Defeitos de Fábrica escrita por Lorena Luíza


Capítulo 20
XX. Enterro


Notas iniciais do capítulo

Só tenho desculpas a pedir e agradecimentos a quem esperou esse ano inteiro, literalmente, para saber o que aconteceu. A quem não esperou e abandonou a história, não os culpo, pois eu quase fiz isso também.
As coisas mudaram muito pra mim nesse ano e espero que essas coisas, que me mudaram, tenham me feito amadurecer e ser uma pessoa melhor para poder escrever melhor, também! Quem sabe assim que der bastante tempo, eu conto tudo pra vocês aqui nas notas, hehe ♥
Amo muito vocês, espero não decepcionar.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/621071/chapter/20

Você sabe, o mundo... Ele não é a coisa contente e cor-de-rosa que você espera que seja. 

☀ 

Liana 

Eu nunca senti que fosse perder a esperança nas pessoas. 

Para mim, nunca houve um momento em que eu me visse no mundo e pensasse que não poderia confiar em ninguém. Todos tinham os seus lados bons e os ruins. Você só precisava saber o que enxergar, ao que dar valor e com o que se importar… Sempre foi questão de escolha. Tudo está sempre girando, literalmente como a Terra — num momento, a pessoa é Sol e pode te aquecer, mas em outro ela pode desaparecer e te deixar passando frio; era preciso saber em que hora tocá-la e aceitar o que ela tinha a te oferecer, não é? 

Pergunto-me se seria por isso que nunca devo ter realmente pensado que Samuel era alguém apático em relação a mim até que tudo aconteceu. Foi como se tudo ao meu redor houvesse se congelado, quebrando-se em seguida. Minhas lágrimas escorreram como se fosse esse gelo derretendo com o calor de Alexander. 

Ele não era o Sol. Não era ele quem havia me aquecido até então, não era ele quem estava comigo apenas por pena. Jamais havia sido Alex a pessoa por quem eu nutria o que sentia por Sam. 

Ele era a Lua. Podia não parecer, mas ele sempre surgia, mesmo que no frio, à noite e quando eu já estava no escuro, sozinha. Proporcionava-me luz, ainda que pouca — e essa luz me ajudava a ver o caminho. 

Era como se ele sempre quisesse dizer "você pode me ter, mas apenas espere pelo momento certo". Como um "não preciso ser como ele para estar aqui por ti". "Não é necessário demonstrar da mesma forma que ele que me importo demais com você." 

Eu não sei o porquê. Talvez fosse por isso que confiasse tanto nele, por Alexander não ser como os outros, mas ainda assim ligar para mim. Da maneira dele, que eu devia valorizar mais do que valorizava. 

Não foi apenas um balde d'água fria saber que ele não era o único que se importava comigo, mais. Saber que tudo não passara de fingimento mudou completamente a minha vida. Eu achava que Alexander fosse o melhor amigo de toda a minha existência, mas ele mostrou que nem mesmo como "inimigo" se encaixava. 

Ele não era nada além de um alguém que chegou com uma intenção, mas saiu com outra. Quis se aproveitar de mim, só que nem de servir para isso eu era capaz. Eu devia ter agradecido por ele ter me magoado e, ainda, ter deixado tão claro que eu precisava mudar caso não quisesse mais passar por aquilo. 

Mas eu não o fiz. Eu fui covarde, eu fugi. Deixei tudo para trás e me vi perdida dentro de mim mesma. 

Quando eu encontrei um apoio, apenas ouvi de Angelina que eu não devia agradecer, chorar ou pedir desculpas. Eu devia simplesmente esquecer caso não me sentisse a vontade para me vingar e encontrar uma maneira de tratá-lo mal. Devia mostrar que eu não havia nascido para ser pisada e que não estava ali para ele se divertir. 

Eu vi que talvez eu acreditasse demais nas pessoas e isso fosse a culpa de eu não ter amigos de verdade, nem um namorado, nem uma família que fosse algo além de uma irmã e um pai que só ficavam próximos a mim por pura obrigação. Eu sabia que Angelina não tinha paciência comigo e que meu pai não tinha tempo para me ouvir. 

Viver como Liana, a partir de agora, era doloroso. 

E eu quis esquecer, quis ser melhor do que isso, quis ser quem eu não era. Quis forçar garganta abaixo uma ideia de maturidade que jamais seria a minha. Eu não tinha muito — não, de maneira alguma —, mas foi como se eu houvesse perdido tudo. E perdi para poder começar algo novo. Para poder ser outra pessoa que soubesse lidar com pessoas, sentimentos e o mundo. 

Tudo aquilo para eu encontrá-lo naquele dia e sentir a minha máscara ir por água abaixo. 

Foram semanas trancada em casa para o meu pai me convencer a sair, nem mesmo que fosse só para fazer compras. Ele andava falando demais comigo, indo demais à minha escola e me sufocando assim. Eu o amava muito e queria muito fazer algo além de abraçá-lo e ficar afundada no pescoço dele, mas eu não podia contar de verdade ao meu pai tudo o que acontecera. Seria… humilhante. A última coisa que eu gostaria de fazer em minha vida seria deixar meu pai envergonhado de mim e isso era o que mais doía, pois ele fazia tudo por mim desde sempre e eu gostaria muito de não tomar as atitudes estúpidas que tomava. 

Apenas ter pedido que ele me mudasse de escola já era o suficiente para meu pai compreender que eu tinha problemas naquela em que costumava estudar. Isso deve tê-lo feito entender ao menos um pouco, mesmo que não tenha me dito nada. E então eu o ouvia falando com Angelina sobre essas coisas e só sabia me arrepender, pois não queria vê-lo dizendo aos outros o que devia dizer a mim. 

Se havia sido ruim em todas as outras escolas, ficava claro que o problema era eu; era isso que devia mudar, não o local em que estudava, mas... Talvez fosse bom tentar mudar sem o olhar de Alexander e Samuel ao meu redor, então eu achava que pudesse dar um pouco certo. 

O que eu tinha de dizer a Sam, eu já dissera, afinal. Samuel não merecia saber o quão apaixonada por ele eu já fora um dia e tudo o que ele precisava saber era que eu não o queria perto de mim, que agora sabia que ele não me suportava. Se ele literalmente jogara fora a oportunidade de conhecer meus sentimentos, que lidasse agora com o fato de eu não sentir nada além de infelicidade com sua presença. 

Já Alexander, eu... não devia me importar com ele. Desejava esquecê-lo completamente, por mais que as memórias que nós tínhamos quase fossem mais fortes do que eu mesma. Eu não queria sequer ter a chance de dizer-lhe uma palavra, porque eu sabia que o faria e ela sairia acompanhada de uma chuva mais forte do que a daquele dia de lágrimas. 

Mesmo assim, estando longe dos dois, eu sabia que o que eles haviam feito comigo não desapareceria de um momento para outro. Com Alexander, eu tinha memórias demais, fossem elas ruins ou boas — em sua grande maioria, eram boas, mas lembrar-me daquele dia em que ele me humilhara ainda me magoava a níveis inimagináveis. 

Era muito óbvio que eu não estava acostumada ainda a ficar sem o Alexander, mas isso apenas deixava claro que eu não mudara nem um pouco; e esse era o problema. 

Quando ele apareceu, foi como se fosse a prova de que eu não havia me esquecido. Eu sabia que não me esquecera totalmente, mas chegara a sentir que ao menos um pouco de toda a minha dor havia ido embora. Vendo-o, ela retornou com toda a força e eu senti um aperto muito frio dentro do meu peito. 

Ele estava distante. Alexander corria a vários metros de mim e estava encharcado, não usando sequer uma capa de chuva em meio àquela quase-tempestade. Senti-me totalmente desesperada e tentei ignorá-lo, junto com todas as perguntas que surgiam na minha cabeça, mas eu simplesmente não pude. 

Estava mais do que óbvio que não era nem um pouco saudável ainda olhá-lo da maneira que eu olhava. Eu devia odiá-lo e sentir repugnância de sua pessoa. Se estava em meio à chuva e encharcado, meu desejo mais lógico seria o de que recebesse um raio ou um carro passasse, jogando água em seu corpo, mas o aperto que eu senti ao apenas tentar ter um pensamento maldoso assim praticamente derrubou as possibilidades de isso firmar em minha cabeça. 

As sacolas plásticas não cortavam os meus braços tanto quanto tê-lo a apenas algumas dezenas de metros de distância cortava meu peito. O modo como perambulava próximo à uma esquina e olhava para os lados me fazia sentir que ele estava totalmente perdido. Não havia motivos plausíveis para Alexander estar ali àquela hora. 

Ele nunca viria em minha rua. Se surgisse, então seria para ter o prazer de me humilhar mais uma vez, ou para ver se tê-lo feito semanas atrás resultara em alguma coisa? Eu... não sabia. 

