Defeitos de Fábrica escrita por Lorena Luíza


Capítulo 19
XIX. Inocente num quarto silencioso


Notas iniciais do capítulo

Olá! ♥
Eu quero pedir uma coisa, antes de me explicar!
EXISTE UMA FIC QUE SE CHAMA "SE EU FECHAR OS OLHOS", E, SÉRIO, LEIAM ESSA FIC. SÓ LEIAM. VOCÊS VÃO SE APAIXONAR. ♥ Eu PROMETO!

Antes de qualquer coisa, já peço desculpas pela demora em aparecer. Sei que demorei! É que o bloqueio não favoreceu e eu só comecei a escrever há uns cinco, seis dias, então eu acabei fazendo quase dezessete mil palavras nesse tempo todo e capaz que não esteja lá muito bom. :/ Mas dei o meu melhor ~
Ah, eu quero começar a escrever coisas melhores aqui, nas notas iniciais ou finais, porque geralmente não faço nada que preste porque fico animada demais para postar e nem presto atenção aqui HOISAOIHSAOHIAS


PESSOAL! Nesse momento, Defeitos de Fábrica tem 212 comentários, 174 (!!!!!!) acompanhamentos, 52 favoritos, 10 recomendações e 6597 visualizações! Vocês sabem o quanto isso significa? COISA PRA CARAMBA! OBRIGADA POR TUDO! ♥

Ah, com todos esses acompanhamentos, muito pouca gente comenta e isso faz uma falta absurda. Se você é um fantasma que lê Defeitos de Fábrica, eu adoraria te conhecer. ♥ Se não se sente confortável nos comentários, apenas dê seu apoio nos favoritos! Tudo bem? Ou entre no grupo de Defeitos de Fábrica no Facebook, é só me adicionar! Meu nome é Lorena Luíza, vocês vão saber quando virem minha carinha husauhsauh

O grupo de Defeitos de Fábrica é totalmente descontraído e super divertido, então, sério, entrem! Há MUITOS extras lá e qualquer um pode postar, seja eu ou leitores. Lá, tem fanarts, imagens engraçadas e tudo de legal que você pode imaginar ♥

A música do capítulo é Innocent in a silent room, da banda Pay Money To My Pain — sim, dessa vez não tem ONE OK ROCK nem MY FIRST STORY. Não a achei original no YouTube, apenas com covers de guitarra, então espero que não se importem. Também fui em quem a traduzi ali, no fim do capítulo, então espero que esteja boa de entender. ♥

É isso, então! Boa leitura e há uma dedicação para alguns amigos no fim do capítulo ♥ Mas Defeitos de Fábrica já é dedicada a todos que dedicaram ao menos um minutinho para a fic, então isso não é nem o mínimo que posso fazer! :D

Sei que o cap está muito grande, mas espero que leiam~



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☔ 

A quantidade de suor que me encharcava deixava-me a ponto de sequer sentir frio mais. Com as mãos trêmulas, abri o portão diante da casa, atravessando o quintal às cegas em seguida e procurando não tropeçar nas placas de cimento no meio da grama. A forma como tateei a porta pateticamente, procurando a maçaneta, me forçou a quebrar um pedaço do trinco quando o encontrei. 

Eu não conseguia pensar em qualquer outra coisa. Polliana, Lincoln e a minha vontade de esmurrar a maior quantidade possível de móveis disputavam espaço dentro de minha cabeça. Logo, o som da porta que eu acabara de bater ressoou em meu cérebro, acalmando-o por um segundo. O ruído seguiu-se pelas chaves tilintando. 

A sala estava escura. Fechei os olhos, intensificando a escuridão diante de mim com minhas costas coladas à madeira da porta. Meu peito se erguia e abaixava sob a camiseta colada a ele por puro suor. Sem exceções, eu sentia todos os meus músculos latejando. 

Levei minhas mãos aos braços e afundei as unhas em minha pele, descendo os dedos e desenhando cinco rastros avermelhados em ambos os membros. O alívio que senti pareceu doentio, tão bem-vindo no momento que eu soltei o ar que prendia no momento num suspiro baixo. Deslizei as unhas mais uma vez.

Permaneci dessa forma por alguns longos segundos antes de a luz se acender repentinamente. Meus olhos, já acostumados com a clareza da madrugada, apertaram-se com mais força diante da iluminação. O som de Anderson falando, acendendo a luz da sala e descendo barulhentamente as escadas me obrigou a abrir os olhos e, assim, procurá-lo no cômodo. 

Seu corpo estava enfiado em roupas de dormir e ele calçava um pé de meu chinelo, outro do dele. Faltavam-lhe os óculos na face pálida e a franja estava murcha, molhada, caída sobre a testa. Vê-lo sem os cabelos para cima era quase como não ver o meu irmão. 

— Ele chegou, está aqui! — com o celular colado à orelha, Anderson falava, nem olhando para as escadas de tão acostumado com elas que era. — Eu vou falar com ele! Alexander! Aonde você estava? 

Algo latejava em minha têmpora e ouvir aquela voz não diminuiu um por cento do meu estresse e nervosismo. Acompanhei-o com o olhar, vendo-o acabar os degraus da escada e correr esbaforido até mim. 

Eu não queria trocar palavras com Anderson desde que eu tinha uns nove anos de idade. Óbvio que, com dezesseis e puto da vida como eu estava agora, isso não havia mudado. 

— Com quem está falando? — soei cavernoso ao perguntar isso. — É a mãe?

Havia como escutar a pessoa falando ininterruptamente no telefone e eu já imaginava quem era. Vendo meu rosto,  ele separou os lábios e hesitou antes de falar. 

— N-não — quando Anderson disse isso, eu ainda escutava a vozinha tagarelando. Ele desviou o olhar e pareceu desconfortável, franzindo as sobrancelhas. — É... a Becca. Ela está preocupada com você. 

— Você ligou para ela? 

— Não, ela me ligou para perguntar de você, eu... 

— Deixe-me falar.

Ele voltou o olhar para mim, mas ficou em silêncio e não demonstrou a menor vontade de me responder. Ignorou-me totalmente, semicerrando os olhos. 

Dei um passo e estendi o braço em sua direção. 

— Se ela está perguntando de mim, eu falo com ela, não você. — Mexi os dedos, querendo apressá-lo. — Vamos. 

A mão dele tremeu sobre o celular e Anderson hesitou por longos segundos. Ele abaixou-o, deslizando o dedo sobre a tela depois e desligando a chamada na cara da Rebecca. Ergueu os olhos para mim quando terminou de fazê-lo, estreitando-os de forma desafiadora. 

Se aquilo me irritou por eu querer falar com Rebecca?

Não.

Eu não queria falar com ela e não suportaria aquela garota tagarelando no meu ouvido. A única voz que eu gostaria de escutar seria a minha própria, me chamando de filho da puta dentro da minha mente. Rebecca só iria querer se aproveitar da situação para me encher de perguntas e se jogar sobre mim, como a idiota sem noção que ela era na grande maioria das vezes.

Tê-la falando comigo não era, definitivamente, o que eu queria. Eu tomaria o telefone de Anderson apenas para ter o prazer de dizer a ela eu mesmo que não queria falar agora e desligar, impedindo-o de continuar a falar com a Rebecca. Minha paciência perdia os limites quando eu o via tendo o mínimo de contato com ela. 

— Por que você não liga para a Becca, então? — Ele arqueou uma sobrancelha como se quisesse me irritar. — É o meu celular, eu não tenho de emprestá-lo para você! Você não tem o direito de me pedi-lo assim, exigindo dessa forma. 

Eu devolvi o encarar dele e escutei minha avó se levantando no andar superior. Sempre que ela se levantava, derrubava alguma coisa. Anderson e minha mãe tinham o mesmo costume.

— Eu não ligo para ela porque estragaram o meu celular e ele provavelmente está nas mãos da Rebecca agora — respondi entredentes. — Ou você acha... 

— O que diabos houve com o seu celular? — ele me interrompeu de uma forma ridiculamente curiosa, como se houvesse se esquecido de continuar sendo um filho da puta irritante apenas para saber o que queria. — Está estragando-o de propósito para ganhar outro? 

Encarei-o por alguns segundos enquanto respirava pesadamente. Anderson parecia hesitar em agir daquela forma, deixando claro seu nervosismo. A voz falhava e ele engolia em seco o tempo inteiro. Não sabia demonstrar estar puto de verdade — era como Liana se fazendo de brava comigo. 

— Não é por você ser ridículo e fazer esse tipo de coisa que eu também sou assim. — O celular dele começou a vibrar em sua mão, tocando uma abertura de Naruto. Anderson apertou-o nos dedos, provavelmente querendo atender. — E eu não terminei de falar. Você acha, mesmo, que eu pediria para usar algo seu quando não preciso disso? 

— Por que você está tão irritado por eu estar falando com ela? — ele perguntou de volta, elevando a voz e com a pálpebra tremendo. — Mas que porra! Rebecca não é propriedade sua! 

— Eu não estou irritado por porra nenhuma que te envolva ou envolva Rebecca! 

Ele engoliu em seco e eu me senti tentado a arrancar aquela droga de celular das mãos dele e atirá-lo na parede. Para destrui-lo, sim. E para parar imediatamente aquela droga de Blue Bird que devia ser a música mais modinha que tocava na minha casa, também. 

"Aoi, aoi, ano sora" é o caralho. 

Pau no cu do céu azul.

— O que é, então, se não é culpa minha? — A voz de Anderson estava trêmula. — Eu não aguento mais você sendo um grosso! Eu não fiz nada, você saiu e sequer me avisou, por que diabos eu tenho algo a ver com isso e mereço te escutar descontando a raivinha em mim? 

— Eu não estou descontando nada. Você sequer merece que eu fale com você, Anderson! Quando eu sou obrigado a falar, não vou me obrigar a te tratar direito.

O celular cessou o toque.

— Eu não sou nada além do que você também é e te trato como meu irmão — ele respondeu —, porque eu gosto de você. O respeito que eu mereço não é nada mais do respeito que eu te dou, Alexander.

Eu olhei para o chão antes de voltar a olhá-lo. Não era, de forma alguma, como se eu houvesse ficado perfeitamente saudável e disposto apenas para brigar com ele. Meu peito doía de verdade e isso me fez querer cessar aquilo o mais rápido possível. 

— Quer saber? — perguntei, empurrando os cabelos para trás. — Isso é problema seu e você não merece nada melhor. Você me trata com falsidade porque quer, eu nunca exigi nenhum respeito da sua parte. 

Ele abriu a boca para responder, mas não dei espaço. 

— Outra coisa: enfia o seu celular no fundo do seu rabo, Anderson, já que ele, sim, é propriedade sua — respondi com raiva. — Ao menos isso, já que a Rebecca não é. E eu vou subir agora, então me dê licença. 

Não o olhei antes de dar um passo à frente, pretendendo ir em direção às escadas. Ele colocou-se diante de mim e deu um empurrão em meu peito. Aquilo me fez recuar. 

Eu ergui os olhos na direção dos dele e arqueei uma sobrancelha, alargando as narinas. 

— T-também não é propriedade sua! — Anderson tentou dizer, aumentando o tom da voz outra vez. — Você... não namora ela, Alex! Pare de querer dar uma de protetor!

— Claro que não é propriedade minha. Eu iria querer namorar alguém, não fazer a pessoa de objeto meu. E, também, óbvio que eu não namoro Rebecca — respirei fundo ao respondê-lo. — Eu não quero, afinal. 

Anderson corou, escondendo o rosto com uma mão. 

— Isso... é uma desculpa sua para parecer melhor. 

— Por que eu precisaria tentar me mostrar melhor do que você? — Franzi as sobrancelhas. — Usando esses recursos, ainda? Não preciso disso. 

— Não é porque vocês ficavam antes que ela ainda está te querendo — ele insistiu, ignorando o que eu dissera. — Ainda mais quando você não dá a mínima para a garota! Você saiu de onde estava e sequer disse a ela aonde iria, não é? E isso porque ela é sua amiga! Você nem merece ter a Rebecca perto de você! 

Não mudei minha expressão. Minhas mãos formigavam dentro da calça, pedindo para descer um tapa no rosto de um certo alguém.

Quem tinha falta de ar era eu, mas ele respirava como se houvesse corrido uma maratona. Estava tão nervoso que senti receio, pensando que poderia cair duro e loiro na minha frente a qualquer minuto. 

