade, nos aproximara. 

Eu não sabia se estava feliz ou triste com isso. 

Havia uma pilha de cobertores dobrados dentro do guarda-roupas branco e eu peguei os dois primeiros para estender em cima dele, ambos de tecido xadrez e textura de manta infantil da Pernambucanas. Depois de fazê-lo, pedi para que se levantasse para que colocasse um travesseiro sob sua cabeça. Ele mesmo o fez. 

Alex estava de olhos fechados e suas sobrancelhas grossas estavam franzidas. Ainda tremia. A visão dele ali me preocupava mais do que a necessidade de dizer a ele sobre tudo o que havia acontecido. 

Com a luz apagada, dei alguns passos e sentei-me na beira da cama novamente. Ele respirava mais calmamente agora. Ainda assim, eu não quis tirar os olhos de sua figura. 

Por minha causa, aquele menino adormecido havia se arrependido de toda uma personalidade e história inventadas para me proteger. 

Tudo isso porque a ideia de que eu morresse ou me machucasse sempre havia lhe... assombrado, no fundo. 

Ele, de sua maneira, realmente se importava comigo. Uma maneira que só trouxe sofrimento e problemas. E era por isso que agora estávamos ali de novo depois de tanto tempo distantes. 

Alexander dormia de lado, com a mão segurando o cobertor e as pernas encolhidas. Daquela maneira, ele parecia tão frágil que, se quisesse, eu lhe faria qualquer coisa. Havia confiado em mim — ou estava tão mal — que se submetera a uma situação tão "perigosa" assim. 

Porque Alex era desconfiado. Para todo mundo, egoísta. Frio. 

E então aparecia ali, doente e dormindo como uma criança pequena diante de mim, depois de tantos problemas. 

Agarrei o lençol sob meu corpo com os dedos e desviei o olhar para o chão branco, vendo o vulto de um gato seguido de outro passar e os dois subirem na cama. 

Mesmo que talvez estivesse errada, eu naquele momento senti que agora havia conhecido todos os lados daquele garoto. 

Eu não imaginava que um dia iria ali, nem que a primeira vez seria daquela maneira. 

Um pouco mais no começo daquele ano, eu havia aprendido em sociologia o significado de "outsider", que é como um forasteiro que não se sente pertencente ao lugar onde está vivendo no momento. 

Não era como se eu fosse de fora e estivesse morando ali, na casa de Alexander, mas me sentia alguém muito diferente e numa casa muito diferente, que tinha um cheiro totalmente diferente. 

Era como se o quarto de Alexander falasse. Como se expressasse que quem dormia ali não era fácil --- que, como o quarto, era organizado e com seu lado diferente, agressivo, ao mesmo tempo. Não havia parado para imaginar como seria seu quarto, mas agora não poderia imaginá-lo de outro jeito. 

Ele não tinha uma cadeira cheia de roupas como eu, mas um espelho que tinha uma beirada com caixinhas. Nelas, dava para ver que havia as gargantilhas, pulseiras, coisas de prender e pintar o cabelo, desodorante e esse tipo de coisa... Eu não estava bem, repito, mas sorri pensando em como nossos papéis estavam sempre invertidos. 

Perguntei-me se, agora, seria possível que houvesse calmaria. Aquele momento com ele adormecido e eu ali, parada, foi como uma pausa no meio do caos. Uma amostra de que talvez as coisas ficassem bem, mesmo que feridas nunca se curassem de um momento para outro. 

Ouvi um ruído lá fora, como se a porta da sala houvesse se aberto. Eu queria que fosse seu irmão. Não conhecia a mãe dele e, me desculpe, mas eu não queria conhecer também... Se a mãe de Alex me encontrasse sozinha com ele em seu quarto, eu ficaria envergonhada pelo resto da minha vida, ainda que não houvesse nada entre nós. 

Ele, segundo todos os acontecimentos, era apaixonado por mim, mas não eu por ele. 