Talvez ele conhecesse alguém que morasse pelos arredores, estando ali para visitá-lo? Havia perdido uma carteira pouco tempo atrás e estava ali para procurá-la, desesperado com a ideia de alguém tê-la achado e a levado embora consigo? Isso… Isso fazia muito mais sentido, não fazia? 

Então... Por que eu me preocupava tanto? 

Eu só sabia da dor que vê-lo me trazia e de como eu não queria senti-la. Aquilo estava me destruindo antes mesmo de algo acontecer — se é que aconteceria. Coisas horríveis eram gritadas dentro da minha cabeça e eu sentia que choraria a qualquer momento, querendo mais do que qualquer coisa fugir dali. 

Caso ele me visse, eu entraria em colapso…! Apenas de eu vê-lo, já era como se isso estivesse acontecendo, Deus! Por que eu havia de ter colocado minha cabeça para fora de casa justamente naquele dia? 

Dei um passo a frente, apertando com força o cabo plástico de meu guarda-chuva e fechando meus olhos. Eu tinha medo de andar sozinha depois das seis. Apesar disso, naquele momento, eu não estava sentindo medo de ladrões nem nada que fosse assim. 

Talvez, no futuro, eu houvesse de voltar sempre tarde por trabalhar ou fazer um curso, uma faculdade... 

Se surgisse alguém para falar comigo e esse alguém tivesse intenções ruins, o que aconteceria? Alguém surgiria para me avisar, ou para evitar que algo acontecesse por eu simplesmente não querer enxergar? E, depois que algo ruim já houvesse acontecido, eu choraria e isso seria o suficiente para a pessoa se arrepender e me pedir desculpas? 

Nada disso... Não é? 

Não foi isso... pelo que eu apanhei para ter em mente? 

Já havia passado um tempo, mas ainda feria da mesma maneira. Por que eu continuava a mesma, por que não conseguia aceitar isso? Eu estava sendo maltratada emocionalmente e isso continuava sendo culpa minha. Alexander apenas surgira, nem mesmo me vira ali. Pensar no motivo para ainda machucar era horrível. 

O meu tempo me controlando para não falar com ele sequer por mensagens e não pensar em como tudo havia me magoado não servira de droga alguma! 

Se eu estava assim apenas por vê-lo quase aleatoriamente na rua, então como seria caso eu ainda fosse para sua escola e o visse diariamente? 

Eu controlaria o que sentia... ou cairia de joelhos? 

Porque, por mais que eu soubesse a pessoa horrível que ele era, a minha cabeça ainda era algo covarde demais para poder se esquecer de tudo o que era bom e havíamos passado juntos. Eu tivera um dos melhores períodos da minha vida quando era "amiga" dele e fora envolvida naquela manta calorosa de mentiras. Lembrar-me disso era como uma recusa à ver o que estava, naquele dia, diante dos meus olhos. 

Não importava se eu queria respostas ou queria me manter com o Alexander falso que ele era antes de tudo se revelar. Eu não tinha direito a mais nada e isso era por conta de eu querer respeitar a mim mesma.  

Lutei para abaixar meu olhar enquanto andava. Minha casa não tinha quintal na frente: ela dava direto para a rua, separada da calçada apenas por uma escada de poucos degraus. Era como muitas outras da rua. Caso eu não morasse lá há muito tempo, talvez eu mesma a confundisse e, quando era criança pequena, eu vivia mesmo entrando na residência dos vizinhos. 

De qualquer maneira, não era distante de onde eu estava. Uma rua a atravessar, nada que pudesse me matar... O problema eram as minhas pernas, negando os movimentos. 

Meus olhos estavam na calçada encharcada. Ela brilhava, refletindo as luzes dos postes, e a água que já estava por ali movia-se com os pingos violentos que caíam do céu. Eu já não me preocupava mais com o estado de meus tênis brancos. 

Quando eu olhei para cima, senti vontade de simplesmente virar as costas para ao menos me esconder. Ele estava parado exatamente diante da minha casa e olhava para baixo, as mãos fechadas com força. Eu não soube como reagir. 

Era óbvio que, fugindo, eu apenas deixaria mais claro ainda para mim mesma que estava tudo errado. E eu quis provar que não era a mesma, por mais que fosse. Se ele me percebesse vendo-o e fugindo... Agora, ficaria claro para ele também que sua presença me incomodava. 

Atravessar aquela rua e passar ao seu lado era como uma prova de que eu mudara, ao menos no quesito de tentar mudar. Eu não poderia me dar a tentativa de tornar-me outra pessoa caso não conseguisse atropelar um receio como aquele, que devia ser estúpido para qualquer um. Evitá-lo não faria sentido nenhum caso eu fosse forte. 

E eu queria ser. 

Era só... ele. Só uma rua. Só a minha droga de insegurança quanto à alguém que apenas me via como algo idiota, fraco, que não podia fazer nada por si mesmo. 

A água batia no teto do meu guarda-chuva e escorria para os lados. Eu pus o primeiro pé além da guia e prossegui. Por mais culpa que isso pudesse me fazer sentir, eu quis ser atropelada para não sentir mais nada de um momento para outro. Minha mão tremia, perdendo a cor de tanta força que eu usava para segurar o cabo do guarda-chuva. 

Eu mal olhava para o chão quando acabei o caminho. Meu coração palpitava e eu pedia que fosse um infarto. Só faltava alguns passos, eu sequer devia olhá-lo... Subir as escadas, entrar e bater a porta era o mínimo que eu devia fazer. Se eu, de verdade, fosse alguém vingativo, talvez pudesse olhá-lo e forçar um olhar de desprezo, mas... 

As feridas do passado ditaram as minhas ações. 

Eu só movi os olhos para a figura imóvel dele e Alexander pisou na força de vontade que eu tentava ter para ser insensível. 

A pele extremamente pálida dele contrastava com as roupas ainda mais escuras por estarem úmidas. O corpo tremia, encharcado dos pés à cabeça, e os cabelos molhados seguiam o formato arredondado do rosto. Ele olhava o chão de sobrancelhas franzidas, com uma expressão desolada que eu nunca havia visto em toda a minha vida. 

Era como um semblante à parte dos que eu conhecia . 

E eu me senti muito perdida. Meus olhos queimaram e engoli em seco, com algo que se mantinha entalado em minha garganta finalmente descendo enquanto rasgava meu peito. Era como uma pedra em brasa percorrendo meu corpo todo. 

Muito frágil. Muito perdido. Muito assustado, encharcado, destruído. 

A minha razão foi levada junto com a enxurrada. 

A chuva começou a cair sobre minha cabeça com violência, aumentando ainda mais o frio que eu sentia. Água começava a escorrer pelo meu queixo enquanto, mesmo que já fosse tarde demais, eu tentava abrigá-lo sob meu guarda-chuva transparente. 

Eu não sabia que diabos eu estava fazendo, nem controlava o que se passava pela minha cabeça. Era uma correnteza de sentimentos aleatórios em que eu me afogava, já sem tentar me debater de modo a salvar minha própria vida. Interiormente, eu gritava e chorava. Por ele. 

O que ele estaria sentindo? Como... Como diabos reagiria diante daquela minha droga de ato impensado e burro, que quase jogava em sua cara que eu ainda me importava tanto com ele quanto me importaria com qualquer um que estivesse em uma situação daquelas? 

O tempo corria tão rápido, mas ainda assim era como se houvesse minutos o suficiente para eu pensar no quão estúpida havia sido e em como aquilo ficaria na minha cabeça para sempre. 

Ele com certeza gritaria que não precisava de mim naquela situação. Ele me empurraria. Ele diria que tinha pena de quem eu era e que não sabia por que diabos eu tivera de reaparecer em sua vida. 

E então... O que eu faria depois disso? 

Não... O que eu faria agora? 

Mordi com muita força o meu lábio. O guarda-chuva tremia, tanto pelo vento quanto por causa dos meus dedos trêmulos. Havia a iluminação dos postes da rua, mas eu só pude realmente ver o rosto de Alexander com nitidez quando um carro passou com os faróis ligados. A luz pairou por poucos segundos sobre ele e seus olhos se abriram, erguendo-se em minha direção. 

Eu não via aqueles olhos tão escuros há muito tempo. A expressão inconsolável deles e a maneira como havia lágrimas pelo rosto de Alexander tirou as forças de minhas pernas. Seus lábios, separados sem nem mesmo balbuciar uma palavra, estavam azulados e as íris de seus olhos tremiam, olhando para mim.  

Milhões de sentimentos me impediam de fazer algo, mesmo que não houvesse o que fazer. Eu não tinha como perguntar coisa alguma, exigir explicação alguma, me expressar de forma alguma...! Para começar, só o fato de eu estar ali, com ele, já não fazia sentido algum! 

— O que você… — Minha voz falhou, como se algo bloqueasse minha garganta.