— E? — com escárnio, perguntei. — Isso vai mudar alguma coisa? 

— Ela nem gosta de você assim — ele acrescentou irritado. — Vocês se falam por costume! Eu tenho certeza de que, se eu dissesse a ela que você estava com uma menina lá em Sorocaba, ela... 

— Eu já disse a ela — falei, erguendo uma sobrancelha. — Mas, se quiser ir dar mais alguns detalhes, eu posso te contar sobre tudo. Não que Rebecca já não saiba mais do que deva, de qualquer forma, mas sei que você ficará feliz se puder ir dar apenas mais um detalhe da grande novidade a ela. 

Ele uniu as sobrancelhas.

— E ela... não se importou? 

— Ela quis, antes de tudo, perguntar se eu queria pegá-la ou não. — Torci os lábios ironicamente. — Porque, claro, se ela não tivesse nenhum interesse em mim, é óbvio que perguntaria algo assim... Também quis saber tudo sobre a garota que você viu comigo, para ver se era "melhor" do que ela. Ficou brava achando que gosto da menina, também. 

Caso eu estivesse bem, com certeza ficaria rindo do rosto vermelho dele e de como as palavras claramente lhe faltaram agora. 

Não queria me mostrar falando aquelas coisas, de forma alguma. Mas era ridículo tê-lo dizendo várias coisas estúpidas sem sequer saber direito de tudo. Também não era como se eu me sentisse O Gostosão com Rebecca dando uma de que me queria, ainda mais por ver que ela nem mesmo gostava realmente de mim, mas... 

Conseguir deixá-lo daquela maneira, todo desconcertado, me fazia algum bem. 

— E... E você acha que isso significa alguma coisa? Como se eu não pudesse fazer nada a respeito disso, caso eu quisesse? — ele disse, tendo sua vez de recuar. — Rebecca só deve ficar em cima de você porque você é uma garota mais bonita do que ela! 

Eu fiz cara de desentendido.

— Ah. É essa a sua maneira de tentar me diminuir? — perguntei. — Pode ter certeza que já ouvi isso o suficiente para estar pouco me fodendo, Anderson. Você é uma vergonha até quando vai tentar humilhar alguém. 

— Eu não preciso te humilhar — prosseguiu. — E não sou eu a vergonha. Talvez Rebecca vá te pedir algumas dicas de beleza, ou então te fazer de melhor amiga dela, não é? 

— Talvez eu só seja mais bonito do que todas as garotas que você pega, não é? — perguntei de volta, no mesmo tom de voz dele e quase usando suas palavras. — Isso deve ser constrangedor. Para você, porque para mim não é. Eu não me importo nem um pouco de ser melhor do que elas, ou de ter ficado com várias das garotas que você quer antes de ti.

Eu odiava ficar medindo caráter por relacionamentos ou aparência física, mas era impossível olhar para ele, escutar aquelas coisas e me manter calmo, sem soltar ao menos um pouco de veneno. Sequer sabia como não havia refeito o soco que dera em Lincoln no rosto de Anderson, apenas para deixá-lo mais amassado do que já era naturalmente. 

Ele era ridículo — e eu estava sendo tão ridículo quanto respondendo a suas provocações ao invés de, como deveria, achar algum meio de ir atrás de Polliana antes de tudo dar mais errado do que já dera. Minha paciência estava no chão e eu não sabia como ainda conseguira dizer algo irônico, tamanho suor frio que ainda descia pelo meu pescoço. 

Anderson abriu a boca para prosseguir, mas, outra vez, eu não permiti. 

— Eu não vou continuar perdendo a droga do meu tempo com você. — Empurrei-o de verdade e atravessei a sala, não esperando sua reação. — Pode falar para a mãe se quiser, Anderson. Conta pra ela, pra vó, pro Papa, pra Dilma. Ressuscita o vô e fala pra ele também, foda-se. Se for contar, apenas me avise, porque aí eu meto a minha mão no meio da sua cara pra te dar mais uma merda de um motivo para você ir contar a alguém. 

Seu celular começou a tocar mais uma vez, mas parou sozinho em poucos segundos — o que foi ótimo, de verdade. 

Ele cambaleou para o lado, fechando o punho e a cara. Antes de ver mais alguma ação dele e pensar em rir dela, escutei a minha avó descendo as escadas correndo e, num berro, ela perguntou: 

— Tá brigando? — Sim. Ela sabia usar "r", como qualquer chinês. Só não era sempre que isso dava certo. — Alexander! Aonde tava? Deixa o irmão! 

Eu olhei para ela de roupão e fechei as mãos. Sequer me dei o trabalho de tentar me defender, pois não adiantava. Se eu gostava da minha avó? Eu a amava. Mas isso não mudava o fato de que ela via o Anderson como a coisinha maravilhosa, inocente e cute-cute que nem qualquer outra pessoa.

Antes mesmo de recomeçar a prestar atenção no que meu irmão continuava a falar, o telefone da casa tocou sobre a estante e eu imaginei a impaciência de Rebecca, que devia ter se lembrado dele ao ser ignorada ao ligar no celular. 

Impedindo que Anderson fosse atendê-lo também, eu acabei de atravessar a sala com a voz irritante dele em meus ouvidos e a de minha avó mandando que eu a escutasse. Apanhei o telefone ao lado de um gato de cerâmica e saí da sala, batendo a porta e indo para o quintal. 

Eu mal havia entrado, mas o interior da casa estava mil vezes mais quente do que o lado de fora e meu corpo já havia se acostumado. Ter me colocado no exterior outra vez fez com que eu sentisse uma baforada gélida de vento em meus rosto e braços. 

— Oi — falei áspero ao telefone, com ele encostado à orelha, e enfiei fundo minha mão gelada no bolso da calça repleto de papéis de bala. — O que que é? 

— Sou eu — Rebecca disse esbaforida, arfando no telefone, fazendo chiados em meu ouvido e não se importando com a falta de sentido do que ela havia falado. Finalmente pude falar com você! Andy não quer me atender mais, ele está me ignorando. Sei que você não gosta que ligue para ele, mas você sumiu e eu nem soube aonde foi parar! Precisava dar um jeito de ligar para alguém próximo ou coisa assim, vai ver você houvesse só ido para casa, mesmo... 

— Anderson e eu não somos próximos — rolei os olhos ao respondê-la. — Rebecca, pare de ligar; não quero falar com ninguém agora, eu tô bem, só voltei para a minha avó porque não ia continuar lá olhando para a cara de vocês. Não ligue para Anderson, nem para a casa, nem para a minha mãe ou o que for. Eu tenho certeza absoluta que você ligou para ela, não foi? 

Ela deixou a ligação tornar-se um puro silêncio e eu não me senti obrigado a quebrá-lo. 

Escutei minha família falando lá dentro e fiquei próximo à uma das árvores do quintal, ouvindo o farfalhar das folhas dela com o vento acima de minha cabeça. Fechei os olhos e respirei, tentando não dar ouvidos à minha voz dentro da mente, que mandava-me desligar na cara de Rebecca da forma mais rude possível. 

Não era novidade que eu não queria falar com ela — fosse naquele dia ou em qualquer outro mais recente. Ter sido obrigado a falar tantas idiotices com aquela menina mais cedo havia sido como me enfiar numa ilusão propositalmente, sendo chutado pela porra da realidade minutos depois por reentrar no bar. 

— Sim, eu... liguei — hesitando, ela respondeu. — Mas que diabos foi aquilo, de qualquer maneira? Você... meteu um murro na cara do Lincoln, não foi? Eu ainda estou no bar e o assunto foi essa sua revolta repentina, sem falar que você largou um iPhone afogado para trás. Está com a sua prima, aliás. Eu ia pegar, mas... 

 Eu senti algo fervendo dentro de mim quando a ouvi falando do que eu havia feito. 

— Revolta repentina? indaguei, totalmente alheio ao que ela dissera de meu celular, Xin Qian ou qualquer outra coisa. Foi inevitável não me sentir tentado a soltar o ódio naquele momento e eu não mordi a língua. — Sinceramente, Rebecca?

— Ué! E não foi repentina? — ela perguntou de volta, dando uma pausa em seguida. — É óbvio que foi, honey. Você estava numa boa, eu... 

— Eu estava numa boa com você e com os outros. — Soltei um suspiro grosso, voltando a revirar meus olhos. Virei a cabeça bem para longe, encarando um poste da rua. — Não com Lincoln. E, agora, você vai fingir que não me conhece há um puta tempo e que não sabe que dar um soco na cara do Lincoln não foi nada, se comparado ao que ele já fez comigo? 

— Não é isso que estou falando! 

— É isso que você está falando, sim. 

— Dá para ter calma? Agora sou eu quem estou perdendo a paciência com você. 

— Calma é o caralho, Rebecca! — Meti a mão em meu próprio rosto, apertando os olhos. — Não é revolta repentina porra nenhuma! Você quer que eu ria diante disso? Você não entende nada do que está acontecendo e ainda vem dar palpite!

— Mas que droga, Alexander, eu só estou preocupada. Deixe de ser estressadinho. 

— Você não me viu estressado ainda.

— Dá para parar? Não é culpa minha para você ser grosso assim, entendeu? — Foi como se eu ouvisse Anderson falando com a voz dela. — Além disso, quer me dizer que droga aconteceu, de verdade, com você? Você estava vidrado naquela droga de celular e esmurrou o Lincoln como se sua vida estivesse lá dentro. Ele só estava brincando, você sequer precis— 

O que ela dizia foi cortado pelo "bip" do telefone quando desliguei-o, terminando a chamada e abaixando o braço.  

Não me preocupei com o que Rebecca acharia daquilo. Se me ligasse outra vez, eu sequer atenderia. Talvez até deixasse o telefone ligado propositalmente para que ela não pudesse fazê-lo. 

Se quisesse insistir em ligar para Anderson, que ligasse, então. O que ela precisava saber de mim, já sabia, e talvez tivesse até conhecimento demais de como eu estava — eu não dissera isso ao meu irmão sem motivos. 

Voltei a adentrar a casa com o telefone sem fio nas mãos. Minha avó estava sentada no sofá e Anderson estava de pé perto da entrada da cozinha, de braços cruzados. Ele me acompanhou com o olhar quando fui em direção as escadas. 

Subi as escadas sem dar a mínima aos dois. Tirei os calçados e me tranquei dentro de um quarto vazio, quarto esse que servia para a minha avó ser estúpida e ficar guardando as tranqueiras do meu avô. Havia móveis antigos da casa lá e um armário repleto de roupas e pertences dele. Talvez até o cinto que ele usava para bater em mim estivesse ali, no meio, mas não era como se isso me deixasse incomodado.

Não fiz questão de acender a luz e, guiado pelas teclas fluorescentes do telefone, eu disquei uma série de números que sabia de cor. Demorei a ser atendido, precisando ligar mais de uma vez. Era madrugada, afinal — eu não podia reclamar por isso. Se não estivesse na balada, estaria dormindo, fosse com um cara desconhecido ou com os meus gatos ao redor.

Senti que, daquela vez, seria difícil convencê-la e engoli em seco, fechando os olhos. 

— Alô, mãe?

☔ 

Eu não disse perfeitamente a ela o que acontecera de verdade e não a convenci a aparecer lá outra vez, agora para me buscar. Ouvi apenas que não era hora de perturbá-la, que ela tinha de dormir e que não havia tempo para escutar as minhas crises de madrugada. 

Como se eu fizesse algo na madrugada além de ficar acordado, no escuro, andando pela casa e esperando dar a hora de me enfiar sob o chuveiro para ir à escola. 

Crise é a puta que pariu. Eu nunca tive crise nenhuma. O Brasil precisava ver o que era um Alexander em crise, ou então um Alexander revoltado. 

— Se você quer perturbar alguém, então ligue para algum dos seus amigos maconheiros que passam a madrugada toda acordados — foi o que ouvi minha mãe dizer. — Seus transtornos bipolares não me dizem respeito, Alexander. Você faltou bater na minha cara para que eu saísse de Sorocaba para te largar aí com a sua avó, então agora faça bom proveito, tudo bem? Se quer voltar e gastou o dinheiro que te dei, se prostitua e volte de ônibus.  