Meu olhar passeou pelos seus olhos riscados, pelo nariz pequeno e os lábios delicados que ele tinha. E Alexander não era bonito como os homens que alguma menina teria como papel de parede no celular ou mostraria a foto para as amigas. Ele era como um desenho que, por conta de um traço "errado", havia dado certo. 

Aquilo que nunca será visto igual por conta desse erro. 

Dessa diferença. 

Ele. 

— Tudo o que alguém te disse sobre mim — eu sussurrei baixo, soltando o que estava em meu peito —, foi tudo uma grande mentira... Nem mesmo eu sabia do que foi espalhado. Foi minha irmã, querendo me proteger... quem fez isso com você e sei lá mais quem. Ela quis te atingir. Desculpe, eu... não sabia. 

— Ela se parece comigo então — Alexander respondeu baixo, me surpreendendo. — Sua irmã é outra idiota que não sabe... se expressar direito. No final, ela agiu feito outra doente mental. 

— Ela me ama muito — disse. 

— Eu acho que adoraria conhecê-la. 

Aquela maldita ironia não havia mudado sequer um pouco. Eu pensei em como Alexander não adoraria conhecê-la. Com certeza ele também pensou. 

— Ela me amar... Isso não justifica esse erro. 

Eu fiquei em silêncio e o mesmo foi o que Alexander fez. 

Por longos minutos, ouvi somente meus pensamentos. Quando a respiração dele pareceu ter se regulado, eu imaginei que havia dormido e isso me acalmou um pouco. 

Suas declarações e seus toques passaram por mim como um vento frio e eu me levantei, tentando não fazer barulho. Ao menos naquele dia, mesmo com toda a minha determinação, o melhor a ser feito não era de maneira alguma continuar falando e fazer com que conversássemos. Ele precisava melhorar. 

Caminhei silenciosa em direção à porta. Se eu desse de cara com Andy, pediria que cuidasse dele depois de perguntar se havia ali algum termômetro ou remédio. Caso não houvesse, eu iria até a minha casa ou a farmácia e traria o que precisasse. 

Eu não queria que ele continuasse assim. Do jeito que era, nem mesmo iria pedir ajuda ao seu irmão ou ligar para sua mãe... Se eu não me metesse, ficaria daquele jeito o dia todo. 

Eu teria saído se uma mão não houvesse puxado minha camiseta. Cheguei a me assustar, mas somente prendi o ar no peito ao invés de exclamar alguma coisa. Estava acordado? 

— Por que vai embora...? — ele murmurou baixinho. 

Virei o pescoço para ver um Alexander de olhos metade abertos, metade fechados me fitando. 

De novo, eu pensei em como era aquela pessoa quem dava coices na escola inteira e em como, um dia atrás, havia me feito ficar com medo e raiva. 

Se Angelina soubesse... 

Se eu, antes, soubesse. 

Não acreditaria que alguém perdido como Alex queria o mal de alguém. 

— D-devia medir sua temperatura e trazer algum remédio — respondi. — Está resfriado. Pelo menos tomar um chá já melhoraria... Não é? 

Ele me olhava como se estivesse alucinando. Era o olhar de uma criança. Não existe outra maneira de descrever. 

— Não pode ficar? 

— Eu... Eu posso, mas... 

— Então fica... Só mais um pouco. 

Levantei tristemente minhas sobrancelhas enquanto via sua figura quase no escuro. 

— Fico — minha boca disse, me contrariando totalmente. — Mas... quer conversar? O que quer fazer?  

Alexander soltou minha mão e deitou o corpo novamente, fechando os olhos. Ele se moveu um pouco e soltou o ar no travesseiro, ficando imóvel pouco depois. Eu me sentei desconfortável no mesmo lugar de antes. 

Estava tudo tão quieto que ele ouvia a respiração dele quase acima da minha mente. Seu peito chiava. Era como um gato ronronando. 

— Não queria... ficar sozinho — declarou. — Cara, eu... vou me arrepender absurdos e minha cabeça não está nem funcionando do jeito de sempre... mas fique. Nem que seja para... que nós briguemos ou qualquer outra coisa. 