Que tom usava para falar com ele? Não sabia como encará-lo, o que dizer, o que fazer… Franzi as sobrancelhas. Água descia pelas minhas costas e congelava meu sangue.

Foi como um golpe quando a expressão dele fraquejou e lágrimas inundaram aqueles olhos escuros, escorrendo por seu rosto. Aquele semblante me sufocou. Lágrimas... dele? Diante de mim? Como eu as compreenderia? 

Acima disso, por que... elas me faziam querer chorar também? 

Suas sobrancelhas se juntaram rapidamente e ele mostrou os dentes, abaixando o rosto após apertar os olhos e atirando o corpo frágil sobre mim. A maneira repentina e violenta como o fez me obrigou a soltar uma exclamação vazia, recuando sem ter escolha enquanto suas mãos agarravam-se ao tecido das minhas roupas molhadas. 

Ele afundara o rosto no meu peito. Seu corpo estava mais frio e trêmulo do que qualquer coisa que eu já sentira diante de mim na vida e a força com que me apertava era tal que, mesmo acima da minha blusa, suas unhas estavam fincadas na minha pele. E Alexander passava as mãos nas minhas costas, braços, pescoço, deslizava aquelas unhas sobre mim como se quisesse se certificar de que eu estava, afinal, ali. Soluçava como se estivesse sendo esfaqueado a cada movimento feito. 

E eu... Eu não entendia. Eu não sabia o que fazer. 

Alexander só fazia chorar desesperadamente e me machucar ali. Seu hálito quente e constante, a única coisa calorosa que me passava, parecia invadir o meu peito. 

Eu estava arrependida de algo que não tinha feito, de algo que eu sequer sabia o que era. Talvez, meu arrependimento maior fosse estar comovida diante do sofrimento visível dele. Se eu fosse Angelina, sei lá, eu... poderia rir dele ou qualquer coisa, mas eu não conseguia ser. Caso eu fizesse o que devia, aquilo cessaria? Aquele medo acabaria? A dor de ter sido humilhada desapareceria junto com todos os sentimentos ruins? 

Se eu não tomasse uma atitude, ele... 

Ele era só um manipulador. Surgir na minha casa e começar a chorar em cima de mim devia ser só mais uma maneira para se aproveitar de como eu era burra e infantil. 

Se eu não tomasse aquela atitude, ele... tentaria me fazer de idiota mais uma vez. E eu sabia que ele conseguiria. 

Aqueles braços pequenos enlaçaram o meu pescoço com força e as lágrimas dele passaram a escorrer no meu pescoço enquanto ouvia, de perto, seus soluços. Ele tentava respirar e era como uma criança que acabara de levar um tombo. O que tocava meu pescoço eu não sabia se era muco, chuva, lágrimas ou qualquer outra coisa. 

— E-eu sinto muito — e sua voz saiu distorcida, embargada, num tom que eu não faço a menor ideia de como descreveria. — O seu pai, o que ele disse, eu... Ainda bem que não aconteceu nada com você, Liana. Eu quis tanto que nada acontecesse. 

Ela vinha de tão, tão fundo. Trouxe consigo uma tosse grossa, que fazia o peito magro dele pulsar, colado em mim. Ouvi-la me deu um golpe interior forte o suficiente para a exclamação vaga se repetir. Meus lábios estavam trêmulos e as mãos soltas ao lado do corpo, lutando contra o instinto adquirido após meses o abraçando diariamente de, outra vez, envolvê-lo com os braços. 

— E-eu não estou entendendo nada... Dá para me soltar? 

Eu estava esperando meu ódio aparecer. 

Internamente, eu implorava por aquela raiva que eu não conseguia sentir. 

— Eu sinto muito mesmo, mesmo, eu não sei... o que eu deveria te dizer. — A força que ele usava para me abraçar se intensificou e ele ainda tremia. A chuva caía em cima de nós dois e apenas engrossava, mas era a menor preocupação no momento. Minhas compras estavam espalhadas no chão. — Como eu poderia te dizer o tanto, Polliana, eu só... Não precisa acreditar em mim, não precisa me perdoar, eu nem quero que você faça isso. Eu só quero que você me escute. P-por favor. Me deixe falar com você. 

Não era como se ele estivesse falando muito, mas ainda assim, o peso daquilo fazia as palavras parecerem gritadas dentro da minha cabeça junto com mil outras. Eu encarava a chuva caindo na calçada atrás das costas dele e o foco dos meus olhos não mudava desde o momento em que Alexander se jogara em mim. Não tive, exatamente, reação alguma. 

Eu me sentia como ele. Com tudo acontecendo ao meu redor e eu parada, sem esboçar reação, mas com o diferencial de que eu sentia alguma coisa e ele era — nas palavras de Angelina — um adolescente idiota e insensível, desesperado por alguma atenção e ego. 

Fiquei com medo e quis chorar por ter pensado algo maldoso assim, mas... eu tentei, mentalmente, concordar que eu tinha que pensar isso. 

Acima de qualquer vontade de fraquejar, estava o meu desejo por mostrar que eu não era mais qualquer bebê. 

Mesmo... ainda quase sendo. 

Ele se afastou alguns poucos centímetros, mantendo as mãos agarradas às rugas dos meus ombros, e me olhou nos olhos com o rosto pálido, cheio de pintas que tinha. Alexander... estava sem cor. Eu não canso de citar o quão fundos seus olhos orientais estavam ou que seus cabelos não tinham nem mesmo formato mais. 

O que era aquele piercing que ele não tinha antes? Por que aquelas olheiras enormes? Por que parecia mais magro, por que tinha chorado tanto, por que me olhava com aquele semblante de dor e súplica que o fazia parecer uma criança perdida dos pais na multidão? 

— Você vai... me ouvir? 

A chuva escorria por seu rosto e a face vazia se fechou enquanto ele voltava a soluçar, agarrando ainda mais a minha roupa. 

— Eu... — Eu sentia que não tinha voz mais. Tudo o que eu reprimi me atacou naquele momento. Perdi o controle da minha expressão e lágrimas de mágoa rolaram pelo meu rosto. Eu engoli em seco e, chorando, balancei negativamente a cabeça. — Eu não quero te ouvir. 

Os olhos dele abriram-se mais e oscilavam entre olhar minha íris esquerda, minha íris direita. Ele abriu a boca e fechou-a, repetindo isso mais de uma vez. Não... existe outro jeito de dizer. Ele, na minha frente e naquela hora, era só um menino perdido. 

Eu respirei sem conseguir falar e olhei para um canto aleatório. Reprimi um soluço. Sentia-me um lixo. 

"O que eu acabei de dizer? Eu sou... agora, sou alguém grossa assim?" 

As mãos dele passaram pelo meu pescoço e ele virou meu rosto em sua direção. 

— Mano, você tem todo o direito, eu só... — Ele balançou a cabeça negativamente. — Por favor, só me escute. 

— V-você ainda não disse tudo o que tinha que dizer naquele dia? — Na minha cabeça, eu ensaiava a ação de tirar as mãos dele de mim. — Você... fodeu comigo, Alexander. — Eu não sabia quando havia sido a última vez em que eu dissera algo assim. — E-eu devia sentir nojo de quem você é. 

Suas mãos subiram pelo meu pescoço e ele negou, novamente, com a cabeça. Sua expressão de incredulidade deixava notável que eu o feria, mas que ele não tinha o que era preciso para se defender daquilo. 

Ele parecia mais calmo. Não chorava mais, mas... estava envergonhado, eu sabia disso. Só não sabia se acreditava ou não. 

Ou, talvez, não conseguia mais chorar. 

— Eu... sinto — falou baixo. — Você pode ter certeza que eu sinto muito mais nojo de mim do que você imagina. 

— Não é nojo o suficiente. — Eu franzi as sobrancelhas e lágrimas rolaram apenas no meu rosto. Nele, apenas a chuva, que havia diminuído. O momento de raiva foi aproveitado para que eu o empurrasse, afastando-o de mim. — Não é mais do que eu devia sentir! 

Alexander cambaleou e apertou os olhos, como se estivesse sentindo tontura. Ele colocou a mão no rosto. Eu não entendi o que ele disse naquele momento. Apenas quando seus dedos deixaram a face entendi as palavras que disse: 

— Eu sei que não, Polliana. — Ele ergueu os olhos e os fixou em mim. — Eu... realmente sei. Você pode dizer ou fazer o que quiser, eu... não estou aqui para contrariar nada do que você disser. 

— E-eu não vou voltar a ser sua amiga. 

— Eu não quero ser seu amigo.  

— Me deixa entrar. — Eu abaixei a cabeça e um soluço veio, violento, depois de alguns momentos de falsa força. Chorei novamente. — Vá embora, eu não quero conversar sobre coisa nenhuma. 

