Defeitos de Fábrica escrita por Lorena Luíza


Capítulo 21
XXI. Difícil de amar


Notas iniciais do capítulo

Valeu a todos os leitores fiéis que acompanham até hoje Defeitos de Fábrica! Amo muito vocês. O capítulo é menor e mais focado nos sentimentos da Lia do que em acontecimentos, então espero que entendam! Boa leitura ♥



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✏ 

— Polliana? — eu ouvi meu pai dizer alto e preocupadamente quando abri a porta de casa, não muito tempo depois de ter sido finalmente deixada sozinha por Alexander. — Que demora... O que houve?  

Desnorteada, empurrei com o pé o calcanhar do tênis oposto. Meus cabelos e braços pingavam água no chão e meu corpo tremia de frio. 

Antes, quando eu chegava em casa, já escutava os miados do gatinho enquanto ele cambaleava até mim e escalava minhas roupas. Depois de ele ter ido, tudo parecia silencioso — na verdade, era mesmo. Mesmo quando havia o som da água batendo na pia de metal ou a televisão ligada em algum canal de desenhos que eu assistia. 

Ter experienciado meu primeiro animal de estimação morrer antes mesmo de chegar a vida adulta entrava para a lista de piores memórias da minha vida. 

Não que essa lista fosse curta ou que fosse difícil que acontecesse algo a mais para complementá-la. 

Na verdade... andava sendo bem mais comum do que eu gostaria. 

Eu passara mais alguns minutos, sem reação, parada no mesmo lugar depois de escutar tudo aquilo que Alexander insistiu em dizer. Voltei para casa ainda mais tarde do que já era, com certeza. Meu pai devia estar preocupado. Tudo bem... Eu também ficaria. Só não queria que ele soubesse o que havia acontecido, definitivamente. 

Recentemente, meu pai sempre tentava conversar comigo. Como se estivesse escrito na minha testa que eu havia passado a vida toda sofrendo bullying, mas ele só conseguisse ler isso agora. E eram conversas desconfortáveis, constrangedoras. Eu me sentia mal por ele. Envergonhada por precisar daquele tipo de apoio. 

Não era aquele tipo de filha que eu queria que ele tivesse. Ele merecia uma menina maravilhosa. Sério, o meu pai... ele era alguém incrível. 

Quando, descalça, levantei os olhos para procurá-lo na sala ou na cozinha — que eram, se não fosse por um balcão, a mesma coisa —, encontrei-o de costas para mim enquanto lavava louça.   

Ele era muito grande, loiro e estava sempre de branco. Usava óculos, também, e estava com um avental cheio de frutas tropicais desenhadas. Muita gente perguntava se era pai-de-santo, mas, sei lá, ele era católico mesmo. 

Virou-se e pendeu a cabeça para mim como um cachorro, chacoalhando as mãos e as batendo na calça clara em seguida. 

Eu não quis olhá-lo nos olhos. 

Na verdade, eu não queria nada no mundo. Nada. Talvez desaparecer dele. 

Esse era o meu sentimento mais sincero.  

— Ah! – Ele colocou as mãos na cintura, parecendo preocupado em seguida. -- Tomou chuva! Por que não ligou e pediu para o pai te buscar? — Não sabia se existiam outros pais que falavam na terceira pessoa às vezes, mas imaginava que sim. Franzi as sobrancelhas e encolhi, devagar, os ombros. Eu sentia que não tinha mais voz. — Eu já, já vou pegar uma toalha... Fica aí! Tá bom?  

Ele se aproximou e pegou a sacola encharcada da minha mão. Eu só o seguia com o olhar, acuada, mesmo sabendo que meu pai não estava prestes a brigar comigo.  

— Molhou tudo, "fia", olha isso... Tá de brincadeira. — murmurou, depois levantando os olhos claros para mim. — Parece que vive com a cabeça nas nuvens. E por que essa carinha de assustada?  

Enquanto ele deixava a sacola no balcão, olhei para o relógio da sala. Fazia três horas que eu saíra. Relaxei os ombros, me sentindo arrependida.  

Eu com certeza devia ter continuado em casa.  

Ou não. 

Eu realmente não sabia. 

Quando meu pai foi em direção ao corredor dos quartos, abri a boca para perguntar:  

— Onde está... a Angelina?  

Minha voz saiu grossa e eu pigarreei. 

— No quarto — ele disse por cima do ombro. — O que aconteceu? 

— M-meu guarda-chuva estragou — quase sem pensar, respondi. — No meio do caminho. 

— Ah, alguém ligou perguntando por você mais cedo... 