Naquela hora, eu percebi que seria preciso apelar e fiquei muito desesperado. Abri a boca para inventar que batera num garoto aleatório e que ele chamaria o bonde para revidar, mas ela desligou na minha cara antes de uma mísera palavra sair. 

Tentei e tentei ligar mais  vezes, mas nada aconteceu. Ela me ignorou como se eu fosse um cocô no meio da rua. Aquilo me deixou quase louco e eu me senti um completo otário por ter saído de Sorocaba, mesmo que os meus motivos para isso fossem totalmente plausíveis aos meus olhos.  

Para dizer a verdade, apenas ter dado atenção a Anderson, Rebecca e minha avó já me fazia um belo otário. Enquanto eu ficava brigando infantilmente com quem estava ao meu redor, Polliana continuava sozinha, sem saber de nada. Eu pensava no rosto dela lendo aquelas mensagens estúpidas do Lincoln e aquilo era como ser jogado de cima de um prédio. 

Eu não queria imaginar o que ela estaria fazendo agora, como ela estaria. Sabia que me doeria, mas não parava de me perguntar o que ela estava pensando de tudo aquilo, de como eu devia ter parecido ainda mais um fingido com aquelas mensagens bipolares... 

Se eu não pudesse ir para Sorocaba e dar um jeito de falar com ela, eu não sabia o que poderia fazer. O fato de não ter como sair de São Paulo naquele exato momento fazia o arrependimento dentro de mim se ampliar cada vez mais. Eu não me sentia nada além de uma criatura ridícula, de tão limitada diante de tudo.  

Àquela altura, já havia se passado tempo o suficiente para ela fazer qualquer coisa — e não havia maneira de eu tomar uma mísera atitude. Eu não tinha o telefone da casa dela comigo, nem mesmo possuía mais o de seu celular. Caso houvesse salvo o número da irmã dela em meu aparelho naquele momento, poucas horas atrás, não adiantaria coisa alguma — eu nem imaginava em que estado a droga do meu celular poderia estar. 

Joguei o corpo no sofá que havia naquele cômodo e fiquei ali, no escuro, levando pó para dentro dos meus pulmões e tossindo poucas vezes. Só deixei a angústia me consumir e fechei os olhos, esperando desaparecer.  

Eu não tinha de onde tirar dinheiro para poder voltar sozinho. Jamais pediria isso para a minha avó da casa, muito menos para pais do meu pai. Eles não podiam nem mesmo imaginar que eu estava lá, na cidade, ou surgiriam da moita mais próxima para me paparicar como se eu tivesse cinco anos. 

Não pensei em quanto tempo fiquei afogado naquele maldito sofá antigo. Pensei em como eu era idiota e em como tudo estava uma droga apenas por eu não saber nenhuma maneira melhor de dizer a alguém que me preocupava com o futuro dessa pessoa, por não saber cuidar direito de filho da puta nenhum. Não sabia cuidar nem de mim mesmo e devia ser por isso que a minha saúde devia estar uma bosta.

Eu me perguntava como podia ter feito uma coisa daquelas, em como as minhas ações faziam sentido dentro da minha mente de forma doentia. Durante anos, eu lutara, sofrera e passara ódio por ter idiotas metendo o dedo na minha vida, em quem eu era e no futuro que eu queria para mim mesmo. 

E então, o que eu fazia depois disso tudo, sendo que essas coisas me deixavam puto até os dias de hoje e eu não as desejaria para o maior babaca da face da Terra? 

Eu ia e fazia isso com outra pessoa. Tragam um prêmio para Alexander Hoáng, o mestiço mais retardado e orgulhoso da face da Terra.

Não apenas "outra pessoa", mas com Liana. A pessoa que eu menos queria ver passando pelo que eu passara no mundo — e também a pessoa que acabaria, caso se deixasse influenciar, se tornando uma versão ligeiramente menos ruim do que eu sou. 

"Tentar ser você não é fácil." Ela própria dissera isso, depois de tudo. "Isso machuca." 

E eu sei.

Eu sei como machuca. O problema é que eu me preocupei tanto com ela que quase me esqueci disso tudo, quase parei de pensar em como seria horrível caso Polliana apenas virasse outra "eu". 

Eu não pensava em como tudo para mim era horrível. Eu pensava em como, muitas vezes, eu não ligava para nada e evitava que tudo me machucasse, diferentemente dela. Eu me isolava e tudo o que eu mantinha ao meu redor não era nada além de alguns poucos amigos que mal via, música para me drogar e um escudo para me proteger de todo o resto — se isso fosse evitar que ela quebrasse a cara, então tudo bem, para mim. 

Pensei no lado bom, no que poderia dar certo e protegê-la de alguma maneira. Até vê-la chorar e correr, eu não comecei a ver o tamanho do problema que eu começara e que aquele era um dos maiores — se não for o maior — erros da minha vida. Mesmo depois disso, eu continuei firme no que eu tinha como ideologia e demorou até eu mudar, até eu me arrepender e perceber tudo de ruim que havia feito. 

Mas aí já estávamos na merda. Ela e eu. Ela muito mais que eu. 

Eu nunca trouxera nada de bom para a vida da Liana, para dizer a verdade. Se eu nunca houvesse me aberto por ela e pego em sua mão quando ela estendeu-a, nada estaria assim. Isso nunca foi novidade e eu não era um grande amigo para ninguém, mesmo que talvez fosse o único para ela e Liana me visse de forma diferente. 

Na realidade, o que ela não via de forma diferente, para ser sincero? 

Ela tinha um filtro diante dos olhos que ninguém mais tinha. Quando mencionava algo maldoso, era quase como se estivesse se forçando a isso, como se nem mesmo fosse de sua índole. 

Ela era diferente. Puta merda, e como. 

Tão diferente, como eu já devo ter dito, quanto qualquer pessoa é uma da outra. Mas eu duvidaria muito que um outro alguém pudesse ser tão dócil e ingênuo feito ela, de verdade. 

E Liana, sendo a pessoa mais diferente de mim desde sempre, havia embolado os fios dentro da minha cabeça com mais facilidade do que qualquer um. Enquanto isso, todos ao meu redor tentavam me convencer a coisas inimagináveis e nada mudava. 

É inegável. Ela não se esforçava para me mudar e, no fim, havia sido como se houvesse dividido o que eu era ao meio. E, ao mesmo tempo em que eu quase sempre a quis por perto, eu sabia que não era seguro, que não fazia bem — sempre aquela metade rasgada de mim ficando de um lado, a outra metade do outro. 

Eu odiava ser controverso, mentiroso e falso. Só que quase era como se já não devesse mais importar, mesmo que me importasse. Cada vez mais, eu me obrigava a isso depois de conhecê-la. 

Como se não fosse o suficiente, eu a feria para que ninguém mais a ferisse. Isso se repetia muito na minha cabeça. Era cansativo e eu me sentia um ser desequilibrado. Nada além de um adolescente estúpido e egoísta, se encaixando quase perfeitamente no padrão de jovem idiota que sempre odiei com todas as minhas forças. 

Estava tudo tão errado que eu achei que fosse coisa da minha cabeça quando começaram a esmurrar a porta. Eram muitas, muitas batidas. Batidas de vários punhos. Eu me virei de lado, puto por conta de um buraco no estofado que soltava espuma, e não quis saber o que era. Não havia interesse meu em sermões recheados de sotaque chinês da minha avó ou Anderson querendo me pedir desculpas porque ela havia mandado. 

Descabelado, com umas olheiras que faziam parecer que eu levava murros nos olhos diariamente e deitado num sofá velho — eu devia estar parecendo um morador da Cracolândia naquela situação. Apertei uma almofada empoeirada nas mãos e a afundei contra a minha cabeça, continuando a ouvir as batidas. Gritaram o meu nome e eu escutava o som de alguém chacoalhando incessantemente a tranca. Agora, seriam duas maçanetas quebradas na mesma madrugada. 

E então eu ouvi a minha avó dar um berro, mandando parar. Foi como um trovão e eu imaginei se surgiria alguma vizinha religiosa maluca para bater em nossa porta àquela hora, reclamando do barulho quando nós nunca podíamos reclamar sobre o louvor no volume máximo às seis da manhã. 

As vozes cessaram e me senti obrigado a virar a cara para a porta, vendo o vulto da maçaneta se virando e ouvindo chaves. Sob a porta, havia várias sombras de pés e elas se moviam para lá e para cá. Eu escutei a voz de Michael e fiquei com o cu na mão. 

Senti-me tentado a acabar me sufocando com a almofada naquele momento. Não era possível que Rebecca houvesse resolvido aparecer e, como se não fosse o suficiente, ainda ter resolvido surgir com toda a manada de búfalos junto. Caso Lincoln estivesse no meio, eu jurava que desceria o cacete nele e chamaria até o Anderson ou a minha avó para ajudar — nem que fosse torturando pessoas com chang shou mian, porque isso funcionava muito quando era para me prejudicar. 

Quando a porta abriu, minha avó estava encarando-me com expressão de "depois a gente conversa", rodeada de adolescentes descabelados. Ela foi em direção às escadas e me deixou ali, com aquele monte de pessoas de rosto sem expressão olhando o fundo da minha alma. Eu as olhei de volta sem ter direito o que pensar. 

Estava praticamente todo mundo lá, com a exceção de Michelle, Daniel e mais alguém que eu não lembrava, mas não estava lá. Vi minha prima, Rebecca, Michael, Luci, Analu, Loe, Pietra, Guilherme... Todos me olhavam como se não soubessem nem o que fazer. Primeiro eu vi seus rostos, depois desci o olhar pela cintura e, enfim, aos pés. 

Todos os filhos da puta estavam de calçado. Eu quis muito matá-los por estarem sujando a casa. Se fizessem isso no meu apartamento, era certeza mais do que absoluta de que sairiam sem os pés — eu nem sabia como a minha avó havia permitido que entrassem, ao menos, de meias. Eu e Anderson só ficávamos de tênis no primeiro andar. 

Xin Qian segurava minha blusa, meu celular e a mão do Luci, que estava tremendo e tinha os olhos avermelhados. Perguntei-me se algo mais acontecera com ele depois de eu sair, mas acabei sem dizer absolutamente nada sobre isso. Não era novidade o fato de entendê-lo ser difícil e apenas Xin Qian sabia ao certo como tratá-lo. 

E ela entrou, soltou a mão dele e me entregou tudo. A blusa estava gelada, o celular não tinha o menor sinal de água. Minha prima ficou me olhando por alguns segundos quando entregou-me aquelas coisas. 

Eu não conseguia ler a cara dela. Conhecia-a desde que me dera por gente, mas não entendi o rosto de Xin Qian naquele dia. Ela não estava séria, mas também não estava rindo da desgraça de alguma pessoa. Era tão estranho vê-la assim. 

Eu desviei o olhar da figura dela enquanto os outros entravam também. Enquanto isso, acenderam a luz e Rebecca ficou parada na porta, me olhando de longe. Eu só queria saber o que diabos estavam fazendo ali e o motivo de eu não ter expulsado todos ainda. 

— Não está ligando, o celular. Depois de se recuperar do socão — ela mesma se interrompeu com uma risadinha quando estava falando —, o Lincoln foi tentar mexer mais, mesmo depois de você ter ido embora. Aí eu me inspirei em você, meti outro murro e tomei o celular. Ele ficou sem reação e isso foi ótimo. 

Olhei-a, mas praticamente nada além de uma vogal desnecessária deixou meus lábios. 

— Ah...

— De nada. — Xin Qian forçou um sorriso, erguendo as sobrancelhas. — Ah, coloque o celular no arroz, sei lá, para absorver a água. 

— Isso não deve faltar aqui na casa dele — Michael disse, encolhendo os ombros e entrando. — Asiáticos. 

— Tá, foda-se, Mickey. Isso aqui é Brasil, todo mundo tem arroz em casa — ela acrescentou. — Se não der, ô Alex, leva num técnico ou qualquer coisa. Depois a gente dá um jeito. 

— Ah, eu... — Tentei dizer algo, erguendo os olhos para Xin Qian.— Tudo bem. Valeu. Não precisava ter trazido até aqui. 

Ela se encolheu e fez dois joias com as mãos, igualzinho o jeito da Pietra para dizer "tamo junto", mas não disse nada. Apenas saiu de perto e me deixou com o celular, a blusa e um monte de gente me olhando meio torto. 