Alexander pôs a mão no rosto novamente e a subiu até a testa, empurrando o cabelo longo para trás sem cuidado algum. Tinha um rosto acabado e ainda tremia. Caso eu já houvesse o visto chorar, eu diria que estava fingindo. Eu devia mesmo pensar que ele estava, mas... era difícil. 

Difícil porque a mesma pessoa que antes resgatava gatos e tomava leite com morango no café da manhã havia surgido, um dia, como um vilão e acabara com a minha vida. 

Eu não sabia mais quantas caras ele tinha. 

Abaixei o rosto, não querendo encará-lo de maneira alguma. 

— Por favor — ele disse desafinadamente. E eu ouvia a chuva, ouvia os trovões e meu coração batendo descompassado acima disso tudo. — Não te farei escutar a minha voz mais uma única vez na sua vida toda se, por favor, me ouvir hoje. 

Vi seus tênis molhados darem um passo a frente e ele me tocou no rosto. Eu o movi para o lado, tentando evitá-lo, mas os dedos me seguiram. Estavam trêmulos e gelados. 

Eu não estava, no momento, sentindo curiosidade sobre o que ele devia ter a dizer. Qualquer coisa que fosse, eu não deveria mesmo levar a sério. Minha maior vontade era desaparecer dali e ter um lugar para chorar sem os olhos dele me julgando por ver que, mesmo depois de ele ter tentado me mudarnada havia mudado. 

— Eu não vou... — Sua voz embargou-se muito. — Eu não vou te machucar mais.  

— É... a última vez.  

A expressão dele suplicava por uma chance. 

— Eu estou pedindo de verdade, Polliana, por favor. 

— Eu também estou pedindo de verdade! — Escondi o rosto em minhas mãos. — Você... acabou não só com o meu dia. Eu só quero ir embora e ficar em paz! Eu só queria... ter ficado sempre sozinha ao invés de ter ido atrás de você e passar por isso! 

Deixei um peso invisível consumir minhas costas e me curvei, soluçando sob a chuva e arranhando meu próprio rosto. 

— V-vá embora, eu estou implorando. Você sabe que eu fiz de tudo para ficar com você, eu escutei tanta coisa, as coisas que aconteceram... Eu não aguento mais. Eu... penso no que você me disse todos os dias, não sei mais por quanto tempo eu vou lidar com isso, estou tentando esquecer — eu disse —, então não me impeça disso. Não existe mais nada que você possa tirar de mim. Eu nem mesmo sei o que já existiu. 

As mãos frias dele pegaram as minhas e ele me encarou outra vez. Olhá-lo me feria. Lágrimas escorreram de seus olhos absurdamente escuros, descendo pelo rosto e atravessando os lábios rachados. 

— Eu... realmente sinto muito — e eu não sabia a veracidade daquelas palavras, mas não queria parar para questioná-las naquele momento. 

Eu estava... como uma nuvem cheia, colocando a tempestade para fora. 

— De que adianta você sentir algo? — eu indaguei soluçando. — Você vai mudar alguma coisa do que eu senti durante esse tempo inteiro chorando na minha frente e fingindo que se importa? 

— Eu não estou fingindo! — ele exclamou em resposta. — E não, não vai mudar nada, mas eu não quero você continue como es— 

— Você... só fingiu o tempo inteiro. — Não consegui evitar que meus olhos marejassem. — Alexander, não... vai mesmo mudar. Isso não é justo comigo, eu não consigo nem mesmo pensar. 

— Se você souber a verdade — ele disse, respirando —, eu... juro que vai mudar. É sua a escolha de acreditar em mim ou não, eu entendo, eu não acreditaria nem um pouco, mas... Eu também não seguirei em frente caso nem mesmo exista uma tentativa de consertar o maior erro que eu cometi. Então, por favor, Polliana. — Alexander apertou minhas mãos, trêmulo. — Você sabe como sou. Eu sou um filho da puta, o maior filho da puta que conheço. Eu não me submeteria a uma cena dessas caso eu não realmente me importasse. E eu me importo. Eu... me importo com você mais do que já me importei com qualquer um e eu nunca senti tanto medo assim de te fazer se perder por eu não saber demonstrar isso. 

Ainda encarando-o, eu não encontrei palavras e franzi as sobrancelhas, negando com a cabeça algo que eu não sabia o que era. Eu... não havia me sentido uma droga por tanto tempo para uma conversinha daquelas surgir e me amolecer. Angelina havia dito e eu havia sido uma idiota por não acreditar. Ele apareceria arrependido e tentaria me fazer de idiota uma hora ou outra, ela dissera, eu só devia ter me preparado melhor. 

Ele deixou a cabeça cair e afundou as mãos no rosto pequeno. 

Alexander não me amava, independentemente de ele estar querendo dizer isso ou não. 

— Também existem coisas que eu quero saber sobre você — ele murmurou —, eu quero saber o que aconteceu durante esse tempo todo. 

— Eu não quero conversar — continuei, sentindo a têmpora latejando e meus pulmões apertados. — Por favor, pare de insistir. Não quero falar sobre nada disso. 

Não encontrei nada para dizer. Para ser sincera, eu não procurava palavras mais. 

Eu me afastei e minha cabeça doía profundamente. Eu estava muito gelada e desnorteada. Foi como dois passos para trás, apenas, enquanto os olhos dele continuavam em mim e os meus nos dele. Seus cílios longos estavam unidos por causa da chuva e os lábios, trêmulos. 

Era uma situação que me rasgava ao meio. 

— Eu vou embora — balbuciei, quase sem voz. — Estou com medo. 

Olhei ao redor, procurando meu guarda-chuva que havia sido empurrado pelo vento até o meio da rua. Minhas sacolas estavam próximas aos pés dele. Eu subi o olhar delas até o menino novamente. 

— Desculpa mesmo. — Por pouco, eu não o ouviria. — Foi mal pelas suas coisas... 

Sua boca se abriu, mas ele fechou-a de novo e engoliu em seco, não dizendo nada. Numa tontura que não era fingida, Alexander virou o rosto à procura de algo e então foi até o meio da rua, apanhando o meu guarda-chuva transparente e estragado dali. 

Eu notava que os olhos dele estavam desfocados quando o vi voltar. 

Ele comentara uma vez, muito tempo atrás, que não enxergava muito bem, mas que não queria mais usar óculos e corrigir isso. Sempre que algo estava longe, ele apertava os olhos quando queria ver — dava para notar que era por isso. 

Quando simplesmente não se dava o trabalho de tentar ver, ele não fazia isso. Seus olhos simplesmente perdiam o foco, não olhavam para nada, não se fixavam em coisa alguma. 

Foi assim que ele me olhou dali, do meio da rua, enquanto caminhava até mim. 

Eu me lembrava desses detalhes insignificantes que reparava nele sempre. 

Todos os dias. 

Alexander se curvou no chão, pegando minha sacola e o que havia rolado para fora dela na chuva. Não parecia ele. Eu não sabia o que fazer. 

Todas aquelas coisas que havia dito, sua expressão, o que fazia ali. Não havia nada que estivesse nos conformes; mas eu não sabia mais o que significava "nos conformes" quando se referia a mim e a ele. 

— Não pega — me obriguei a dizer, não suportando. — Sério, para... Não preciso que você pegue. 

— Eu não ligo — respondeu com uma voz que, de alguma maneira, soava "úmida", mesmo com seu tom não tão caloroso. — Sério... Foda-se. Eu vou embora, não vou.. insistir mais. — Mesmo que não adiantasse nada, ele mesmo enroscou o saco plástico em dois dedos meus e então me olhou com um semblante meio vazio, meio ferido. — Eu só queria te ver. 

Apertei o plástico fraco e molhado da embalagem nos dedos. Chovia muito, muito menos. Era como uma garoa ligeiramente mais maldosa agora. 

Me ver. 

Apertei os olhos e meu coração parecia estar sendo espremido dentro dos meus próprios punhos. 

— Eu não estou bem — entredentes, sussurrei. 

— Eu não esperava que estivesse — Alexander disse em resposta. — Não vim te ver bem. Só quis te ver... respirando. 

Olhei-o quando escutei aquelas palavras. Eu não entendi o que ele queria dizer e perguntar-me o que ele estaria pensando durante aquele tempo todo em que não nos vimos me atingiu com força. Não era como se eu houvesse mudado o suficiente para perder a mania de pensar nas piores possibilidades de tudo o que acontecia. 

Eu fiquei com muito medo e muita vergonha. 

De alguma maneira, eu também fiquei irritada por não entender. 

— O... quê? — Balancei a cabeça negativamente, estreitando os olhos, confusa e assustada. — O que você está pensando? Que eu estaria... morta? Você acha que eu faria isso? 

Alexander levantou as sobrancelhas devagar, com uma expressão desentendida e hesitante. 

— Polliana, você diss... 