Tirei com o dedo fios de cabelo molhado que caíam em cima do meu olho, fazendo naturalmente uma cara desentendida em seguida.  

Quase ninguém ligava para mim, nos dois sentidos da frase. Senti algo se remexendo no meu estômago. Eu queria entrar e ir até o quarto logo, para ver minha irmã, mas obedeci e fiquei no mesmo lugar mesmo sem querer permanecer ali.  

— No telefone de casa?  

Ele voltou, com uma toalha de banho azulada, e a jogou em cima da minha cabeça. Começou a secar meu cabelo, balançando minha cabeça e me olhando por cima. Respondeu  positivamente minha pergunta com um gesto, enquanto apertava cuidadosamente as mechas com o pano. 

— Quem ligou? 

— Alguém da escola. — Ele estava sério. Tirou a toalha de mim e a entregou em minhas mãos. — Vá tomar um banho bem quente para não ficar doente, quero conversar com você depois. Vai, rapidinho. Bem rapidinho. 

Olhei-o sem entender, segurando a toalha macia automaticamente. 

Não sei quando havia ouvido isso dele antes, principalmente naquele tom. Minha confusão dividia-se em quem teria me ligado e o motivo de meu pai estar assim. Eu nem mesmo sabia se havia feito algo errado para ele precisar conversar comigo. 

Ainda que não fosse como se eu não imaginasse o motivo da conversa, eu senti que havia algo diferente dessa vez. 

— Por quê? 

O homem crispou os lábios finos e desviou o olhar. Eu não sabia decifrar aquele rosto. Não sabia se era preocupação ou, talvez, decepção. 

Eu estava tão sem rumo que não conseguia nem mesmo pensar tanto quanto eu pensava antes de tudo.  

— Só vá logo, filha, por favor.  

Apesar de não querer, eu obedeci.  

✏ 

Empurrei a porta do box sem força, fazendo-a deslizar para o lado e sendo seguida por um rastro quente de vapor até pegar uma toalha para me enrolar e secar. Saí me lembrando de que havia esquecido de escovar os dentes na água quente do banho, como costumava fazer. Escovei-os na pia e os dentes doeram de sensibilidade na água gelada. 

Havia passado quase uma hora no banheiro, mas ninguém bateu na porta para reclamar. 

Cuspi a pasta azulada no ralo da pia e olhei meu reflexo nu no espelho. Estava evitando-o recentemente. Vi minhas olheiras, minhas incontáveis sardas, meu cabelo molhado numa mistura estranha de laranja, castanho e loiro jogado todo para trás. O olho manchado de marrom que tinha.  

Abaixei um pouco a toalha para olhar meu tórax. Mesmo nua, eu ainda me parecia com um garoto. Dava para ver os meus ossos e eu não sabia se era um problema de saúde ou não o fato de meus seios não existirem. 

Às vezes, isso fazia eu me sentir menos mulher. Não era como se eu não ter seios fosse algo que eu mesma achava ruim, mas... Todo mundo dizia que não era bonito. 

"De que importa?" 

Só me olhei. 

— Quem é você, mesmo — por dentro, era uma pergunta, mas minha voz não saiu em tom de indagação. O ar quente de minha boca embaçou o espelho e me tornei um borrão por alguns segundos. — O que é você? 

Não fiz uma careta e ri de mim mesma, como fazia antes, nem fiz um moicano engraçado com o cabelo úmido. Eu só me vi e, depois de sair, vesti uma roupa limpa no quarto. Minha irmã não estava ali. Meu celular, que eu devia ter deixado sobre a cama, também não.   

O que havia acontecido realmente me afetava. Da primeira vez em que saí do banho, pouco antes, havia notado que não me lembrara de lavar os cabelos. Minha cabeça estava tão, mas tão cheia. 

Ter ficado aquele tempo inteiro debaixo do chuveiro ao menos fez minha mente se acelerar um pouco. 

Eu não havia, ainda, parado para listar mentalmente os fatos. As coisas só se repetiam e eu ficava indiferente em relação a elas, ao menos naqueles momentos. Eu sabia como estava: impressionada. E impressionada demais para chorar, sofrer ou qualquer coisa, ao menos antes de ter garganta para engolir tudo aquilo.  

Tudo era só um vazio.  

Diferentemente de antes, não senti raiva, dor, nem nada. Acho que não havia batido ainda a realidade em mim. 

Eu saí pelo corredor e fui para a sala. Angelina estava mexendo no meu celular, sentada no sofá.   

— Por que pegou meu celular? — eu perguntei. 