— O que vocês querem? — meio acuado, perguntei. — Sério, eu vou... ficar puto se não forem embora agora. Só a Xin Qian e mais alguém podia ter vindo, só para andar com ela, mas vocês todos não precisavam aparecer. Eu vou fazer um puta barraco, vou expulsar todo mundo. 

— Me digam se ele não tem um jeito fofo de dizer "obrigado por terem vindo" — disse Guilherme, sentando-se no chão junto com Pietra. — Muito gracinha. 

— Tsundere bitch ela falou, revirando os olhos. — Se atacar, a gente vai atacar. Você não tem de nos convidar! Viemos porque quisemos. 

— E porque sabemos o caminho. — Loe sorriu, olhando para o lado com as mãos nos bolsos traseiros da calça.

— E porque a Rebecca quis — acrescentou Michael. — Essa garota é um porre. Eu devia estar dormindo agora, amanhã vou sair com a minha nega. Alex, você não quer me emprestar a sua cama? 

Eu arqueei uma sobrancelha para aquele tanto de gente falando ao mesmo tempo. De alguma maneira, era como se fosse estranho tantas vozes e nada de Rebecca no meio. Luci não dizer nada era extremamente normal — ele dizia para todo mundo que não gostava de mim, o que era bem comum —, mas ela falava pelos cotovelos. 

Vesti meu moletom com um rosto muito desanimado, sentindo o olhar de Analu em cima de mim. Ela nunca parava de me olhar e isso me irritava. Se, em meus pés, houvesse algo que machucasse mais do que pantufas, era certeza de que atiraria nela. 

— O que vocês querem aqui, de verdade? — eu indaguei. — Sem gracinhas. Vocês viram o que aconteceu, eu não estou com paciência e sequer gosto que surjam aqui em casa sem me avisar antes. Sempre souberam disso, não é? 

Ninguém me respondeu de prontidão quando eu perguntei aquilo. Coloquei os pés sobre o sofá e as mãos entre as pernas, respirando fundo enquanto tentava fazer o cabelo parar atrás da orelha.

Eu detestava ter um cabelo consideravelmente liso. Não o penteava muito justamente para não ficar aquele troço lambido, escorrido e sem-graça. Deixava ondular e ficar despenteado, cortando-o de uma jeito meio tosco justamente para não ficar muito certinho. O do meu pai não era lá muito lisinho, mas o meu ficou no meio-termo porque o da minha mãe era a coisa mais escorrida e lambida na face da Terra — sem falar que ela deixava crescer demais, então ficava pesado e mais liso ainda.

Horrível.

Parei de me preocupar com o cabelo que não parava no lugar e olhei de novo para eles.

Mais do que Rebecca, era um problema enorme ter um monte de gente por perto, falando em minha orelha. Eu já mal suportava quando estava no bar, imagina agora, em minha casa e com a bad metendo o pé na minha bunda! Eu ficaria biruta. 

Quando os meus amigos — tá, nem todos eram meus amigos mesmo — apareciam em casa, não iam embora tão cedo, mesmo que isso fosse raro. E justamente por ser raro e por ter sido depois de um dia como aquele, eu já sabia que teria um monte de visita indesejada largada pelos cômodos até o dia seguinte. E isso sem falar que passaria umas três horas ouvindo da minha avó depois de irem embora. 

Fiquei parado, esperando uma resposta, enquanto a Rebecca finalmente entrava. Ela passou de braços cruzados e sentou na extremidade do sofá, bem longe de mim. Olhou-me como se esperasse desculpas ou coisa assim, erguendo uma sobrancelha. Fitei-a e não evitei demonstrar meu tédio em relação a sua presença. 

— Bom, a gente... queria falar com você — Loe foi a heroína a dizer algo. — Ajudar você. 

— Te resgatar do fundo do poço — Analu falou em seguida, tirando o cabelo da cara e sentando no chão junto com uns outros. Já sentada, colocou a mão no queixo e estreitou os olhos. E então ficou me olhando. — Disposto? 

— Não? — em tom proposital de pergunta, respondi e olhei-a de cima a baixo. — Fala sério, vocês têm problema? O que inventou para todo mundo agora, Rebecca? 

Ela me fez um bico enorme diante de minha pergunta. Estendi o braço e peguei o dela, puxando-a para perto no sofá. Rebecca pareceu bem disposta a me dar uns tapas depois daquilo. 

— O que você acha que eu falei? — ela perguntou arisca e com um bico enorme.

Ergui as sobrancelhas lá no alto. 

— Eu só acho que você disse tudo. 

— Olha a DR — o irmão de Rebecca intrometeu-se com uma risadinha, mesmo que todo mundo estivesse quieto. 

— Cala a boca, Guilherme! — ela exclamou, metendo o dedo no meu peito. — E olha aqui, Alexander! Se você quer saber o que eu disse, eu não disse mais do que eu deveria! 

E então eu encarei-a incrédulo, ouvindo um "eita" lá do fundo. 

— Você pode falar o que quiser — eu disse. — O que acha que eu tenho a esconder? 

Rebecca mostrou os dentes como se houvesse ficado muito puta com aquilo e recuou, batendo as costas no encosto do sofá e cruzando os braços. 

— Pelo jeito, você tem muito — ela sibilou, mimada como uma criança pequena. — E, claro, você não contou tudo para mim. Nem para mim, nem para ninguém. Você está pouco se fodendo para o mundo todo desde que... 

— Quer saber? Eu não entendo vocês! — Pietra interrompeu, pondo as mãos para cima e soltando um som descontente. — Rebecca, tipo, foda-se se o Alexander tá estranho e se você quis fazer um sermão para nos trazer aqui. Tipo... Se isso importa? Importa, cara. Ele é um filho da puta? Ele é, mas é amigo nosso e não vai adiantar droga nenhuma se ficarmos insistindo para que fale, sendo que não quer isso. 

Pietra pôs o cabelo atrás das duas orelhas e coçou o rosto, ajeitando-se no chão e começando a gesticular. A unha comprida deixara um rastro vermelho em sua bochecha toda e as orelhas eram abertas, de tal forma que ela mesma dizia só usar o cabelo solto para escondê-las. 

Eu quis pensar, mas o rosto impaciente dela me impedia disso. Todos a encaravam como se não fossem mudar uma palavra no que haviam escutado. 

— Só que, velho, as não vai adiantar nada você ficar aparecendo e enchendo o saco dele! — Ela balançou a cabeça com a boca aberta, rindo de um jeito um pouco maníaco e que dizia "você não vê?". — O Alexander nunca, nunca falou porra nenhuma para ninguém daqui! Nem para alguém fora, também, eu aposto. Você acha que, porque ele foi morar na puta que pariu, voltou dando uns sorrisinhos e depois mostrou seu lado Liu Kang na fuça do Lincoln, isso vai mudar? Não vai, Rebecca! Não vai!

Michael e o Guilherme riram.

— O Alex é bem mais Chun Li que Liu Kang — Mickey disse. — Mas eu concordo com o que ela disse.

— Eu confirmo, também — Xin Qian meteu-se, apontando para mim e depois para Rebecca com a mão aberta. — Mano, o Alexander nunca foi assim. Ele nunca vai chegar fodido e desabafar com pessoa alguma e, fala sério, Rebecca, pare de se sentir a especial, a escolhida. Alexander não tem obrigação de falar nada para você, nem para nós, nem para ninguém se ele não quer isso. 

Rebecca estava pálida, claramente assustada. 

Eu nunca vira ninguém dali falando tanto sobre como eu era e, ainda, defendendo-me de Rebecca. Era óbvio que havia momentos em que ela era tão inconveniente que não era como se ninguém percebesse e reclamasse, mas as coisas não aconteciam daquela forma. 

Ela abaixou o olhar e eu não demonstrei reação alguma diante de tudo, ainda que estivesse devidamente surpreso.  

— Parem de falar como se eu fosse a ruim nisso tudo — senti-me obrigado a olhar Rebecca enquanto ela falava, vendo seus olhos lacrimejarem. — Qual é o problema? Se eu... Se eu estou preocupada e quero ajuda de vocês para ter tudo esclarecido, não quer dizer que eu só sou teimosa, insistente e chata...! Eu gosto dele, sei que vocês também gostam e só quero ter uma luz nisso tudo. Não é problema só dele se há algo errado, é? 

Ela fungou, esfregando os olhos. Todos a encararam naquele momento e Luci deixou o cômodo, mesmo que eu tenha escutado Xin Qian pedindo para que ele não saísse.

Eu, quieto, perguntei-me o quão claras eu estava deixando as coisas para tudo ficar assim. 

Pela milésima vez, eu ainda não acreditava que era tão possível que a minha cara dissesse tanto que a minha vida estava na merda — e pensar nisso me deixou tão perturbado que eu, no momento, também indaguei-me se todos ficariam assim confusos caso eu houvesse socado Lincoln e dado umas risadinhas uns anos atrás. Fariam reuniãozinha na minha casa para arrumar treta, também? Ou aquilo era exclusivo para agora? 

Não havia nada que eu pudesse falar. Não confortaria Rebecca, mas não confirmaria as falas de ninguém. Eu não queria estar em nenhum lado naquilo tudo — não queria me favorecer com porra nenhuma, mesmo que concordasse com praticamente todas as coisas mencionadas por Pietra e minha prima. 

Ainda que aquele assunto me pesasse as costas e ver Rebecca daquela maneira talvez fosse incômodo, eu não fiz nada. Não falei nada, não me manifestei de forma alguma, não lancei nenhum olhar diferente para ninguém. 

Eu não estava mais em condições de fazer nada além de, por enquanto, ouvir aquela chuva torrencial de coisas não tão lógicas que saiam pelas bocas deles. 

— Não tem ninguém acusando você de nada, pirralha — Guilherme disse para a irmã. — Talvez a Xingling, mas Pietra não. Ela só está falando o que ela acha e o que nós achamos, também. Nós não aparecemos aqui para brigar contigo na frente dele ou para, sei lá, pressioná-lo. 

— Eu não conheço o Alex há muito tempo, nem todos vocês — Loe falou receosa. — Mas eu sei que todo mundo vai se ajudar caso um ou outro precise, não é? Então talvez não seja diferente com ele. E eu também quero estar no meio quando for preciso ajudar, nem que seja só para ouvir vocês e concordar... Por mim, tudo bem. — Ela encolheu os ombros. — Não tem problema. Então, se de alguma forma o Alex quiser ajuda e queira falar algo, a gente escuta, a gente ajuda. 

— Não estamos de enfeite, afinal, mesmo que eu seja bem bonito. — Michael pôs as mãos para cima e Pietra se empolgou, repetindo o ato. — É isso mesmo!

Isso tá muito gay. — Analu se abanou. — Estou sufocada. 

— Claro que está gay, é por isso que eu estou dentro — disse Guilherme, mexendo a mão de brincadeira. — Aloka! A gente ajuda as migas todas, não é? 

Eles riram, mas não os acompanhei. 

— Sim — Xin Qian disse, olhando para mim e dando um sorriso tranquilo. — O tempo todo. 

Eu os encarei por alguns segundos antes de me dar conta. 

Senti-me completamente desnorteado na frente de tudo aquilo. Eu estendi as pernas e coloquei os cotovelos sobre elas, escondendo meu rosto nas mãos. Respirei o máximo que pude antes de soltar tudo. 

— Parem com isso assim, do nada — eu fui dizendo enquanto amassava o rosto nas dobras internas dos cotovelos. — Por que isso? Não... é hora. Vocês podiam simplesmente ir em... 

— Porque, mesmo que se esqueça às vezes — Analu não me deixou terminar de falar —, você tem amigos. 

Então eu mesmo parei de falar naquela hora. Não precisei começar algo e ser interrompido outra vez. Eu... só calei a boca, mas o que eu não disse ressoou na minha cabeça com mais trinta mil pensamentos que mal cabiam ali. 

Sempre era como se as palavras de Analu fossem sonoros tapas em meu rosto, mas daquela vez havia sido como se ela me chutasse de cima de um prédio. Era como se o tempo corresse devagar enquanto eu caía, me permitindo pensar mil coisas e, como se o vento fosse palavras descontroladas, levá-lo no rosto e fechar os olhos enquanto me perdia naquilo. 