— Eu não falo com você desde aquilo — interrompi enquanto sentia o impulso de chorar novamente. Finquei minhas próprias unhas nas palmas das mãos, ainda tremendo de frio e receio. — Eu não disse nada! Você acha que eu me mataria? Você acha que eu morreria por sua causa? 

— Você me disse! — ele exclamou em resposta, perdido. — Você não se lembra? 

Meu coração estava saltando dentro do peito e eu me afogava no rosto dele. 

Aquele rosto, eu não conseguia enxergar mentiras nele; mas eu sabia que elas existiam, não havia como não existirem. 

— Do que você quer que eu me lembre? — gritei. — Eu não sou louca! 

— De todas as mensagens que me enviou! — Ele franziu a testa, assustado. — Falando... de Angelina, de seu pai, de... Das coisas que você pensou e do que estava sentindo! Do que você fez! Com... os seus braços! 

— Você quer fazer o que comigo agora? — Tantas coisas estavam em erupção dentro de mim que eu não conseguia pensar antes de dizer nada. Estava tentando segurar as lágrimas agora, mas sabia que aquela luta não seria eficaz o suficiente. — Você... vai tentar enfiar coisas dentro da minha cabeça de novo? 

Os olhos dele me transmitiam desespero e Alexander negou meneando. 

— Não, Liana, é claro que não, eu só... — ele atropelou as palavras, agarrando meus pulsos de uma maneira afobada. —  Eu estou falando disso! De... Daquilo tudo, do celular da sua irmã que você pegou, das coisas que aconteceram...! 

— O que você vai fazer? — Puxei meus braços de volta, mesmo sem entender. — Eu não me cortei, nunca fiz isso, por que acha que eu teria feito? Eu não sou assim! Eu não peguei o celular de ninguém, não aconteceu coisa nenhuma! Você está louco! 

Ele deixou meus braços irem, ainda seguindo-os com o olhar de uma maneira vazia e incrédula antes de subi-los para mim. Algo me mostrava que ele acreditava muito no que dizia, mas... Não havia fundamento algum. Eu pensava que o conhecia e que ele não faria isso, só que daquele jeito que estava, da maneira como se comportava, pensando em sua aparência, também... Talvez Alexander não estivesse em si naquele momento. 

— Me deixa sozinha, de verdade — murmurei, me encolhendo e dando passos para trás. Senti os músculos do meu rosto se retesando enquanto meu choro recomeçava. — Não mente mais para mim, por favor, por favor mesmo. 

Alexander parecia desesperado por me ver daquela maneira. Desnorteado, deu alguns poucos passos para me alcançar, estendendo a mão para me tocar no rosto enquanto olhava no fundo dos meus olhos sem parecer saber que atitude tomaria. 

— Polliana... 

— Q-quem está mentindo aqui? — indaguei. — Que motivos mais você tem para criar isso tudo? 

— Não sou eu — ele respondeu. — Não sou mais eu, Liana, só... aconteceram muitas coisas que eu também não entendo, mas eu acredito no que você está falando. Alguém brincou com a minha cara, eu não sei, eu só... Fiquei muito preocupado com como você esteve esse tempo todo, sério, foram tantas coisas que li, qualquer um em meu lugar teria ficado desesperado. 

— Pare... de demonstrar afeto. — Minha voz estava distorcida a ponto de eu não me ouvir mais. — Pare. 

As mãos dele desceram um pouco em meu rosto enquanto ele me encarava pálido. Aquelas... mãos delicadas, com dedos de criança. Sem a pulseira, mais. 

Eu não sabia se ele se importava ou não. Tudo indicava que Alexander não se ligava para mim, mas... Ele havia chorado. E dito coisas que nem mesmo eu conseguiria dizer olhando nos olhos de alguém com quem passara por tantas coisas — amáveis e devastadoras. 

— Todas as coisas ruins que eu escutei saírem de sua boca estão na minha cabeça agora — eu murmurei, fechando os olhos. — Está... tudo se juntando às coisas de hoje, com o que passamos, com o que eu senti durante esse tempo todo... Eu estou fraca de novo. Eu estou com medo de acreditar em você e estou com medo de tudo o que fez isso comigo, de quem inventou essas mentiras, de quem me forçou... a te ver outra vez. 

Solucei desesperadamente enquanto as mãos trêmulas dele desceram para o meu pescoço. 

— Eu... só queria fazer com que você não sofresse mais assim. — E mesmo que eu não o visse, eu sabia que ele estava me olhando com aquele mesmo rosto piedoso. Seu tom de voz, mesmo instável, tentava me acalmar. Eu não tinha noção de há quanto tempo estávamos ali. — Eu não sei, eu... não vou conseguir te dizer tudo só agora, Liana, não vou conseguir fazer você se sentir nem um pouco melhor hoje. Eu... só preciso. A maneira como você me interpreta e como você vai estar daqui para frente não me diz respeito, eu não exijo saber nada ou participar da sua vida, eu só quero fazer o que precisa ser feito — ele disse, quase compreensivo, passando os dedos frios pelos meus ombros e os voltando ao pescoço. — Eu... não tenho que te confortar, mas eu não consigo. Eu já cometi erros demais e já fiz muitas coisas apenas por vontade para evitar fazer isso agora. Não vou cuidar de você daqui para frente, não vou tentar te ensinar nada, nem impor algo em quem você é. Eu... vou sumir. Mesmo. Porque quero. 

Sem entender, encolhi os meus ombros ainda mais, retesando os braços. Meus pés haviam se molhado tanto pela chuva forte de pouco antes que eu não sentia meus dedos. Chorei sem me esforçar para evitar e absorvi suas palavras sem grande estímulo para interpretá-las. 

Meu corpo doía e eu sentia um instinto que gritava internamente para eu não deixá-lo me tocar ou sequer falar comigo. 

Eu não sentia vontade de ter conforto da parte dele ou explicações. 

— Você... está fazendo o que realmente quer? — foi a única coisa que, naquele momento, perguntei. 

Alexander hesitou antes de responder e eu senti o suspiro quente dele a uma distância considerável do meu rosto. 

— Eu não consigo mais fazer tudo o que quero depois de conhecer você — declarou. — Não completamente. 

Naquela hora, da maneira mais sincera, eu só... queria desaparecer dali, mesmo que isso significasse não ter resposta alguma. 

— Eu menti. — As palavras saíram da boca dele como um suspiro pesaroso. — E... não estou aqui para pedir desculpas.

☀ 

— Você quis me oferecer isso... e eu sequer pude aceitar, Alexander. Você não me deu escolha. 

Abracei meus joelhos enfiados no jeans molhado, sentada sob o toldo de um comércio ao lado daquele menino. 

Mas era ali, com ele, que eu estava. Sob a mesma chuva fina, sem gatos cinzentos numa caixa para encontrar.

Sem o meu gato, agora morto, miando no meio deles. 

— Eu odeio mentiras — Alex havia dito minutos antes, enquanto ainda nos encontrávamos de pé, falando alto à noite na rua, um na cara do outro. — E eu... odeio ainda mais mentir para proteger os outros, mentir contra a minha vontade. Eu já fiz isso por alguém e isso inferniza a minha vida até então. Eu prometi que não faria nunca mais, só que... — Ele levou a mão ao rosto, apertando os olhos. — Você existe, você se enfiou no meio da minha história. E eu deixei. Eu decidi mentir por você. 

E quando ele disse isso, eu só fiz desabar ainda mais e sentia que meu coração não podia mais ser golpeado. Não havia como piorar. Eu não conseguia me sentir pior naquele momento. 

— Não consigo entender nada do que você diz... 

— Você é uma criança. — Alexander abaixou a mão e me olhou de baixo. Nessa hora, ele pegou meu pulso com leveza. Eu estava estática, não o impedi. Mas se eu não me sentia bem com o toque dele pouco antes, não foi nesse momento em que isso mudou. Senti vergonha. — Você precisa, por favor, ouvir o que eu tenho para falar. 

— Para você, eu sofreria de uma forma ou outra. E o que você fez foi... adiantar isso? — indaguei, ignorando-o. — Não... confiava em mim o suficiente? Você não podia simplesmente dizer o que achava de forma sincera e me dar um aviso para eu deixar de ser idiota. Você diz... que esse foi, realmente, o seu único meio de tentar me ajudar? 

Ele me engoliu com os olhos. 

— Eu simplesmente — permitiu uma pausa para limpar a garganta — não... ajudo ninguém. Primeiramente, por não querer, e depois... porque eu não sei como. Ainda mais quando é alguém como você.

Virei-me para a rua e pendi a cabeça para baixo, fechando os olhos. Minha roupa estava colada na pele. Eu queria muito um banho de água quente, ou entrar em coma.

Minha voz estava falha, como numa ligação de telefone com o sinal falhando.

— E a solução foi... ser meu melhor amigo, dizer se importar comigo, me beijar sem nem mesmo o meu consentimento e se declarar para me humilhar mais tarde.