Ela me olhou, de longe, e franziu as sobrancelhas. Não olhou o celular, mas seus dedões fizeram mais uns dois movimentos disfarçados na tela antes de Angelina apagá-la.  

— O meu... Meu aplicativo do Facebook está fechando sozinho — ela murmurou num tom estranho. — Só vi se o seu faz o mesmo, quem sabe não era só no meu celular.  

— Era só me avisar...  

— Pode pegar aqui. — Minha irmã estendeu o celular para mim. — Não estava fazendo nada demais. Se desconfiar, pode olhar onde quiser. Mesmo. 

Eu aceitei o celular, olhando para ele sem mexer em nada. Não havia nem sentido falta dele direito e não desconfiava dela. Quando me sentei ao seu lado, levantei as pernas e as cruzei, deixando os chinelos no chão e pondo as mãos no espaço entre as coxas.  

Olhei-a, sabendo que ela e meu pai eram tudo o que tinha. Minha cabeça doía muito e eu estava começando a me sentir muito triste. Angelina me olhou, apertando um lábio contra o outro.  

— Por que chegou tão tarde e, ainda, tão molhada? Eu te vi saindo com um guarda-chuva, o pai disse a mesma coisa, inclusive. — Ela estreitou os olhos, como se soubesse de algo. — Aconteceu algo, Liana? Que você queira me contar?  

Eu engoli a saliva que tinha na boca e a olhei por alguns segundos. Desviei o olhar para a estante pequena da sala, pousando-o acima de um retrato meu de cabelos grandes e aparelho ortodôntico. Senti um peso muito grande em duvidar se devia ou não falar aquilo para ela.  

Angelina, depois de saber das coisas que Alexander me dissera aquele tempo atrás, havia passado a odiá-lo muito. A cada vez que ela me via triste e sabia que era por sua causa, seu rosto deixava clara a raiva que nutria por ele. Além disso, até então e como eu já disse, ela se esforçava mais do que qualquer coisa para me fazer mudar e me curar daquilo tudo. 

Lina gostava de rir dele para disfarçar a raiva que sentia. Ficava procurando coisas dele na internet e dizendo para mim o quanto o achava ridículo e como era um lixo de pessoa. Que se o encontrasse na rua, teria até mesmo vontade de cuspir nele. 

Isso me deixava triste com ela. 

E comigo, por isso doer em mim. 

Senti-me um lixo por conta do que havia acabado de acontecer e não fui capaz de dizer para ela, porque, afinal, se eu começasse a falar, não conseguiria mentir. 

Eu não estava bem para tê-la brigando comigo. Por mais que não quisesse, além disso, eu estava me perguntando como Alexander estaria. Se havia ido para casa ou não, se ainda estava molhado, se aquela aparência doente era apenas momentânea.  

Depois de voltar para casa e tomar banho, eu me sentia mais... eu. Porque ainda não lidava bem com o que dissera a ele, com como havia agido. Se eu estivera certa ou não, se devia acreditar em algo...  

— Não foi nada — quando respondi Angelina, foi isso o que disse. Eu olhei-a nos olhos, mas não conseguia mantê-los ali enquanto mentia. — Meu guarda-chuva estragou quando eu estava voltando e perdi tempo tentando arrumá-lo... S-só isso. Não adiantou.  

— Entendi — ela respondeu, expandindo as narinas e me olhando de lado. — Então está ótimo. Veja se não coloca as roupas molhadas junto com as outras secas no cesto, então, para não mofar tudo de uma vez. 

Minha irmã se levantou e jogou a almofada que segurava para mim, séria. Ela me olhou por uns segundos e eu estava certa de que não havia acreditado em nada, mas não quis me justificar. Angelina foi para o quarto e eu fiquei sentada no sofá, me sentindo um nada.  

O rosto de Alexander me veio à mente. Pálido, de novo. As sobrancelhas grossas e as lágrimas dele. 

Um palavrão saiu pela minha boca e eu mordi o lábio com força, abaixando o olhar. 

"Saia da minha cabeça, por favor", pensei. "Só me deixe descansar essa noite." 

Havia um espaço na estante, vazio, em que Filhinho sempre entrava e ficava escondido. Eu sentia muita falta dele. Doeu tanto quando ele morreu que eu acreditei que ninguém da casa se sentiria com vontade de ter outro animalzinho nunca mais. 

Sei lá, aquelas coisas todas, mesmo as de antes, e as de agora... Os atos de Alexander. Eu não sabia se isso era influência de eu  saber que continuava ingênua, mas, pensando... Quem sabe tudo tivesse um fundamento.  

Pensar assim já me fazia imaginar Angelina dando um tapa na minha cara, mas eu senti pena dele.  