Abri a boca para responder, mas fechei-a em seguida. 

— Eu enchi a cara de remédios mais cedo — Alexander continuou. — Você vê... a minha cara de atordoado? Se eu dormir agora, minha cabeça só vai doer mais e mais depois e então vou acordar, pensar bosta e fazer mais bosta ainda na porra da minha vida. 

"Não queria ficar sozinho." 

Ele nunca havia dito isso. 

Aquilo... estava errado. Mas era sincero. Como se houvesse saído do fundo de quem ele era. 

Engoli em seco. 

— Não irei te deixar sozinho agora — eu disse. 

Ele colocou o braço na frente do rosto, de lado, quase totalmente coberto pela manta xadrez vermelha. Sua figura continuava mais baixa do que a minha. Mas dava para notar pelas veias do braço como havia emagrecido. Eu também devia ter ficado mais magra naquele meio tempo... Só que eu já era tão seca que, quando isso ocorria, a diferença nunca era gritante. 

Alexander era tão pequeno e tinha uma personalidade tão grande. Como um mundo próprio, com suas próprias complicações e coisas loucas. Um mundo em que havia rock em japonês como som de fundo, era sempre noite e todos tinham o direito de ser e fazer o que quisessem. 

O mundo de Alex era o mundo do "foda-se". 

E esse mundo era só dele, de mais ninguém, apesar de eu já ter sido convidada para uma visita. Eu não era "foda-se" para ele. Não sei como explicar. 

Ele abriu os olhos e deixou eles, cansados e avermelhados, pairarem sobre os meus.  

Nós tínhamos muitas coisas para dizer um ao outro, mas, naquele momento, era como se nada precisasse ser dito. Foi como se ele soubesse de tudo e como se eu, mesmo não sabendo nada, não precisasse saber mesmo de coisa nenhuma. 

Nós tínhamos uma professora de português — mais precisamente, dava literatura — que o Alexander dizia ser uma mentirosa das boas. Ela se chamava Mônica. Sempre que ia usar algo como exemplo, aquela mulher tirava sabe-se lá de onde alguma história da vida dela e a enfiava no meio da aula para explicar alguma coisa. 

Eu nunca havia pensado que ela mentia. Muito pelo contrário, na verdade, porque eu nunca fui muito capaz de duvidar das pessoas. Mas assim que o Alexander entrou na minha sala, nós nos aproximamos e passamos essas aulas de literatura juntos, ele começou a prestar muita atenção no que a Mônica dizia e fazia um monte de perguntas durante a aula que deixavam a professora nervosa e desmascaravam as historinhas dela. 

Por isso, toda vez que ela começava com algo que Alexander detectava como mentira... Ele olhava para mim e eu olhava para ele no mesmo momento. Nós nem precisávamos falar nada; só com isso acontecendo, eu já conseguia imaginar certinho o que é que ele perguntaria. 

Eu sempre acertava. Ele sempre perguntava o que eu achava que ia perguntar. Eu o entendia, na escola, só pelo olhar que lançava. 

Quando nós brigamos e nos afastamos, foi quase como se eu e ele houvéssemos perdido essa habilidade — mas, agora, por que ela parecia ter voltado assim? 

Alexander piscava os olhos vagarosamente, como se não quisesse pegar no sono. Eles estavam fundos. A boca estava mais ressecada que nunca. 

Eu não sabia o que eu estava esperando, nem o que ele estava esperando. Mas ele não queria ficar sozinho, então eu não o deixaria sozinho. Apesar de tudo, de toda aquela dor absurda... Quando passou por sua cabeça me perder, ele largou as coisas para trás e me procurou. 

Era óbvio que eu não o perderia para uma febre, mas ainda assim, eu disse que ficaria ali. 

E eu fiquei. 

— Polliana... Vamos discutir.


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Notas finais do capítulo

Obrigada a quem leu tudo, vocês são incríveis! Desculpa a demora, tive uns problemas pessoais, mas já tá tudo bem. Amo vocês!



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