Eu sei o peso que minhas palavras tiveram, assim como todas as outras que havia dito recentemente. Apesar disso, não foi difícil deixá-las saírem. 

Ele havia mentido para me proteger, segundo o que dizia. Havia inventado tudo. Matara o que existia em mim.

— Eu sei que o meu modo não foi o melhor, Polliana. 

— Foi o pior. 

Pelo som abafado de sua voz, eu tinha certeza de que ele estava cabisbaixo, agora. 

— Você não precisa me dizer — Alexander cortou, ríspido. — E eu sei que não ficará tudo bem contigo de um momento para outro, mas eu já fiz o que podia e o que não podia. Sinto muito se você não acreditar, mas é literalmente como se eu houvesse atravessado quilômetros apenas para isso, agora. Só para ver se você estava bem. 

Eu me mantive quieta após aquilo. 

Literalmente...? 

Algo dizia que aquela atuação dramática dele só tinha como intenção repetir, talvez de maneira pior, aquilo tudo que acontecera. 

—Eu... realmente sinto muito. — As palavras dele quebraram o silêncio como um martelo atravessando um painel de vidro, outra vez. A voz passava por meus ouvidos e ficava se repetindo. Era enlouquecedor. — Eu o fiz justamente querendo ser a última pessoa a te magoar. Nunca poderia querer outro alguém te magoando, eu... 

— Você quis ser o único a poder me humilhar? 

— Polliana, não. Caralho, eu... — Ele afundou o rosto nas palmas das mãos. O palavrão me acordou para o fato de que ainda era, afinal, ele. — Eu quis te fechar. Se pudesse usar palavras tão horríveis a ponto de revoltar você ou, de verdade, destruir o que era a ponto de criar um escudo em ti, para que pudesse se defender de todas as coisas e evitar abrir tanto o peito para qualquer pessoa. Eu sabia que você ficaria magoada por um tempo, mas não queria te deixar tão depressiva a ponto de ter esses pensamentos... Não era essa a minha intenção, de forma alguma. Sequer quero pensar no que senti ao imaginar você tendo pensamentos tão ruins, Liana. Eu nunca... me senti tão perdido, tão desesperado assim. E não é por mim, por eu ter me arrependido ou ter feito algo extremamente errado. É por você. Por você ter sempre me estendido a mão e eu ter te retribuído com algo tão cruel assim, que um coração como o seu nunca mereceria. 

— Quero acreditar que você fez tudo isso por esse motivo e eu, por mais idiota que seja... acredito. — Uma lágrima salgada passou por cima dos meus lábios. Senti-me inundada por arrependimento, já que havia admitido, mas não gostaria de mentir (mais) ali, naquela situação. — Mas eu não me conformo que você diga gostar de mim quando confiou mais no fato de eu ser uma estúpida que só aprende da pior forma do que no de que sim, eu poderia melhorar e mudar caso você simplesmente fosse sincero comigo ao menos uma vez. Você não tem ideia do quanto isso me confunde, Alexander, e do quanto isso me magoa. Eu achei que houvesse confiança entre nós dois. 

Apertei meus olhos sob os braços. 

Eu senti que era uma casa e que, dentro de mim, haviam meus móveis e meus pertences. Alguém, semanas atrás, a invadiu e derrubou os vasos de planta, rasgou as cortinas e revirou minhas gavetas. Agora, esse alguém havia voltado e terminado de desrespeitar o meu próprio espaço. Senti que não havia quase mais nada em minha casa que alguém pudesse tentar destruir. 

Mas, ainda assim, foi pior porque o sentimento era o de que entraram novamente e levaram meus pertences quebrados embora e picharam minhas paredes. 

— Alexander... Eu estou desmoronando. 

Minhas mangas aparavam as lágrimas antes que elas pudessem rolar; eu nunca sentira tanto desgosto em um dia. Cada vez mais, para fora iam as milhares de angústias que ele me fazia sentir naquele momento. 

— Eu... sinto muito mesmo. — Se fosse verdade, se eu estivesse no lugar dele, não saberia muito mais do que Alexander sabia para dizer. — Eu sei que não existe nada que eu possa dizer que vá resolver isso. Se me deixa falar, todos, quando crianças, sempre levam um tombo muito feio por serem desatentos em relação a algo. Eu sei que é diferente, não quero comparar, mas... É difícil cairmos do mesmo jeito depois de irmos ao hospital. Nós aprendemos. Outra maneira de dizer seria que existem doenças que nosso organismo meio que... não contrai mais de uma vez, não é? Como se... não cometesse o mesmo erro. 

— Durante todo esse tempo, eu mal saí de casa — interrompi. — Fiquei mal, de verdade. Nos primeiros dias, Alexander, você não sabe todas as coisas que escutei. 

— Eu sei...

— Eu acreditava tão, tão cegamente em você. Eu achei que você me amasse tanto quanto eu te amava. Eu agi da forma mais cuidadosa possível para não magoar os seus sentimentos quando você disse gostar de mim, pois eu sabia como era não ser correspondido e achava, também, que em meu lugar talvez você fizesse a mesma coisa. — Minha voz estava tão trêmula quanto o resto de mim. Falar de sentimentos era constrangedor e difícil. — E, depois, você foi cada vez mais rude comigo. Me ignorou. Fingiu que não havia dito ou feito nada, agiu como se eu não fosse coisa alguma. Mais tarde, você realmente disse que eu não sou droga nenhuma para você. Que eu era uma porcaria de uma distração, porque ninguém me aguenta por muito tempo, que eu me iludo com um mundo infantil, que... que você nunca nem quis ser meu amigo de verdade. 

Ele não disse nada. 

— E, durante todo tempo, eu estive querendo mudar isso por sua culpa, tudo para você surgir agora dizendo que foi em vão? — prossegui, sem conseguir parar. — Para me proteger, porque realmente gostava de mim e não queria me ver sofrendo? Foi para isso? 

Ele se manteve em silêncio por alguns segundos. Meu coração estava massacrado, sendo engolido por uma agonia sem tamanho. Eu sentia gotas fartas de suor e água gelada escorrendo por minha nuca. 

Eu queria sumir, ao mesmo tempo que queria falar. E, mesmo que muitas coisas estivessem sendo ditas por nervosismo, eu ainda sentia meu peito cheio que parecia ser apenas um movimento para tudo explodir e eu começar a gritar. 

Meus dedos já machucavam minha pele de tanto que eu a apertava, me abraçando. Eu não estava nem um pouco bem. Ar faltava-me nos pulmões, agora. Eu não tinha noção do que diria ou do que faria. 

Era como se eu sequer pensasse o suficiente.

Eu acreditava nele. Eu estava sendo grossa por puro medo de acabar sendo pisada outra vez. E, por mais que eu não devesse, eu já havia dito que estava crendo em suas palavras. Mais alguns momentos e talvez eu soltasse mais mil motivos para ele ver que eu continuava fraca, por mais descontrolada e nervosa que estivesse.

Eu contradizia a mim mesma a cada minuto.

Abaixei mais minha cabeça e agarrei a raiz dos cabelos com as mãos, apertando com força os olhos. Meu peito subia e descia com a intensidade de um maratonista. Eu não conseguia nem mesmo pensar em olhar Alexander naquele momento.  

— Eu sei — ele disse. Sua voz estava tão embargada quanto a minha. Ouvi-o engolir em seco antes de prosseguir. — Você não tem a obrigação de acreditar em mim, por mais que eu te peça. Mas eu sei, Polliana. Eu sei que você sofreu com tudo isso e eu te juro acima de todas as coisas que eu, desde sempre, odeio mais que tudo me arrepender do que faço. Mas me arrependo imensamente de ter tomado atitudes assim para tentar ajudar você e eu sinto muito, de verdade mesmo. 

Em soluços, deixei as lágrimas escorrerem mais ainda. 

Eram desculpas, mesmo que ele houvesse dito que não estava ali para se desculpar. 

Alexander... se contradizendo, agora. De novo. Pela milésima vez.

Por minha causa. 

— Você não sente mais que eu, Alexander. Eu chorei tanto, eu me senti um lixo. Você era o meu único amigo de verdade no mundo. Eu confiava nisso, confiava em você. Achei que você fosse a única pessoa que quisesse o meu bem, que só tivesse uma personalidade... difícil. Mas eu realmente acreditei que você gostasse de mim. 

Eu levantei meu rosto para olhá-lo. Ele estava com a cabeça afundada nos braços, como presumido. Seus cabelos estavam encharcados e, pelo que eu via de seus braços pálidos, ele tremia. 

Era noite e ele estava de camiseta. Havia tomado chuva. Era claro que sentia frio. 

Tinha olhos vazios. 

— Eu gostei. 

— Eu não poderia acreditar nisso, Alex..ander — completei, receosa. — Não naquela hora. Não com você rindo de mim e dizendo que eu não servia nem mesmo para ser um brinquedo temporário. 