Não sei dizer se era mais de mim ou dele. Mas a visão dele, perdido daquela maneira e dizendo coisas que eu mesma não diria nunca, era uma coisa horrível. Não me canso de falar disso. Foi aterrador. Ninguém passaria por algo assim.  

Não pude continuar pensando nisso porque meu pai entrou, pelos fundos da cozinha, onde ficava a lavanderia. Eu olhei para ele e me lembrei de que ainda conversaríamos. Será que, se eu dissesse que estava cansada e que achava melhor fazer isso amanhã, ele concordaria?  

Se bem que aquilo tiraria ainda mais o meu sono caso eu o fizesse...  

Eu me lembrei que Alexander havia citado meu pai e algo que ele havia dito. Se eu tocasse no assunto, teria que contar tudo, desde o começo... Não era isso a melhor coisa para mim naquela hora, eu sabia. 

— O senhor vai conversar comigo agora? — perguntei, estendendo as pernas e calçando, ainda sentada, os chinelos. — Se não for, acho que... vou dormir. 

"Eu quero morrer", é o que eu queria ter dito. "Por favor, pai, me desculpe, mas eu não tenho mais ânimo nem mesmo para abrir a boca e falar." 

— Se estiver muito cansada, não tem problema —-- ele respondeu, colocando o baldinho de prendedores de roupa em cima do armário e pegando um para fechar um saco aberto de alguma coisa. 

Fiquei acompanhando o que ele fazia com os olhos, sentindo o coração na mão. Provavelmente, seria só mais uma conversa daquelas que já havíamos tido mil vezes. Sobre... coisas ruins que aconteciam comigo. 

Mesmo assim, antes de cada uma delas, eu sempre sentia nervosismo. Levando em conta o meu dia, o nervosismo daquela vez foi muito pior, somando tudo. Não era "nervosismo"; na verdade, era algo que eu não sei nem mesmo descrever. 

— Não estou, pai — acabei por dizer. — Pode ser.  

Ele desamarrou o avental, de olho em mim, e pendurou na parede. Passou pelo canto do balcão e foi em direção aos quartos, então levantei-me e o segui. 

— Não precisa falar para a sua irmã — meu pai disse, pouco depois de darmos uns passos além da porta do meu quarto e dela. A casa era muito pequena. Por isso que ele sussurrou: — Você sabe como ela é.  

Soltei um murmúrio em resposta. Quando entramos no quarto dele, ele empurrou a bagunça da cama de lado para eu me sentar na beirada e se sentou também. Olhou para mim como se não soubesse o que fazer comigo. 

Eu não entrava ali quase nunca. Tudo ainda tinha o cheiro e o jeito da minha mãe, mesmo que as coisas, depois de tanto tempo, já não fossem mais tão organizadas quanto quando ela também vivia conosco na casa.  

Eu ainda sentia falta dela. Da voz, do carinho que ela me fazia, da comida. De como penteava meus cabelos.  

Havia um quadro dela virado contra a parede. Meu pai queria tirá-lo dali, mas eu nunca deixei. Ele mantinha o rosto dela encarando a pintura clara. 

Queria que ela voltasse. Só pensar em seu rosto, eu fiquei ainda pior. Aquela lembrança acabou puxando a traição de Sam e, consequentemente, a de Alex. 

Cabisbaixa, perguntei-me se havia sido mesmo uma traição. 

Se eu havia reagido em exagero a ele e cometido um erro. 

— A Angelina sabe — eu disse ao meu pai. Ao pensar nela, também pensei em Alex. No que ele havia dito e nas perguntas sem resposta que ficaram. — Não precisa falar baixo. Ela sabe. Todo mundo sabe.  

Eu soltei uma risada no final da frase. 

— Que eu sou idiota — completei. 

Piedoso, e fez um gesto para que eu fosse para perto. E como fui, ele recostou-se à cabeceira e me aninhou em seus braços enormes. Meu pai estava com cheiro de comida e perfume masculino ao mesmo tempo.  

Eu o abracei e ele beijou meus cabelos.  

Senti vontade de chorar. Finalmente, uma vontade de alguma coisa. Não estava apática mais. 

— Eu sei que todo mundo sabe o que acontece comigo. 

— Querida... 

— Eu não queria ter essa conversa de novo. 

— Você não sabe como dói te ver assim. — Aquela voz era a que eu mais amava no mundo, independentemente de como eu estava naquele dia. — Tudo vai melhorar, deixe-me falar com você, minha princesa. Papai promete. 