Eles... demonstravam confiar tanto em mim e era como se eu nunca houvesse percebido, como se eu nem conhecesse suas maneiras de me ver. Porque, para mim, eu nem era lá grande coisa para aparecerem assim — e, ainda por cima, uma garota que mal me conhecia, como Loe, deixava claro que estava ali para qualquer coisa. 

Eu devia duvidar dela. Devia, como havia sido com Liana, achar que era pura falsidade e que ninguém podia ser bom assim à primeira vista. Eu devia mandar todos eles tomarem em seus devidos cus e, como sempre, dizer que eu não estava interessado em nenhuma declaração retardada daquelas. 

Mas, de alguma maneira, eu não consegui pensar nisso. Eu não sabia se era culpa de Liana ou se era mesmo por mim e pelo jeito deles de terem falado, de terem gastado saliva apenas para defender o meu jeito de não dividir nada com ninguém — mesmo com eles. 

Foi como se a minha vontade recente de chorar voltasse. Agora, não seria apenas por Lincoln, por Liana ou por mim. 

Seria por todo mundo que estava ali, agora. 

Por Rebecca, por ser persistente e se importar demais comigo. 

Por Xin Qian, que estava lá desde que eu era um feto e vice-versa. 

Por Michael, que cuidava para que eu comesse no ginásio e, mesmo que eu odiasse, vivia no meio de tretas para tentar me defender. 

Por Pietra, que era incrível, me apoiava e não tinha medo de dizer na frente de uma certa calopsita chamada Lincoln que eu tinha talento e que nada mais importava. 

Por Analu, que enxergava o fundo da minha alma e também, às vezes, era como uma mãe drogada que eu sentia falta de ter — e também por Loe, que me suportava mesmo que eu mal lhe desse alguma atenção. 

Pelo Guilherme e por ele estar lá não apenas para mim, mas para todo mundo quando alguém precisava — por não haver fronteiras do quão longe ele iria por um amigo ou, apenas, um conhecido com quem simpatizava. 

Por Luci, que movia a mim e a todos sem quase nunca dizer uma palavra; por ele ser forte e suportar, diariamente, mais dor do que qualquer um que eu conhecesse — e provocar essa dor em mais gente, também, porém com bons motivos para isso. 

Por todo mundo que me via de um jeito diferente e que, diante de todas as minhas faces problemáticas e atravessando o escudo invisível que eu mantinha ao meu redor, conseguia me estender a mão e mantê-la sempre ali. Eles haviam sido a minha voz milhares de vezes, sem que eu nunca percebesse de verdade a sua importância e sentisse a falta que eles mereciam que eu sentisse. 

Com todas aquelas pessoas, eu não precisava de Lincoln — eu nunca precisara dele — e também não precisava ficar sozinho quando estivesse com algo me afligindo. Ter gente ao meu lado seria apenas questão de escolha. Eu os tinha o tempo inteiro e, por mais que ficar sozinho me fizesse um bem tremendo desde os primórdios de minha existência, era bom saber que havia um porto seguro. 

— Vocês... são todos tão estúpidos — minha voz saiu baixa, cortando minhas palavras. — Que bosta. Eu sequer sei o que falar agora. 

— Eu gostaria de um "eu te amo". — Guilherme me fez um coração com as mãos quando ergui o olhar, finalmente olhando algo além do piso. — Mas um "durma comigo" ou "minha virgindade é sua" também vale.

Céus. De virgem eu devia ter só o cabelo.

— Você não nos ama — sorrindo, Michael disse olhando para mim e deu de ombros —, mas a gente ama você, japinha.

Eu pus os pés sobre o sofá mais uma vez e escondi o rosto nos joelhos, apertando os dedos dos pés dentro de minha meia.

— Cala a boca — resmunguei. — Eu não sou japinha. Vá para a puta que pariu.

Senti o estofado movendo-se, como se Rebecca estivesse saindo dali ou apenas mudando de posição. A probabilidade de estar vazando de perto de mim era colossal. Pensei se pediria que ela ficasse caso, de verdade, estivesse indo embora. Mas não disse ou fiz nada. Talvez ela estivesse brava comigo, ou talvez achasse que eu estava bravo com ela.  

Às vezes, eu ficava mesmo puto com ela. Era inevitável. Rebecca era um problema muito grande e algo muito irritante para poder me deixar bem o tempo inteiro. Apesar disso, eu ainda sabia que ela estava se importando, que estava sendo assim por minha causa. Era aí que eu ficava mal — mas não pedia desculpas. E ela também não me pedia, de qualquer forma.  

— Desculpa, Lexy — e quando ela disse isso, foi como se até as respirações no quarto cessassem, de tão estranho que foi. A voz de Rebecca saiu arranhada e o orgulho dela também devia estar assim. — Você... sabe que eu sou assim.  

— Tá. — Torci os lábios, mesmo que ela não estivesse os vendo. — Você também.  

— E agora vocês se abraçam — irônica, Analu soltou. — Tudo bem?  

Como um bebê mimado, Rebecca soltou um murmúrio negativo e eu não fiz questão de responder.  

Ninguém disse mais nada. Talvez alguém houvesse entrado no quarto e os feito se calarem, ou talvez o fato de eu ter pedido desculpas a alguém fosse realmente de lhes tirar as palavras das bocas. Por outro lado... Eles eram só quase-adultos, em sua maioria bêbados e eu não podia exigir que, de qualquer maneira, mantivessem as mesmas ações o tempo todo. Quem sabe chorassem ou se abraçassem, agora. Eu não duvidaria. 

Numa tentativa que já não valia mais a pena, usei os dedos para tentar manter uma mecha de cabelo detrás da orelha. Ela saiu de lá antes mesmo de ficar presa por três segundos, e então soltei mais ar antes de decidir falar algo. 

Não havia nada em mim que fosse, realmente, preciso esconder. Eu não me envergonhava de praticamente nada em toda a minha vida e, por mais que não sentisse a obrigação de deixar meio mundo sabendo de tudo, não havia problema em me abrir para alguém pelo menos uma vez. 

Não sabia como eles reagiriam; se só escutariam, se dariam suas opiniões, se ainda estavam lá. Mas eu só falei. Depois de tanto tempo guardando, eu só... falei. 

— Quando fui para Sorocaba — eu disse —, eu fiquei um tempo sem ir à escola. Perdi aulas para caramba, fiquei trancado em casa o dia todo. Vocês sabem, a minha mãe brigou com a minha avó e foi mais por isso que nós tivemos de nos mudar. Eu não tive nada a ver com isso e gostaria de ter ficado, mas não fiquei.  

"Foi uma bosta depois que ela me mudou de escola, sem falar que cessei todas as aulas que fazia aqui e meus dias em Sorocaba se resumiam a fazer um monte de nada. Não pude levar muitas coisas daqui, inclusive está a guitarra e o outro violão no quarto, pois eu só pude levar um deles. Eu não canto há vários meses. Há uma pilha de coisas e tudo está pegando pó, porque não tenho a menor maneira de carregar tanta tralha daqui até o interior.  

Eu não era nada quando morei em Sorocaba; era muito novo, ainda. Ao ter voltado para lá, eu conhecia o mesmo nada da cidade. Também nunca fui amigável, então, quando minha mãe me arrumou um canto para estudar, não foi diferente. Não que isso tenha me deixado puto. Ofendam-se caso queiram, mas... amizades são algo à parte, mesmo que importantes. Você não precisa disso para se manter. Eu não precisava disso para ficar bem numa escola; eu precisava de mim, dos professores e de coisas para estudar. 

Já começou sendo uma bosta no momento em que eu saí do prédio. Eu já sabia que existe gente imbecil em todo canto do mundo, mas foi inevitável não ficar puto por dentro. E eu fui à escola alguns dias, ignorei umas coisas, respondi outras e até ri delas.  

Aí, uma hora, veio outra pessoa para me encher o saco. Eu não a quis por perto e isso perdurou, bem, até o momento em que não houve mais escapatória. Ela não se afastava conforme eu pedia por isso e acabamos virando amigos depois de um tempo. E ela disse que o seu nome era Liana, mas não era. Era... algo bem melhor que isso." 

E eu mesmo pausei-me enquanto falava. Mesmo que sim, houvesse dor emocional, meu peito estava doendo como se eu houvesse levado um soco e eu sentia o meu nariz arder. 

Aquilo era horrível e eu não queria ter um rosto ensanguentado agora, então apenas respirei e continuei: 

— Eu sempre me incomodei com o fato de essa garota, a Polliana, ser boa demais. Era como se ela não visse limites para poder ficar se matando pelos outros enquanto ninguém dava a mínima. Isso não devia me incomodar, afinal eu fiquei muito tempo não querendo ser sequer amigo dela, mas... Foi inevitável. — Rebecca saiu de perto àquela altura, Analu me encarava de olhos apertados. — Ela se fodia demais por isso, o tempo inteiro. Às vezes, sem perceber. E eu me senti um fraco e um bosta por estar ligando tanto, de verdade, e por estar gostando de uma pessoa que apenas sabia se encaixar no tipo de alguém que eu julgava como fraco e estúpido. 

Mais uma vez, eu coloquei a mão no rosto e escondi os olhos. Minha coluna doía por conta daquela posição arqueada e os olhares de todos pareciam me engolir, mas eu não dava a mínima importância. 

Era óbvio que, contando aquilo, eu seria julgado. E eu era julgado mesmo quando estava de boca calada, parado na rua e não fazendo absolutamente nada. Não era como se meus próprios amigos fossem evitar fazê-lo quando, pela primeira vez, eu contava tanto sobre algo que havia acontecido — e contava daquela maneira também, sendo repentino e não evitando demonstrar que aquilo tudo me deixava mal. 

— E coisas aconteceram — prossegui. — A partir de certo momento, eu tomei muitas atitudes péssimas com ela e a tendência foi piorar. Venho sendo um idiota há tempos e eu mesmo não sei, mais, direito quem era antigamente. Tudo isso me mudou para caralho e não há mais maneira de negar, pois até mesmo vocês perceberam. Meu orgulho foi parar no lixo e eu menti, me fingi, agi como um otário. Preferi foder a cabeça da menina ao invés de continuar como amigo dela e tentar mudá-la totalmente, porque me doía muito vê-la só tomando no cu e nada acontecendo. 

"Eu realmente sumi da vida dela e fui perdendo todo o contato, principalmente agora, em julho. Antes de as férias começarem, eu a vi algumas vezes e foi uma bosta, então... Eu quis vir para cá e estava num estresse fodido, então nós saímos e tudo isso que vocês já viram até então. Meio que queria voltar, ao menos um pouco, a ser o que eu era e esquecer tudo o que tinha acontecido. Foi por isso que saí com vocês hoje. Ou ontem, sei lá. Já é madrugada agora. 

E esteve até tudo bem até um certo momento, quando eu vi umas mensagens da Polliana no meu celular e tudo deu errado para caralho, pois eu vi que ela não ficara apenas triste ou mudada com tudo o que eu fiz. Ela disse umas coisas absurdas e horríveis sobre estar se cortando e tendo pensamentos suicidas, dizendo que alguém foi embora, sei lá. Eu não entendi merda nenhuma, só fiquei desesperado. As mensagens já tinham uns dias, podia ser que algo já houvesse acontecido. E eu... estava tentando falar com ela quando o Lincoln pegou o meu celular." 

Ouvi um murmúrio assustado, feito pela voz da Loe. Mas eu não a olhei. Eu queria ser morto com um ataque cardíaco para não ter de reviver tudo e levei a outra mão para o rosto, escondendo-o ainda mais. 

— E agora eu perdi tudo. — Forcei os dedos contra meus olhos fechados. — Ela estava me respondendo e nós estávamos nos falando, mas Lincoln simplesmente enviou umas mensagens totalmente sem noção para ela e eu não pude desmenti-las depois, pois ele estragou o celular. Não tenho como dar um jeito nele agora e talvez já seja muito tarde. Quem sabe ela esteja morta ou qualquer coisa tenha acontecido, mas eu não saberei. Eu estou sem nenhum meio de... fazer algo. E é isso. Acabou. 

Não era como se um peso houvesse sido tirado de cima de mim quando acabei de falar, mas sim apenas triplicado. O motivo era que tudo havia se repetido na minha cabeça e, ainda, sido repassado através da minha boca. O julgamento agora não era só meu, mas sim de umas... cinco pessoas que presenciavam Alexander sendo qualquer um, menos ele mesmo. 