Alexander soltou, mais uma vez, uma respiração pesada. 

— Eu fui infantil ao dizer tudo aquilo para você. Falei tudo como se buscasse ofender, mesmo, alguém inocente. Deu certo, eu te ofendi de verdade. E você sequer se lembrou do tanto de vezes em que te pedi para não se esquecer, de forma alguma, que eu me importo com você. Você esqueceu de um momento para outro. 

Aquilo me deixou sem palavras por um momento. 

— Se você ficou magoada — ele disse, fazendo uma pausa angustiada —, eu... também fiquei. Eu sei que estou errado nisso tudo, mas eu não te pedi aquilo em vão. Se você simplesmente mencionasse o que eu havia dito e insistisse muito nisso, eu riria, diria 'tudo bem, você venceu' e quem sabe conversaríamos. 

Abaixei o olhar. 

— Está... me culpando. 

— Isso não é uma acusação. Isso é o que eu senti. 

Eu engoli em seco e ele respirou fundo, com dificuldade, aparentemente resfriado. 

— Eu não pude pensar em nada quando você começou a agir daquela forma... Agora, eu também não estou conseguindo pensar direito. Entenda, por favor, que eu não gostaria de ter magoado você. Mas eu sei que me magoei muito mais assim. 

— Eu sei. 

— Se você soubesse como eu me senti... 

— Eu sei, Liana. Eu estou envergonhado. De verdade. Você não imagina o quanto. — Ele pôs o rosto nas mãos. — Lembre-se de que este filho da puta falando, nesse momento, sou eu. Também dói para mim falar essas coisas que, durante a minha vida toda, eu lutei para não dizer.  

— Eu é que  estou envergonhada — cortei. — Eu fiz tudo isso. Se eu não fosse tão... estúpida e infantil, nada dessa droga teria acontecido. Você não precisaria ter tentado me ajudar. Não adianta dizer que não foi culpa minha também. 

Alexander ergueu o rosto e, totalmente perdido, me encarou. 

E eu nunca vira uma expressão tão desolada nele. Depois de tanta coisa, eu não queria me comover com ela, mas somente senti minhas feições mudando outra vez e solucei, chorando ainda mais diante do encarar dele. 

— Só queria acabar com isso tudo — eu disse baixo. — De verdade... pra sempre, mesmo.  

Eu não queria, de maneira alguma, acabar com tudo... 

Era tão patético. 

Se eu fosse ser quem eu devia, eu não tinha que acreditar, não é? Eu não tinha que escutá-lo, eu não tinha que ser fraca e chorar, eu não tinha que me abrir como uma droga de uma criança frustrada e quase pedir desculpas. Eu só tinha de maltratá-lo e fingir que nada daquilo me deixava aflita. As coisas só se repetiriam daquela mesma forma se eu nunca conseguisse me forçar a mudar. 

— N-não. — Ele pareceu tão perdido que sequer tinha palavras. Suas orbes negras, trêmulas, pairavam nas minhas enquanto ele movia negativamente o rosto. — Não, não... Em hipótese alguma, Liana, já te falei: não pense nisso. 

E eu engoli em seco, encarando seu colo. 

Alexander me chamara pelo meu apelido. 

Semanas atrás, eu ficaria feliz por isso. 

— C-como... Como que você pode dizer que não? 

Alexander franziu as sobrancelhas de forma culpada. 

— Polliana... 

— Eu estou assustada. — A voz saiu num fio patético verdadeiramente meu. — Mas... Não faça essa cara. De verdade. Não me entenda errado. Eu não vou me matar, eu não sou assim.  

— Eu nunca menti para você até aquele dia, Liana — as palavras dele saíram afobadas de sua boca. — E eu nunca mais o fiz desde então. Eu jamais diria que você não é uma estúpida se você realmente fosse. 

— Você sabe... 

— Eu não sei de droga nenhuma. Eu sei que, se há um culpado nisso tudo, fui eu. Eu devia ter falado e confiado em você, mas invés disso eu só tentei fazer tudo da forma mais grosseira possível... Não posso te culpar por ter acreditado. E a minha intenção, você pode acreditar, foi a melhor possível. Eu nunca soube proteger e me abrir inteiramente com coisa alguma. Desde o começo, eu sempre só escutei você, Polliana. Eu nunca falei de verdade como eu me sentia só porque eu estava tentando te privar do inferno que é a minha cabeça e a minha vida. Ao invés de conversar, falar, eu só sabia te chamar de capacho e nunca falar, de verdade, que eu apenas jamais quis que você se machucasse por ficar cuidando demais dos outros. 

Alexander esfregou um dos olhos com os dedos. 

— Eu preferi fugir disso e apenas te deixar sozinha porque achei que cresceria assim, porque nós nunca poderíamos nos manter juntos para sempre, mesmo que eu te protegesse de uma forma ou de outra. Talvez, se te machucasse assim, você começasse a ser mais... fria. — Ele tirou a mão do rosto, colocando-a sobre as pernas. Abaixou o olhar. — A parar de ser tão gentil, a confiar tanto em todo mundo, a aprender a mentir e, ao menos, fingir que não se importava enquanto não começava a não se importar de verdade... É assim que acontece com a maioria das pessoas, apenas você não sabe. Ou cresce e esfria, ou você se queima. 

Ele virou o rosto para mim e empurrou o cabelo para trás da orelha. Seus braços nus estavam visivelmente arrepiados, molhados com a água da chuva. 

Era óbvio que ficaria doente. Talvez já estivesse. 

— E você já se queimou tanto, Liana. Tanto. — Ele suspirou — Eu te conheço não há nem um ano e eu vejo, mesmo assim, a quantidade de dor que você já deve ter sentido. Eu não quero isso outra vez, por mais egoísta que seja. 

— Eu não sei o que dizer. 

— Eu sei que eu não hesitaria em acabar com tudo de bom que você tem, num momento ou outro, para poder impedir isso. Foi o que eu fiz. Esperei que você, por mais que machucada de início, usasse isso para se reerguer outra vez. — Ele falava, agora, sem o embargar de momentos atrás. Suas mãos ainda tremiam, mas as palavras eram firmes. — Eu estava certo do que fazia; mas, assim que eu te virei as costas, eu nunca me odiei tanto. Foi como se tudo houvesse se mostrado em vão no momento em que eu vi o seu rosto e você correu. Dezesseis fucking anos tentando me manter sem me arrepender de coisas feitas para você surgir e meter o pé em tudo. 

— Eu... mudei você? 

Ele levantou as sobrancelhas. 

E... soltou um sorriso amargo. 

— Se você me mudou? Você levou embora metade do que eu sou. Eu sei, Polliana, que eu nunca mais vou ser a mesma pessoa com ninguém depois de você. — Ele abaixou a cabeça. — Mas não importa, de verdade. Eu só preciso que você saiba que, por mais que não deva acreditar, eu destruí totalmente o meu orgulho para tentar fazer algo por você. E eu nunca faria isso por alguém inútil, estúpido, sem valores e que não merece porra nenhuma de esforço. Eu não amo, eu não tento ajudar filhos da puta e, se há alguém errado aqui, sou eu. 

Eu apertei os meus punhos, fechando os olhos de novo. Não o suportava falando e me olhando daquela forma. 

— Você... tem todo o direito de me odiar caso queira e eu até mesmo peço por isso — Alexander disse. — Em seu lugar, eu não me deixaria ir embora aqui sem levar ao menos um murro no meio da cara. Agora, sim, é um pouco tarde, mas... tome suas próprias decisões. Escolha um rumo para ser quem você quer ser sem alguém em cima, querendo decidir isso. Foi o que eu fiz desde pequeno e não há sentido em pedir a você algo que eu não queria para mim de forma alguma. 

Eu franzi minhas sobrancelhas e tentei olhá-lo. Alexander... sorriu, de novo, agora como se me pedisse desculpas. Aquele sorriso praticamente me empurrou num abismo sem fim. 

Eu nunca o vira sorrir daquela maneira. Ele estava visivelmente triste, culpado, mas como podia sorrir? Como podia forçar aquilo, como se estivesse tudo bem? Como se eu não pudesse perceber que os seus olhos estavam lutando contra as lágrimas? 

Metade de mim queria confiar e a outra metade queria apenas honrar meu próprio nome para me defender de tudo, ouvindo as palavras de Angelina e mostrando que eu não era mais aquela pessoa... 

Eu precisava de um tempo para decidir quem eu era, quem eu seguiria sendo. Se todo aquele tempo continuaria ou se eu aceitaria a Polliana que trouxera todos aqueles problemas à tona. 

E eu não sabia, de verdade, no que pensar. Eu nunca mudaria nesse quesito. Minha cabeça estava tão cheia que isso fazia eu sentir o chão se abrindo sob meus pés. 