Eu me afastei dele apenas para olhá-lo nos olhos e eu esperava um olhar conformado e triste, mas ao invés disso ele deu um sorriso curto. 

"Não vai ficar nada bem", eu pensei. "Não tem como ficar bem." 

Cada coisa que ele dizia me remetia às palavras de Alexander. Meu coração estava palpitando. 

Contive um soluço. 

— Desculpa, pai... 

— Eu não vou perguntar as coisas — ele falou compreensivo, com aquela voz de Papai Noel que tinha. — Eu sei que não quer falar nada, então não vou insistir em nada. Minha mocinha já pode... tomar suas próprias decisões. 

"Não, eu não posso", respondi mentalmente. "Não as decisões corretas." 

Eu me senti... uma droga, mas uma droga confortada. 

Tão dividida quanto sempre. 

Ele me apertou de volta, passando os braços pela minha cintura. Meu pai levantou-se e me levantou junto, o que me assustou pela maneira repentina como aconteceu. Só ele para me levantar assim, como se eu não fosse nada. 

— Vou contar uma história que vai deixar as coisas melhores e esvaziar os seus pensamentos muito, muito rápido. Num "plim"! — ele disse, dando um giro no chão. Depois disso, pôs o joelho na cama de casal e me largou ali, fazendo o colchão ranger. — Fedegosa do pai.  

Num misto de surpresa e confusão, abri a boca para responder e nada saiu de lá. Acabei rindo, confusa. Ele pegou um cobertor grosso de dentro do guarda-roupa e o estendeu em cima de mim, jogando-me um travesseiro florido logo depois. Havia me chamado, depois de tanto tempo, da maneira como me chamava quando eu era uma criança pequena. 

Aquilo não me confortou realmente. Eu só... me distraí por um minuto. Quando aquilo tudo voltou à minha cabeça, eu me senti mal novamente. 

Depois disso, ele colocou os óculos sobre o criado-mudo e tirou os sapatos. Estava com um pé de meia cinza, outro preto — não que eu nunca houvesse feito isso... Em seguida, cobriu as pernas compridas que tinha e fez para que eu fosse ficar debaixo do braço dele, o que eu fiz. 

Ficou em silêncio por algum tempo e eu fiz o mesmo. Parecia que... aquela conversa simplesmente não seria a mesma coisa que eu tinha dentro da cabeça. Acho que não brigaria comigo. Muito pelo contrário. 

Olhei-o e vi um nariz comprido, as minhas sardas no rosto de outra pessoa. Mesmo tendo sorriso momentos atrás, eu fiquei tomada de novo pela vontade de chorar e abaixei os olhos. Ele ajeitou os braços ao meu redor e, sério, deixou um som de limpada de garganta se juntar ao da chuva lá fora. 

Eu comparei inconscientemente os braços frios e frágeis de Alexander ao meu redor contra os braços quentes do meu pai ali, naquele momento. O sentimento de que um precisava de mim contra eu precisar de outro. Eu forçando uma personalidade e uma raiva com Alex, enquanto chorava nos braços de meu pai. 

Meu coração doía. Nada havia se resolvido. Coisas haviam sido ditas e confusões ainda mais intensificadas. 

— Eu fiquei com medo quando você nasceu. Você vai saber como é um dia— ele deixou escapar, soltando o ar do peito. — Ser pai de alguém é uma coisa totalmente diferente de qualquer outra no mundo inteiro. Mesmo que a Angelina já estivesse aqui e mesmo que eu já tivesse tido um relance do que era ter uma vida dependente de mim, vinda de mim, pegar você nas minhas mãos foi novo da mesma maneira, Polliana. 

Ele passeou os dedos grandes pelos meus cabelos úmidos e eu senti um caroço entalado na minha garganta com as palavras que havia escutado. Lina estava ouvindo música baixo no outro quarto e a chuva batia na janela de metal. 

Sem ter o que dizer, fechei meus olhos no escuro. 

— Sentia muito medo de não ser um bom pai para a Angelina. Depois, senti muito mais medo de não ser para você também — declarou. — Angelina era... independente. Como a Helena. E, ah, quando você veio, não só por conta dessa sua cara de Cláudio — ele falou e sorriu, apertando meu rosto —, ela disse que você era um clone meu e me disse: "Vai, você escolhe o nome, então, já que é a sua cara". 

Eu já sabia que havia sido meu pai quem havia colocado esse nome em mim, mas, ainda assim, eu não quis dizer nada. Eu só quis ouvi-lo. Aquela voz sulista calorosa e cheia de amor estava fazendo o papel de uma lareira naquele quarto. 