Eu mordi o lábio e não se ouvia uma única voz no quarto, ou um movimento fora dele. Havia só o som da noite lá fora, com os seus grilos e quase nenhum carro na rua, e a minha voz dentro de mim. Meu coração batendo e eu, mesmo sem dizer, implorando de maneira interna para que não chorasse. 

E tudo permaneceu assim, até que uma mão pegou no meu pulso nu e eu senti muito peso sendo jogado sobre os meus joelhos. 

— Alexander — e era a voz de Pietra, com a rouquidão dela e as unhas dela na minha pele. — Tire as mãos do rosto. 

Antes de pensar em qualquer coisa, eu o fiz e olhei para o que havia em minha frente. 

Estava todo mundo de pé perto de mim. Todo, todo mundo. Mesmo Luci estava ali e Rebecca voltara, ambos com os olhos ainda mais vermelhos de lágrimas e uma expressão incerta. Anderson estava parado na porta e tinha os braços cruzados, encarando tudo. Abaixei meu olhar, procurando o que pesava em minhas pernas, e foi aí que eu entendi. 

Eram... os celulares de todos eles. 

Não mentirei que meu coração não foi transformado numa folha por um rolo compressor quando eu me deparei com aquilo. Eu olhei aquela pilha de aparelhos celulares e olhei os meus amigos com a cara mais assustada do mundo. Eu devia estar verde. 

Abri a boca, abaixei o olhar e a fechei de novo. 

— Vá em frente. — Analu deu um passo e se jogou ao meu lado. — Eu não gasto só com drogas e rasteirinhas, então há muito crédito aí e você pode usar o quanto quiser. 

Eu encontrei os olhos dela e me senti girando quando Analu estendeu os braços, afundando forçadamente meu rosto em seu ombro. Ela estava suada e me apertou com muita força, mas eu estava tão perplexo que nem correspondi o abraço. 

— Eu sabia que você havia mudado. Seu rosto nunca me engana, filhote — eu a ouvi dizer, sentindo os braços dela colando meu cabelo em meu pescoço. — E é tudo bem se você cometeu os seus erros e deixou um pouco de, talvez, ser egoísta. Não é por ter mudado dessa maneira que você é alguém pior, Alexander; de maneira alguma. Mesmo os melhores caem às vezes, e é preciso disso para se reerguer. 

Fiz um movimento curto com a cabeça, pois minha garganta estava entalada. E então ela me soltou, empurrando de leve o meu peito e depois, com uma sobrancelha arqueada, fazendo cara de decidida. 

— E você vai, sim, se levantar outra vez. E vai se levantar sendo alguém bem melhor, ou eu quebro sua cara. — Deu um sorriso torto, encolhendo um ombro. — Não te direi que vai ficar tudo bem, porque não sou eu quem cuido disso e sim você. Então faça tudo ficar bem. 

— Ele vai fazer — falou Michael, estendendo o braço para me despentear. — É bom que faça, não é?

— E agora eu entendo o porquê de o Alex ter ficado tão puto com o Lincoln — Loe falou e encolheu os ombros. — Ele parece gostar tanto dele, então eu nem... E também não imaginei que estava acontecendo algo sério assim. Na verdade, agora eu não sei se conheço vocês todos de verdade... 

— Não direi que não estou irritada com isso tudo — quando Rebecca se pronunciou e interrompeu a Heloísa, nós todos a olhamos, mas ela não nos olhou de volta. — Mas, se é importante para você, Lex, faça o que quiser. 

Eu não estava esperando, mas ela pegou o celular cor-de-rosa e jogou-o sobre mim, se aproximando depois e passando os braços sob os meus. Ela só me pegou por uns três segundos e soltou, emburrada da forma infantil que era apenas dela. 

— Não é porque não a quero perto de você, que quero vê-la morta ou qualquer coisa — Rebecca acrescentou. — Então... vá em frente, também, e dê um jeito de ajudar a sua loira fracassada a não passar a lâmina de apontador nos pulsos. 

— Você não tem de falar assim de quem está sofrendo — foi a primeira vez que ouvi a voz de Luci naquilo tudo. Às vezes, ela falhava e ficava fina. Ficava claro que aquilo o constrangia. — Você não sabe de nada, Rebecca. Nem nós sabemos, talvez... nem o Alex saiba. E é por isso mesmo que a gente não tem de dizer nada sobre. Não conhecemos a menina, não sabemos o que ela sente e é exatamente por isso que não dá para julgar. 

— Tudo... Tudo bem — eu falei, tentando acenar com a cabeça e forçando-me a sorrir. — Obrigado, gente. 

E então o Luci sorriu também, abaixando os olhos e pondo as mãos no bolso enquanto corava.

Um a um, os outros vieram para perto e eu nunca recebi tantos abraços sufocantes em toda a minha vida. Michael deu um beijão em cima do meu olho e Guilherme me ergueu repentinamente, fazendo eu ficar bem mais assustado do que já estava. Xin Qian e Loe quase deslocaram meus membros; Luci pareceu perdido, mas me abraçou mesmo assim. 

— Não é como se eu achasse que você esteve certo, também — ele sussurrou. — Mas tenha força. Talvez ainda haja tempo. 

— Nem eu acho que estive certo — eu respondi e bati de leve em suas costas. — E, sim, talvez haja. 

Quando ele me soltou, foi como se um pouco de todo o mal que eu sentia houvesse sido levado. 

Acompanhei-o com o olhar, olhando para todo mundo. Eu sorri sem querer e limpei um dos olhos, que havia lacrimejado. Analu tirou o cabelo do meu rosto. 

— Eu não sei o que dizer para vocês todos — falei baixo —, mas, de verdade, obrigado. 

Guilherme abriu um sorriso que contagiou quase todo mundo. 

— Tudo bem. 

— E eu... realmente agradeço pelo apoio e por terem me emprestado os celulares, mesmo que não haja maneira de eu usá-los agora. — Eu não fazia a menor ideia de como diria aquilo a eles. — Não sei o número dela, nem da casa dela ou de qualquer outro meio que dê para usar para falar com a menina. 

— Ela não tem Facebook? — Xin Qian franziu as sobrancelhas. — Ou alguma outra rede social, sei lá... Algum lugar em que dê para mandar mensagem. 

— Não adianta, ela não entra. — Encarei meus pés, me sentindo mal por não ter como usar a ajuda deles. — Nem mesmo ter o número do celular dela mesmo adiantaria, pois seu pai o pegou. Ela estava usando o da irmã, era por ele que estávamos nos falando naquela hora. 

Eu ouvi alguns murmúrios desapontados e Rebecca pegou de volta o celular de uma forma rude, mas eu não me importei sequer um pouco. 

— Não há mais maneira nenhuma por agora? — Michael perguntou. — O número de algum amigo dela? 

Eu torci os lábios e, apreensivo, olhei os olhos escuros dele. 

— Tenho o meu. 

— Ela não fala com mais ninguém? — Guilherme falou. — Com que tipo de antissocial você anda se metendo? Achei que fôssemos os únicos. 

— Não — respondi-o. — Não fala com mais ninguém... Não que eu saiba. 

Ele colocou as mãos na cabeça e parecia um Jesus desesperado, fortinho e relaxado.

— E agora? — exasperado, perguntou-me, como se eu houvesse como responder. — Não tem o número salvo em nenhum outro lugar? Sei lá! Um papel! A gente tem de fazer alguma coisa, a mina tá morrendo! 

Botei a mão no rosto e fiquei meio desesperado também. 

— Eu não sei se tá morrendo!

— Por isso tem de fazer algo! 

Eu empurrei toda a franja para trás, passando a mão no rosto depois. Eu precisava mesmo ter saído de Sorocaba para esquecer a Polliana, mesmo que ter saído de lá houvesse resultado em dar um merecido murro em Lincoln e perceber que eu tinha uns amigos bons para caralho? 

Aquilo só me fez pensar que eu não sabia porra nenhuma do que estava fazendo com a minha vida e a dos outros! 

— Eu... acho que tenho o número da casa dela — quase num sussurro, falei e já ouvi um "wow!" precipitado da parte deles.  

— Pega lá! — Loe colocou as mãos para cima. — Vamos ligar! 

— Mas não adianta nada... Não está aqui comigo. Está em casa, dentro de um caderno meu da escola. 

Ela abaixou as mãos e franziu as sobrancelhas de forma triste, soltando um "own". 

— E a sua mãe está em casa? Ligue para ela, pode ser que possa achar o caderno e ler o telefone para você. 

— Ela não vai me atender, eu já liguei. Pedi para que me buscasse, mas não estou aqui há quase nenhum tempo e a enchi demais para que me trouxesse. Provavelmente continuarei aqui até o fim das férias e, sei lá, falta uma semana... Não é? 

Guilherme e Michael estavam com um rosto preocupado e me encaravam o tempo todo, diferentemente das meninas. Eu me perguntava o que os dois deviam estar pensando de mim agora. Sabia que Guilherme estava querendo ajudar pois ele ajudava até quando os outros fariam merda, mas Michael era bem mais desconfiado. 

Todo mundo ficou quieto por um tempo e a minha avó passou no corredor, apagando a luz dele e batendo a porta quando entrou no quarto dela. Anderson continuava no mesmo lugar, com o mesmo rosto e o mesmo ombro encostado à porta. 

O Guilherme ficava passando a mão no cabelo feito eu, parecendo nervoso. 

— Eu quero poder fazer algo — ele me disse. — Sério, cara... 

— Não precisa. — Obriguei-me a sorrir de novo. — Você e os outros já fizeram o que podiam. 

Ele abaixou a cabeça, balançando-a negativamente e chacoalhando a cabeleira castanha. Eu insisti, dizendo que não havia problema algum, mas ele não respondeu a nada disso. 

— Para de putaria, Guilherme — Rebecca falou. — O que você quer? 

— Alexander — ele disse, ignorando a irmã e erguendo a cabeça para me olhar. — Sorocaba é muito longe? 

Eu apenas passei o olhar nos dois, parando-o em Guilherme. O rapaz sorriu de lado como se houvesse conseguido me fazer ter a reação que queria, já que eu estava com as narinas dilatadas e arregalara os olhos para ele. 

— Você... não pode estar falando sério. 

☔ 

Ainda havia vários celulares em meu colo e eu imaginei que ele fosse pegar o dele quando se aproximou, mas não foi isso que Guilherme fez. Ele revirou os bolsos e jogou uma chave com um chaveiro de cogumelo sobre as minhas pernas, me encarando com um olhar firme quando olhei para ele. 

— Eu só preciso de dinheiro para combustível, GPS, energéticos e alguém que não seja a Rebecca para te impedir de colocar rock japonês durante a viagem para te levar de volta para a sua nega — ele falou. — Ou seja, não é difícil. Então pegue o violão ou qualquer outra coisa que vá levar, Alex. 

Não imagino a expressão que devo ter usado para olhá-lo naquele momento, mas eu realmente achei que o mínimo que poderia dizer seria um "durma comigo".

Eu só empurrei os celulares do colo, me ergui de onde estava e tentei agarrar o pescoço dele, mesmo que fosse meio baixo para isso. Guilherme se curvou e me abraçou, levantando meus pés do chão com facilidade. 

Se eu queria que ele me soltasse? Não, mesmo que estivesse suado e me apertando como se eu fosse uma espécie de bicho de pelúcia. Eu só não queria que ninguém visse que, com a cara enfiada no pescoço dele, eu estava quase chorando de tão abismado que ficara. 

A probabilidade de tudo dar muito mais errado ainda era mesmo incontrolavelmente grande e crescia a cada minuto, mas eu não quis ter mais medo dela. 

☔ 

Não foi como se o Guilherme fosse me levar naquela hora, naquele mesmo dia. Eu mesmo não quis aquilo. Ele havia bebido e, além disso, a minha avó me mataria se eu sumisse de madrugada e Anderson faria um barraco daqueles.

— Tudo bem? — eu perguntei para o Guilherme. — Mas tudo bem mesmo?

— É, tudo bem! — ele respondeu. — Né?

Apenas o agradeci imensamente e fiz o mesmo com todo mundo. Eu acho que nunca havia sido tão abraçado na minha vida e, quando foram embora, minhas costelas estavam doendo. 

Guilherme havia falado como se fosse aparecer outro dia e, bem, ele apareceu mesmo — e foi logo no dia seguinte. Eu havia passado todas as horas até aquela agoniado.