— Mas você pôde exigir que eu agisse como você — eu falei. — Você... é isso tudo, não é? Você... foi magoado e se tornou frio? 

Eu o ouvi suspirar. 

— Isso é idiotice. — Num gesto familiar, curvou as sobrancelhas espessas. — Eu sou assim. Não me justifico com fato passado nenhum. 

— Se você for, mesmo, a pessoa que eu conhecia antes de aquilo tudo e a pessoa que fala comigo agora... Você foi magoado e quis se tornar frio. 

— Eu não sou frio. — Ele pendeu a cabeça para o lado e me olhou. Por que parecia bravo? Era... a mesma cara de antigamente. — O que você acha que sou? Não me faço de misterioso, de frio e calculista, de porra nenhuma. Eu sou uma pessoa. Não um Sasuke. Sou só... um chato. 

Franzi o cenho, me perdendo no que ele dissera. 

— Eu não entendo. 

— Ah. Não tem de entender. Entenda que eu não odeio você, não te usei e não sou como Sam. Entenda que, na minha visão, eu estava fazendo o certo para mudar você, pois não queria te ver chorar outra vez. 

Senti uma pedra descendo pela minha garganta. 

— Você é, talvez quem mais me fez chorar. 

— Liana... Eu sei. 

— Pare de dizer essas coisas — eu supliquei. — Eu não consigo ouvir ou dizer mais nada. Só... já chega, não é? Chegou a um ponto em que só se repete... as mesmas coisas, Alexander. 

Ele me olhou e relaxou as sobrancelhas, passando o olhar para o chão em seguida. Voltei o rosto aos braços de novo. 

— Desculpe. 

— Me deixe sozinha. 

Eu podia ouvir a respiração baixa dele logo ao meu lado. Senti um movimento ali e mordi com força meu lábio inferior. Eu não sabia se ele havia se levantado ou não, mas não queria ver. 

— Eu respeito o que você quer — eu o ouvi dizer, agora um pouco distante e acima de mim. — Mas você... vai ficar aqui?

Eu cobri o meu rosto e fiz que não com a cabeça. 

— Eu sei que é ridículo eu querer mostrar me importar justamente agora, Polliana... Mas eu não quero que você vá embora sozinha.  

Cedi a ele alguns segundos em silêncio. 

— Eu estive sozinha desde o dia em que eu nasci até agora. Você quer mesmo mudar isso nesse momento, depois de ter feito algo que só faria eu começar a ficar mais sozinha ainda? 

— Polliana... 

— Não é você quem queria que eu fosse independente? 

Com os dedos sob os cabelos, finquei com força as unhas em minha testa. 

Cada segundo me parecia uma tortura. Ele atirava-me respostas que apenas traziam mais perguntas. Eu não conseguia lidar, pensar, responder... 

Era como se eu houvesse sido jogada num caldeirão com quem eu era e quem eu devia ser naquela hora. 

— Eu quero. — Ele demorou para responder. — Eu te deixarei sozinha. 

— Você sabe que eu preciso de um tempo. Um... bom tempo.

— Você... tem todo o tempo do mundo. É a sua vida e eu não ditarei regra alguma. Eu não preciso de resposta. — Sua voz respirada era firme. — Me explicar era a única coisa que eu precisava fazer. Por favor, tenha cuidado quando for para casa. 

E então eu esperei que ele houvesse ido embora. 

Fiquei em silêncio, sozinha, soluçando. Ainda ouvindo a chuva batendo no asfalto e na cobertura acima de mim. 

Do fundo do meu coração, eu me perguntava quantas vezes eu já não havia pensado: "Então, é assim que tudo termina?" 

Mas, naquele momento, eu sabia que não era igual. Pois eu podia sentir mil vezes aquilo, mas doeria da mesma forma. 

Alexander era mais um que ia embora por minha culpa. Mas ele não era "só" mais um. 

Minhas mãos estavam em meu rosto quando algo as tocou, tirando-as dali. Eram dedos gelados e úmidos. Pequenos e macios como os de uma criança. 

Ele estava abaixado diante de mim e seus olhos rasgados me encaravam. Sua expressão estava séria, mas não severa. Alexander estava na chuva outra vez. 

—Eu não sei se você vai acreditar, entender ou simplesmente ouvir isso — ele sussurrou e fechou os olhos. —Mas não importa. Eu sinto muito por estar insistindo em dizer algo quando você não suporta mais.

Eu abaixei meu olhar mais uma vez. Encará-lo estava fora de alcance e eu me senti obrigada a repeli-lo, evitando seu toque. 

— Se você, um dia, se sentir mal por algo e quiser fazer algo ruim consigo mesma — Alexander disse —, eu quero que você se lembre de mim e do que eu vou te dizer agora. 

Ele inclinou a cabeça e tocou sua testa fria na minha, forçando-me a olhá-lo mesmo que seus olhos, ainda fechados, não me encarassem. 

— A sua vida foi a melhor parte da minha. — O hálito dele atingiu minhas narinas. Não tinha cheiro nenhum. Só estava quente. — Nós nos afastaremos agora, mas eu nunca me esquecerei do nosso tempo e dos motivos de eu ter, de verdade, me apaixonado por você. Eu... espero que se lembre disso. De como você é incrível em cada detalhe filho da puta e de como pôde ser a melhor pessoa possível enquanto eu sempre me provei sendo a pior.

Ele abriu os olhos e eles estavam marejados. 

— Eu... amo você com todas as suas coisas que me irritam, me preocupam e me fazem acabar sendo um idiota. Eu amo você mesmo com você sendo uma idiota, Polliana. Uma das maiores idiotas do mundo. Porque não há como olhar para o seu rosto, conhecer a sua alma e não acabar sentindo isso.

Eu crispei meus lábios e senti minha expressão perder o controle. Forcei-me a fechar os olhos e soltei um soluço contido. As mãos dele confortaram meu rosto e lágrimas rolaram por suas bochechas. Ele estava chorando em minha frente. 

— Eu sei que, mesmo se recomeçássemos, meus erros seriam os mesmos, no entanto isso não importará caso não recomecemos; e não recomeçaremos. Antes de tudo acabar, eu preciso apenas te dizer isso tudo. Eu sinto muito se nunca te falei propriamente o que eu sentia de verdade e se isso acabou só trazendo mais problemas. Me desculpe por esconder isso e me desculpe por ter mentido para corromper você.

— A-Alexander, não...

— Apenas mais um pouco — ele insistiu. — Nunca, nunca mais pense em se matar ou se ferir. Eu não sei se é verdade, não sei o que aconteceu, não sei o que realmente foram aquelas mensagens e toda a confusão, mas não importa... Eu não sei, também, se sou a única pessoa que ama você, mas eu sei que eu perderei todos os rumos caso algo aconteça contigo. Então, por favor, pense nisso. Pense que, como você sempre me falou, você não deve ser você mesma e fazer o bem para os outros esperando algo em retorno.

Eu me forcei a olhar nos olhos dele uma última vez, fechando os meus em seguida.

Minha testa foi beijada e ele se foi, sem eu pedir que voltasse.

Algo está mudando dentro de mim
Eu preciso escrever, antes de me esquecer
Que você nunca me disse sobre estar sozinho 

Fúria e raiva me destroem
Estou tão preso, não consigo sair
Mas eu só posso te odiar?

Não é capaz de me sentir
Não é capaz de me amar

Mesmo quando me fere
Ainda me lembro dos seus começos
Eu compreendi e fiquei de lado

Quis algo que não pude ter
Serei forte novamente
Não se preocupe comigo, confie em mim
Por favor, confie em mim, agora

Eu tenho que ver isso
Pelo meu amor
Deixe-me acreditar

Agora, tenho que ouvir, novamente
Isso é pelo meu amor

Lembre-se do porquê de eu estar aqui, ainda
Porque é tudo por você

Mais uma vez, me deixe cantar
Você pode me machucar que continuarei o mesmo

Quando é sobre algo que não posso ter
Serei forte, de novo

E preciso de você para acabar com cada problema
Com o tempo que for

Pode me machucar
Te darei meu amor
Você é boa como só você é

Vou me entregar a você
Deveria ficar nesse caminho?
Deveria ir?
Você pode viver sua própria vida
Por você mesmo...
(BURY, Pay money To my pain)


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

É isso, obrigada por ler, mais esclarecimentos e menos confusão daqui pra frente! Agradeço muito mesmo pela cumplicidade ♥ amo vocês, me desculpem, novamente. Vocês, mesmo a maioria sendo leitora, apenas, são também escritores e entendem o que é um bloqueio criativo. Nós nos sentimos incapazes e nada colabora. Mas, uma hora, tudo se resolve, né? Espero terminar Defeitos de Fábrica sem passar por isso novamente. ♥
Um beijo, me desculpem por algum erro, fiquei tão animada a postar que não revisei muito perfeitamente esse capítulo...! ♥