Eu sorri, mas não sei dizer se era felicidade ou não. 

— Tinha uma menininha, Pollyanna — ele falou —, e ela procurava o lado bom em todas as coisas na sua vida, mesmo tendo uma tia muito mal humorada e muitos problemas na sua história, que eu li há muitos e muitos anos atrás. Eu sabia que a minha filhinha iria se parecer com ela, Polliana. Porque eu, quando era pequeno, precisei muito jogar o "jogo do contente". E eu estava certo, você é a menina mais otimista e a que tem o sorriso mais lindo que o pai já viu. 

Meus olhos se encheram de lágrimas. 

Eu... otimista? 

E bonita? 

Além dessas coisas, eu não sabia do que ele havia acabado de me contar. 

— Por que está falando disso? 

— Porque você é o presente que Deus deu para eu cuidar. Agora, para eu orientar — ele continuou. — Eu me lembro de cada curativo que já coloquei no seu joelho, minha menininha. De cada borrachinha colorida que você escolhia para pôr nos dentes toda vez no consultório. De como você cresceu tão rápido e ainda continua tão pequenininha para mim. E eu sempre quis --- Meu pai fez uma pausa e me apertou um pouco --- te proteger de tudo, de tudo o que existe de ruim lá fora, mas quando eu não consigo mais... Quando há algo que eu não posso tomar a frente e te defender, é porque é a Polliana quem tem que resolver as coisas. Com o otimismo. Vendo coisas boas em tudo, como uma menininha com o mesmo nome que você. 

— Eu sinto muito — murmurei —, pelo que o senhor soube da escola... Eu não queria ter sido fraca assim, mas é que eu não quero continuar naquele lugar. Me desculpa, pai, eu... 

Ele fez um chiado, seguido de estalos negativos com a língua. 

— Tudo bem — calmo, me disse, acariciando meus cabelos.— Eu sei que não vai adiantar nada ficar falando que vai passar ou que o pai vai fazer ficar tudo bem, porque agora você já cresceu muito e é tão independente quanto a Angelina, não é? Não é verdade? — Como se soubesse que eu estava prestes a chorar mais, ele fez uma pausa para me fazer cócegas. — Quando eu olho para você, Polliana, e quando eu penso em como você é, eu sei que eu posso esperar as melhores coisas que existem! Eu sei que as suas decisões, só suas... Elas são as certas. Porque você quer o bem de todos e isso é a coisa mais preciosa que existe. 

Meu pai deu um beijo demorado entre os meus cabelos, me deixando sem reação por um momento. 

Por que... aquilo tudo? 

Mesmo que a confiança que ele havia depositado em mim me deixasse feliz, a vontade de chorar parecia transbordar pelo meu peito e logo alagar o quarto com minhas lágrimas. Doía demais. Ele esperava mais de mim do que eu havia esperado em toda a minha vida. 

Eu fiquei com medo de acreditar e aumentar minha autoestima para me decepcionar depois. 

Mas, mais do que isso... Eu não queria decepcioná-lo. 

Ele fazia parecer fácil até quando eu estava difícil de amar. 

Cochichou dizendo que me amava e depois me chamou pelo apelido de criança de novo. Eu sorri em resposta, sentindo o cheiro de desodorante e arroz que ele emanava. Quando saiu do quarto, meu pai disse que hoje eu devia dormir na cama dele porque ele "estava morrendo de vontade de dormir numa cama de solteiro há muito tempo". Claro... Com certeza! É lógico que não acreditei, mas acabei ficando ali. 

Antes de eu dormir, ele fez um leite misturado com leite em pó e Toddy e insistiu para que eu o tomasse. Depois de fazê-lo, mandou escovar os dentes e dormir bem, o que eu queria muito que acontecesse. 

Eu me deitei virada para o lado e encarei a parede no escuro, ouvindo ele fechar a porta e depois ficando finalmente sozinha. Tentei deixar o corpo relaxar e a mente esvaziar. Sabia que não ia dar certo. 

Aquela imagem voltou a ocupar minha cabeça e antes de me questionar todas as coisas ouvidas, eu me perguntei automaticamente como ele estaria. E eu notei, em seguida, que... continuava me pondo em segundo lugar até quando me distanciei de tudo o que supostamente me prejudicava. 

Meus pulmões doíam e o nariz escorria --- o que, claro, era de longe o maior dos meus problemas. Eu andava comendo muito mal ultimamente e já era seca por natureza. Ficar vomitando qualquer comida que ingeria não era das melhores coisas a se fazer sendo Liana. 

Mas, ainda assim, eu... Não queria me matar, como Alexander havia dito. Só mais um dos fatos que me fazia querer chorar até encher uma represa. 