Tudo o que eu queria até então era ir para Sorocaba e, agora, eu tinha uma maneira de fazê-lo. Era como se fosse garantido que eu me depararia com algo em breve — e, de modo algum, seria algo bom. 

Eu diria tudo para ela e seria inegavelmente horrível, mas havia sido por isso que eu pedira e por isso que eu havia chorado. Não era como se eu não quisesse, não! Era o que eu mais queria. Só vê-la e ter a chance pela qual eu implorara era a coisa que eu mais desejava na vida. 

Meu maior medo era chegar lá e perceber que tudo havia sido em vão, mas eu passaria por cima. Por todos e, acima de tudo, por ela. Por mais que fosse a última vez. 

Quando Guilherme apareceu, fomos apenas nós dois. Eu sequer disse a Anderson que estava saindo, mas falei para a minha avó que só iria a algum lugar aleatório com um amigo e levaria umas coisas, também. Ela quase cuspiu fogo. Não que isso houvesse mudado algo. 

E então nós fomos e, por sorte, não choveu nem houve problema algum na maior parte do tempo. O trajeto foi quase de duas horas e ele falava muito, tentando me animar. Eu só concordava e não dizia mais nada. Sentia-me totalmente sufocado. 

Guilherme chegou a colocar músicas de bandas que eu ouvia, mesmo que ele não gostasse de dirigir ouvindo coisa alguma. Minha cabeça doía, então pedi desculpas e desliguei. Ele apenas torceu os lábios e disse que estava tudo bem. 

Eu havia pego dinheiro meu, que estava guardado, para dar a ele. O dinheiro de minha mãe eu já gastara para furar o lábio um tempo atrás, com o filho da puta do Lincoln. Minha vontade de furar algo agora só serviria para dar um tiro nele. 

E era noite quando nós passamos por São Roque e lá chovia um pouco. Guilherme dirigia bem, contanto que falasse ao mesmo tempo. Ele ficava falando de como eram os lugares por onde passávamos, todo interessado em falar de vinho por causa da cidade. Eu nem escutava, de tão morto que estava. Vinho era outra coisa horrível da vida.

Nós passamos por mais lugares e eu nem olhava para as janelas. Viver sem fones de ouvido era como não viver. 

— Anime-se — Guilherme disse em certo ponto, olhando de canto para mim. — Você vai ver sua pitanguinha. 

— Polliana não é minha pitanguinha. — Eu soltei um suspiro e a chuva batia no teto do carro, soltando uns sons agradáveis. — E talvez eu nem vá vê-la, afinal. Devo ter te feito vir até aqui sem motivos, Guilherme. 

Ele franziu as sobrancelhas com um sorriso confortante. Sua barba estava meio crescida, o cabelo jogado para lá quase como o do Samuel. Eles tinham cabelos parecidos, mas Guilherme era moreno como Rebecca e os fios tinham um tom mais escuro, além de umas ondas. 

— Tudo bem — ele disse. — Eu não faria nada hoje, mesmo. É dia de folga. Sem falar que é legal ir de um lugar a outro às vezes.

Olhei-o e dei de ombros, como se concordasse, então; mas eu não concordava. 

Água escorria pelos vidros e aquilo era como uma contribuição para eu me sentir pior e mais nervoso, mesmo que fosse tarado por chuva. Quando entramos em Sorocaba, o céu estava escuro, mesmo que a cidade não estivesse. Eu fui falando as direções para ele ir e, quando paramos na minha rua, era como se eu não fosse lá há tempos. 

Descemos na chuva mesmo, pois não havia guarda-chuva conosco.  Não deu nem para pegar as minhas coisas e as dele, porque Guilherme dissera que ia ficar uns dois dias lá em casa. Corremos para a portaria do prédio enquanto eu tossia e a chuva engrossava.

— Você parece um velho — Guilherme disse.

— Eu tô doente — respondi. — Quando eu morrer, você vai se arrepender de ter dito isso.

Fiquei olhando para fora, para a rua onde caía a chuva. Todo o pátio estava molhado e as plantas balançavam. Eu gostaria que meu coração estivesse disparado apenas por eu ter corrido e minha saúde estar uma merda. 

Polliana e eu passávamos ali, por aquela rua do meu prédio, todos os dias quando havia aula. Era lá, do outro lado, que ela se despedia de mim e virava uma esquina, aquela esquina que tinha um muro mais ou menos baixo e era um encosto maravilhoso para as nossas costas. Às vezes, eu parava na varanda lá em cima e ficava olhando para baixo, tentando imaginar como seria a visão de nós dois ali sentados. 

A chuva caía farta e estava frio. Mesmo que estivesse de blusa e meu capuz estivesse erguido, eu podia sentir o ar gelando minhas bochechas. Nós fomos entrando e o frio foi diminuindo pouco a pouco, conforme o lugar ficava mais fechado. Guilherme ia falando de como  gostava de lugares com vasos de planta enquanto eu pensava em como queria não estar ali. 

Minha vontade era sair na rua e ir atrás dela — mesmo que, naquele momento, eu nem mesmo me lembrasse ao certo aonde é que Polliana morava. No dia em que eu a beijara, havia ido com ela até sua rua, mas estava com a cabeça tão cheia que sua casa seria o último fato merecedor de minha atenção. 

Quando eu beijei Liana, foi mesmo como algo totalmente impensado. Eu nem mesmo pensava em dizer-lhe todas aquelas coisas, quanto mais beijá-la naquela situação. Aquilo começou a pesar sobre mim de maneira que comecei a mudar com ela imediatamente, cada vez cometendo erros cada vez mais irreversíveis. 

Guilherme pegou no meu braço e eu me assustei. 

— Você é quem sabe do andar, então... — um pouco preocupado, ele falou, indicando que eu fosse na frente. — Tudo bem? 

Eu engoli em seco e fiz que sim com a cabeça, virando o corpo para entrar no elevador. 

— Vamos. 

Ele veio atrás de mim e não disse nada, mexendo no cabelo e me olhando como se eu tivesse sete cabeças. Demonstrei não perceber. Encostei-me em um canto e fingi que estava tudo bem. 

Quase não consegui crer no milagre que era a minha mãe estar em casa àquela hora quando subimos (e sim, eu fiz o Gui tirar os sapatos para entrar, porque eles estavam todos molhados). Ela ficou assustada, perguntou se eu havia mesmo me prostituído e se Guilherme era o cliente. Só ergui a mão para que parasse de falar e fui para o corredor, escutando-o dizer que minha mãe era gostosa e tendo de ignorá-lo também. 

Eu gostaria de estar correndo, revirando tudo e arfando como um cão louco, mas a mão do Guilherme agarrada no meu braço e o meu bom senso me impediam disso. Peguei o telefone no corredor e minha mão tremia, mas não tratei isso como alguma novidade. Empurrei a porta do meu quarto e ouvi uma miadeira assim que os gatos me viram. 

Atravessei o cômodo depois de pegar Luna, que era preta e eu encontrara na rua com Liana, nas mãos. Os outros ficaram atrás enquanto eu dava alguns passos até um canto e pegava a minha mochila no chão. Era como se minha mãe não houvesse nem mesmo entrado no meu quarto desde que Anderson e eu saímos.

— Eu gostei da casa e desse seu quarto minúsculo, mas os  gatos... — Guilherme murmurou. — Tinha até me esquecido dessa sua tara por eles. 

— Não é tara, Guilherme. — Eu me sentei num canto da cama enquanto um deles escalava o meu jeans, respirando fundo com a mochila em mãos. A gata das minhas mãos se remexeu e pulou para o chão. — Vou procurar o número... 

Meu amigo veio e se sentou ao meu lado, parecendo meio perdido quando pegou um dos cadernos. Eu só tinha dois, então peguei o primeiro e o abri. Olhei detrás da capa e só havia um monte de desenhos e assinaturas aleatórias da Liana por ali. Ela vivia rabiscando os meus cadernos e até meus braços, o que sempre me deixava bem puto, pois eu voltava para casa com as mãos mais coloridas que uma revista. 

Meu nome estava escrito mil vezes ali, o dela duas mil. Havia pássaros, flores pequenas, formas geométricas que não faziam sentido algum. Nomes de músicas que a gente devia estar ouvindo na hora e carinhas com sorrisos e olhos fechados. 

Pretendi fingir que não estava afetado e vi a outra contracapa, que não tinha nada muito diferente. Tinha alguém que devia ser eu desenhado, pois os olhos eram como dois riscos e o cabelo era comprido, ficando na frente de um dos meus olhos. Polliana era muito boa para fazer os cabelos das pessoas. Era como se eles até brilhassem. 

Do lado, tinha uma pessoa de cabelo de tsunami, que era ela. Os olhos eram grandes próximos aos meus e aquilo fez eu me sentir meio oprimido. De lápis, ela desenhou mil vezes mais sardas do que realmente tinha. 

Como havia muitos nomes nossos escritos ao redor, eu nem havia reparado, mas estava escrito "minha noiva" em cima da minha cabeça e "noivo do Alex" em cima da cabeça dela. 

— Você achou? — Guilherme perguntou e eu fechei o caderno, fazendo barulho e assustando Shampoo, uma gata toda branca. — Eu acho que encontrei... 

Ergui as sobrancelhas, pedindo para ver o caderno. Em cima, estava o número dela e havia um celularzinho desenhado do lado. O da casa estava sob aquele, obviamente com uma casinha do lado. Ela não sabia fazer nada se não fosse com deseinhos. 

— Você mesmo liga? — Guilherme perguntou, com o telefone na mão. — Eu posso discar se quiser, sei lá... Você está tão pálido. Nós podemos esperar um pouco caso queira e eu não estou com fome, mas você devia ir lá comer alguma coisa com a sua mãe. Peça para ela fazer algo. 

— Não, não precisa. — Meu estômago estava tão embrulhado que eu não comera nada o dia todo. Eu poderia ter dito a ele que minha mãe mal sabia cozinhar um ovo, mas Guilherme sabia. Só devia ter se esquecido, afinal os pais dele pareciam ter saído de um comercial de margarina. — Eu... Eu ligo, tudo bem? 

Guilherme deu de ombros e me passou o telefone. Em silêncio, eu encarei as teclas como se elas fossem um botão vermelho de filme, com um grande "danger" branco me alertando. Meu polegar tremia e, pela primeira vez na vida, percebi que eu havia roído as unhas horas antes e senti nojo de mim mesmo. 

Olhei os números no caderno e tentei segui-los para discar no telefone. Mesmo o "bip", "bip", "bip" já era o suficiente para eu sentir que minha cabeça explodiria e o quarto que eu me matava para deixar limpo ficaria como um cenário de carnificina. Errei e tive de recomeçar três vezes. 

Quando eu acertei e começou a chamar, eu senti todas as minhas veias se congelando. Levantei-me de onde estava e abri a janela, colocando o rosto para fora e fechando os olhos. Pedi silêncio ao meu cérebro, mas nada adiantou. O vento empurrava algumas poucas partículas de chuva em meu rosto. 

Eu não conseguia parar de pensar no tamanho do meu medo de escutar o que não queria. Talvez, em alguns segundos, eu escutasse as palavras que mais poderiam acabar com tudo o que eu tinha na vida. Eu estava ligando para a casa dela e sequer sabia o que poderia dizer. 

O telefone continuou a chamar. Eu senti meu peito apertar e a mão tremia, agarrada ao aparelho. Curvei o corpo para baixo e Guilherme disse que eu não devia me matar, mas eu já sabia disso. 

— Alô? 

A demora foi tanta que eu me assustei muito quando atenderam. Comecei a respirar pesadamente e me virei, olhando para Guilherme com os olhos arregalados. Ele ficou fazendo gestos para que eu falasse, mas era como se uma mão houvesse agarrado o meu pescoço.

A voz era de homem e não tinha absolutamente nada a ver com a da Liana. Podia ser que fosse o pai dela — não, só podia ser. Mas e se eu houvesse discado errado e a ligação, ido para outra casa?

E se o pai dela não estivesse de bom humor, pois algo havia acontecido? Porque, afinal, o "alô" dele havia soado de uma forma estranha e aquilo fez o meu estômago revirar-se como se eu estivesse numa montanha russa. 