Não era como se eu tivesse uma grande vontade de viver; mas, ainda assim, não era como se eu quisesse terminar com tudo tão... cedo. Mesmo já tendo passado por tantas coisas tristes (para mim). 

Não era aquilo que eu queria que ele pensasse. Por mais que eu fosse fraca, não queria me humilhar daquela maneira, tendo conhecimento de que ele tinha a maior certeza do mundo de que eu já havia até cortado os meus pulsos e coisas assim. Se Alexander, que me conhecia, pensava dessa maneira, a escola toda devia achar que eu fazia coisas bem piores... 

Eu agarrei uma dobra do lençol e engoli em seco, me negando a chorar de frustração. Quem poderia ter espalhado um rumor desses? Alexander mencionou meu pai, mas... meu pai era praticamente igual a mim, por que ele faria isso comigo? 

Aliás, por que é que alguém teria coragem de falar coisas de mim que nem mesmo eu sabia sobre mim mesma? 

O que alguém iria ganhar com isso? Eu não havia feito mal para pessoa nenhuma além de mim. Não era como se fosse uma vingança ou algo do tipo! 

E o Sam, por mais que tivesse raiva de mim... Ele seria capaz de espalhar uma coisa dessas a meu respeito? 

Ou aquela ideia havia surgido mesmo da cabeça de Alex, que já tinha certeza do que esperar de mim, e por algum motivo acabou associando meu pai a isso? 

Eu me levantei, envolvida nos cobertores, ainda, e fiquei sentada na cama no escuro, com a mão no celular quente o tempo inteiro. Por que eu ainda ficava esperando por algo? Nem mesmo Becca falava comigo... Eu não tinha nem mesmo cinco contatos em minha lista. Míseros cinco. Sem contar meus familiares, não seriam nem mesmo três. 

Doía muito pensar que ser sozinha no meu caso não era um exagero, nem um momento, nem uma brincadeira. 

Eu queria ser como aquelas garotas da TV que tinham um grupo de três amigas e muitos conhecidos, que pensavam que estavam sozinhas no mundo só por levar um fora do garoto amado. 

Porque... no caso delas, nunca é verdade. 

Não existe coisa pior do que sentir falta de algo que te faz mal. Eu me recordei das mãos frias dele, do toque da boca sempre ressecada, dos braços trêmulos e encharcados. Aquela cara de quem não tem sentido na vida. 

Eu queria saber onde ele estava, como estava, o que pensava, queria saber a veracidade de suas palavras...! Queria saber de tudo. Queria terminar com a minha tristeza logo, pois eu já estava daquela maneira havia tanto tempo e não conseguia colocar em prática o meu plano de superar tudo e seguir em frente. 

Eu queria tanto... ajuda! 

Encolhi meus ombros, deixando o choro cair, e esfreguei meus olhos com a manga da camiseta. 

 Se eu não havia enganado ao meu pai, que não sabia de nada... Como eu enganaria a mim mesma? Eu não sou assim... Eu não consigo sentir... ódio nenhum. Eu só consigo me frustrar com tudo e esperar demais até de mim mesma. 

Mas agora, que tudo já estava feito e eu já havia ouvido tudo, o sentimento mais confuso era o de que talvez um peso estivesse saindo de minhas costas. Como se, o tempo todo, eu quisesse que fosse uma mentira e que aquilo que eu havia presenciado "hoje" tivesse... finalmente acontecido. Era como... um alívio culposo. 

Enxuguei as lágrimas de novo e pensei na humilhação que ele havia passado, além da minha... E em como ele parecia alguém totalmente sincero e diferente diante de mim. Pensei em todas as coisas que havia falado, sobre realmente me amar e não querer mais me ferir depois disso. Pensei no meu pai, em Angelina, em... mim também. 

E, quando notei, horas depois, eu havia dormido sentada mesmo, onde estava. 

Acordei com o rosto repuxando as lágrimas secas e suada no pescoço por conta do cobertor. Joguei-o de lado, desnorteada, pensando em porquê tinha acordado — havia sido como se décadas houvessem se passado até que pegasse no sono... Por um momento, me esqueci de todo o acontecido e pensei que seria um dia normal, mas infelizmente eu me recordei em menos de um minuto acordada. 

Ainda estava escuro. Não entrava luz nenhuma pelas frestas da janela. Os cães do vizinho latiam, latiam e latiam mais ainda, o que devia ser o motivo de eu ter acordado. 

Minha mão direita segurava o celular e eu o acendi para ver que horas seriam. Eram cinco da manhã. Senti-me aliviada por ter dormido bastante tempo, pois fazia tempo que não dormia assim; havia sido por causa do cansaço ou por ter chorado. Quando chorava, sempre dormia rápido. 

Levantei-me jogando o cobertor para o lado e calçando meus chinelos. Abri a porta e não estava tão escuro assim no corredor... Caminhei ao banheiro sentindo o nariz escorrer e torcicolo por ter dormido naquela posição sem sentido. 

Parecia que... um peso estava a menos naquele dia. 

Fiz o que tinha de fazer e fiquei com vontade de vomitar quando escovei os dentes. Meus olhos estavam inchados e a mancha castanha parecia bem mais forte que de costume, o que, como sempre, fez eu me sentir chateada e feia. A franja grande e meio cacheada servia mais para cobrir meu olho do que para qualquer outra coisa. 

Olhei o reflexo e respirei. Palavras se passavam pela minha cabeça e emaranhavam-se durante os trajetos. Meu celular assoviou dentro do quarto. 

Se fosse verdade, Alexander havia se apaixonado e feito mesmo um monte de coisas erradas por aquela coisa descabelada, desnutrida e sardenta que estava ali, no espelho. 

Eu... fiquei vermelha com esse pensamento e saí, pegando o celular e indo para a sala. Falei palavrões de novo e me senti muito mal educada e má por conta disso. Era tão constrangedor. 

Era raro algum barulho vir de meu celular e era só a notificação de um aplicativo aleatório de jogo. Quando eu a deslizei de lado, me veio à cabeça Angelina com meu celular em mãos e, em seguida, a voz de Alexander falando dela. 

"Eu estou falando disso! De... Daquilo tudo, do celular de sua irmã, que você pegou, das coisas que aconteceram...!" 

Antes de ter tempo para pensar em qualquer coisa, a porta do meu quarto abriu-se e ela saiu, com roupas no braço e aparência sonolenta. Era praticamente madrugada e ela me olhou sem expressão. 

 — An...gelina? 

Alguma coisa dentro de mim fez com que eu sentisse um tapa na cara repentino e muito, mas muito violento. 

Pontos se ligaram. 

Angelina odiando Alexander. Coisas sendo espalhadas. Meu celular nas mãos dela quase sempre e Alex aparecendo do nada na frente da minha casa, desesperado por algum motivo que eu não conseguia imaginar. 

A única pessoa que saberia de mais coisas sobre mim do que Alexander para ser capaz de espalhá-las seria ela. 

— São cinco da manhã e eu já acordei bem tarde — ela murmurou em resposta, franzindo as sobrancelhas. Eu peguei em seu braço com firmeza, afrouxando os dedos em seguida. — O que é? Você podia estar dormindo. Eu não. Não venha falar na minha orelha logo a essa h... 

Eu senti como se minha boca houvesse se aberto sem que eu controlasse isso. 

— Você fez alguma coisa no meu celular, não foi? 

Minhas palavras saíram atropelando as dela e eu arfei, sentindo meu coração descompassar e uma série de coisas disputando minha cabeça. 

Suas pupilas se focaram nos meus olhos quando ela virou o rosto para mim novamente, de boca entreaberta e as narinas dilatadas novamente. 

Perturbada.

Meu pai havia dito que eu poderia fazer as coisas por mim mesma, tomando minhas próprias decisões; naquele momento, eu decidira mesmo sem notar que pensaria menos e decidiria mais.

O que eu mais queria era saber de tudo, tudo.

— O que você inventou sobre mim, Angelina? — eu perguntei firmemente. — E o que você fez com o Alexander para deixá-lo daquele jeito?

✏ 

Quando era só uma criança
Eu mal conseguia esperar para crescer
Tentava andar com seus sapatos
Mas não conseguia nem mesmo amarrar seus cadarços
Não importa o quanto grande e alto eu ficasse;
Sempre estive olhando para você

Você me mostrou que eu era só um "diamante bruto"
Me ajudou a crescer até a pessoa que me tornei

Já ficamos para baixo
Já estivemos em alto astral
Espero ter te feito orgulhoso o suficiente
Você fez tudo parecer fácil, mesmo quando eu estou difícil de se amar

Quando saí da escola
Você disse que minha hora havia chegado
Fui um rebelde sem causa
Só não sabia o que era isso
Então esperei, e pulei a barricada
Você disse ter feito a mesma coisa em minha idade
(Hard to Love, ONE OK ROCK)

 


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Notas finais do capítulo

amo vocês. um beijinho ♥ ♥ ♥ espero que comentem e continuem acompanhando!