Eu sentia, de verdade, que iria morrer. O nervosismo era o que me segurava, para que o medo pudesse me bater sem que eu pudesse defender. Todos os sentimentos do mundo pareciam ter se juntado para me espancar ao mesmo tempo. 

— Alô? — o homem, diante da minha falta de resposta, tentou insistir. — Quem está falando? 

Perdido, olhei para Guilherme. Ele estava com as mãos na cabeça, o rosto parecendo mais desesperado do que o meu. 

— Fala alguma coisa! — ele disse e eu apertei um botão no telefone, desligando-o. — O que você fez?!

Abaixei o braço, encarando um canto do quarto. Guilherme levantou-se de onde estava e veio até mim, pegando no meu pulso e pegando o telefone. 

— Você é idiota? Haviam atendido! Não é? — foi como se ele estivesse gritando dentro da minha cabeça. — Vamos lá, eu vou ligar de novo. Dessa vez, diga algo! Não te trouxe aqui para nada! 

Ele me virou as costas e pegou o caderno, começando a discar no telefone enquanto eu continuava desnorteado. Colocou-o no ouvido, checando se chamava, e então entregou-o para mim. Olhei-o como se pedisse socorro. 

— Eu... não quero. 

— Você é um japonês corajoso ou um saco de batatas?

Uni as sobrancelhas.

— Eu sou um chinês fracassado.

Guilherme balançou negativamente a cabeça. Ele levantou o meu braço e colocou o telefone em meu ouvido. Ainda chamava e, a cada som que comprovava isso, eu sentia a minha alma deixar mais o corpo. 

Eu não estava sendo consumido, aos poucos, pelo medo. Era como se eu já fosse apenas medo. Não era mais eu, de novo.

Atenderam-me mais uma vez e meu espírito foi embora por completo. 

— Alô? Você me ligou há um minuto? — E eu estava errado em pensar que a entonação daquele homem não se parecia com a de Polliana. Talvez eu estivesse, àquele ponto, sem nem mais saber de coisa alguma. Mas ele falava de uma maneira igual à dela, exceto por um puta sotaque do sul. — A ligação caiu? 

Perguntava-me se, caso fosse o pai da Liana, se ele era alguém ruim. Se ele diria propositalmente que ela não estava, mesmo que estivesse. Se, caso algo houvesse acontecido, guardaria para si mesmo — e com razão. Eu não era nada para ela, nem mesmo para a família dela. Não havia um pingo de obrigação deles de me dar satisfações. 

Eu separei os meus lábios e um sussurro saiu, levando uma vogal que eu completei com o resto da palavra. 

— A... A-alô.  

As mãos de Guilherme se mexiam impacientemente e ele ficava mexendo a boca, como se eu pudesse entender alguma coisa do que tentava dizer. Aquilo me desesperava. Eu estava suando frio. 

— Quem está falando? — ele perguntou de uma maneira que pareceu mais ser para si mesmo. — Deve estar ruim por causa da chuva... 

— A... A Polliana está? — as palavras saíram rápido, atropelando-se. — Preciso falar com ela agora e é muito importante. Você poderia, por favor... passar para ela? 

Ele não me respondeu no momento e eu senti tudo caindo. 

Eu não tenho ideia de quantos segundos com silêncio eu tive, mas foi mais do que o suficiente para todas as possibilidades de ouvir algo horrível se passaram pela minha cabeça. Havia tanto receio em perguntar mais coisas e deixar claro que eu queria saber se ela estava bem. Era como se apenas uma palavra da parte daquele homem, que eu sequer sabia se era realmente pai dela, uma alavanca dentro de mim fosse empurrada e eu tivesse um infarto. 

Era... como se fosse apenas isso. 

— Não, ela não está... agora. Sou o pai dela. — A voz dele pareceu seca. — Quem é? 

— A-Alexander! — eu não queria parecer desesperado, mesmo que falando daquela forma isso ficasse claro. — Eu sou da mesma classe dela, nós... somos amigos. Eu precisava muito falar com ela agora, você pode dizer... caso a veja, você poderia...?

Eu não queria ter dito a ele que éramos amigos, porque nós não éramos — mas isso não foi o que me deixou ainda mais louco naquela hora. 

Fiquei ouvindo a respiração dele na linha e me perguntando como diabos Liana não estava em casa à uma hora daquelas. Já era sete da noite! Ela não saía! Algo tinha de ter acontecido! 

Eu me virei para a janela com a mão livre apertando o rosto, querendo não chorar e embargar a voz. Eu queria tanto saber se algo havia acontecido, mas não tinha como simplesmente perguntar se algo acontecera. Era como se metade do meu poder de palavra houvesse sido levado embora de um momento para outro. 

— Se você é da classe dela — ele começou —, então você sabe de tudo o que sempre aconteceu. 

Meu olhar estava no bairro lá embaixo e eu simplesmente calei a boca quando escutei-o dizer aquilo. Dentro da minha cabeça, a minha pergunta de "tudo o quê?" ressoou tão alto que eu não soube dizer se já a perguntara ou não. 

— As pessoas... nunca tiveram uma maneira gentil de lidar com a Polliana, não é? — O tom dele ficou mais baixo, hesitando; eu encarei o chão vários metros abaixo como se já me visse ali. Eu nunca havia escutado alguém além de mim dizer o nome dela assim, completo. Era como se sequer fosse alguém falando dela. — Mas ela nunca me falou nada... só que eu sempre soube, pois dá para ver. Me desculpe estar dizendo isso para você, filho.

Eu me senti paralisado quando escutei aquilo dele. 

Não quis mover um músculo. 

— Eu não estou entendendo. Você... está falando de bullying? 

— Agora tem nome, não é? — o homem perguntou, soltando um suspiro. — Mas ainda não tinha quando ela era mais novinha. Ninguém dizia nada, né... Era coisa de criança. Ninguém levava a sério, não, ninguém via que fazia mal de verdade. Professor até dizia para os pais que não tinha nada ver, criança é assim mesmo... 

Foi como se ele houvesse rido baixo diante do telefone e aquilo chiou. Não era uma risada má. Era... uma risada conformada. 

— E nunca tem muito que dá para a gente fazer — ele continuou. — Às vezes, a pessoa não fala. Você sabe, tem a idade dela, não é? Deve ver como é, guardar para si mesmo também quando acontece alguma coisa. Polliana... Ela sempre guardou tudo.  

— Eu... não estou entendendo aonde quer chegar. — Meu coração estava disparado. — Do que está falando? 

— Sei que não quer ouvir isso — o homem respondeu —, mas, agora que ela não está aqui em casa mais, eu queria saber se você sabe se houve algo de mais antes... de ela ficar diferente, de as coisas mudarem. Nos últimos dias, Polliana esteve muito mais quieta. Já que você é coleguinha dela, eu imagino que saiba. Ela não fala muito com o pai, mas, ainda assim, eu percebi que... 

— Ú-últimos dias? — Eu olhei desesperado para Guilherme. — M-mas, que últimos dias? Últimos dias do quê? Aconteceu alguma coisa? Se aconteceu, então...! Você vai me dizer? 

Eu ouvi a voz dele quando começou a dizer, mas abaixei o telefone. Eu não quis ouvir. Não quis procurar sentido no que havia acabado de escutar ou continuar a entupi-lo com perguntas. 

Apertei o botão do telefone e o joguei em cima da cama, sentindo falta de ar e assustando os gatos e Gui junto. Guilherme me olhou como se não entendesse, mas nem mesmo eu entendi. Apanhei a blusa que acabara de jogar sobre a cama e saí do quarto correndo, esbarrando em móveis e ignorando a minha mãe que gritou quando passei pelo corredor. 

Saí pela porta do apartamento, apenas enfiando os pés dentro do tênis e não me preocupei em fechar a casa. Guilherme berrava atrás e eu não o respondia. Era como se eu houvesse perdido o meu caminho e apenas correr daquela forma fosse doloroso, porque realmente era. Sequer pensei em entrar no elevador e desci as escadas pulando três degraus por vez, atropelando vizinhos que subiam e apenas vendo borrões em seus rostos. 

Havia gente na recepção e eu não consegui ver quem era. Quando saí, o barulho de chuva estava alto e se misturava com todas as vozes dentro da minha cabeça, comendo o meu cérebro. Eu me meti na chuva e ouvi trovões, atravessando a rua enquanto mal olhava para os lados. 

A água fria batia nas minhas costas à medida que comecei a correr. 

E eu corria pelas ruas e esbarrava em pessoas segurando guarda-chuvas, cujas merecidas desculpas mal saíam de minha garganta. Houve um momento em que esbarrei de verdade num homem e ele, em resposta, empurrou com força seu ombro contra o meu e perguntou-me se eu achava que ele tinha todo o tempo do mundo para atrapalhá-lo daquela maneira. 

Eu o encarei em resposta sem sequer abrir a boca para dizer algo. A chuva do próprio céu caía em mim, mas o que caía sobre o guarda-chuva dele respingava ainda mais sobre o meu corpo pela direção em que eu estava. O homem, como se esperasse uma reação minha, estreitou os olhos e me encarou com ferocidade antes de virar-me as costas. 

Mantive os olhos no local em que ele estava enquanto o desconhecido se afastava. A água gelada empapava meus cabelos e escorria pelas roupas, colando minha camiseta ao peito. Meus pés e mãos estavam extremamente frios, o traseiro afundado numa poça por eu ter caído.

Mais pessoas passavam ao redor de mim e minha presença não lhes fazia a menor diferença. Desviavam do meu corpo no caminho, alguns murmurando perguntas sobre o que diabos alguém fazia assim, na chuva, sem nada para se proteger. 

Em certo momento, eu fechei meus punhos e apertei os olhos. Minha respiração falhava e os músculos do corpo, retesados, pareciam latejar enlouquecedoramente. Agora, os esbarrões não eram causados por mim; as pessoas me empurravam. Meu corpo não se movia um centímetro de onde estava. 

Permaneci parado e pensei no tamanho da diferença que eu, ali, estava fazendo. No que aconteceria no mundo caso Polliana houvesse, àquele ponto, cometido suicídio por minha conta e sua família sequer quisesse dizer isso claramente aos outros. Em como isso influenciaria a vida de todos e em como era, de verdade, importante e crucial para a sociedade. 

Todos os dias, alguém morria. 

Fosse por si mesmo ou pelos outros, por suas mãos ou dedos alheios. Nunca haveria um único momento no mundo em que os problemas simplesmente se solvessem, assim, como mágica. 

E o mundo não pararia de girar por isso. Ninguém que passava ao meu lado na rua sabia do que eu havia feito, de quem eu era, da dimensão do vazio e do desespero que eu estava sentindo. Nenhuma única pessoa pararia seu caminho para perguntar se eu estava bem, se algo havia acontecido, se eu precisava de uma luz — por mais fraca que fosse. 

Se ninguém desconhecido se importava comigo, por que se importaria com ela, sendo que mesmo os que deviam ser seus conhecidos não se importavam? Se Sam, o melhor amigo até então, fora um dos maiores falsos que ela já conhecera e deixava claro que não se importava? Se eu, que demonstrara ser o real amigo e depois me tornara o inimigo, não demonstrava me importar?  

O mundo, para todos, não pararia de girar de um momento para outro por causa dela. Ninguém... Ninguém sequer sabia dela. Polliana era menos do que um ponto no mapa, um número na contagem da população ou o espaço de seu nome na chamada. Ela não devia ser nada. 

Algo que era irrelevante para o mundo inteiro era, para mim, o final de tudo. O romper da corda fina que envolvia-nos, mesmo de longe, impedindo que eu a deixasse cair no abismo quando eu mesmo fora a pessoa a deixá-la ali, pendurada. Caso algo houvesse realmente acontecido, eu sabia que correria até ela e cairia junto. 

Não era, mais, como se o fato de eu ter prometido a mim mesmo nunca dizer "não vivo sem você" fosse importante. Simplesmente não importava. Ela havia sido o começo do Alexander que eu era agora e, agora, o final. 

Eu não sabia quantas vezes eu podia ter andado na rua, passado ao lado de alguém como eu ou como ela e não ter olhado para essa pessoa, de alguma forma. Quantas vezes eu ainda faria aquilo, dali para frente? Quantos pulmões transbordando angústia eu ainda não tentaria ver? 

Eu ignorava o sofrimento alheio. Eu não encarava as dores dos outros como algo que, de alguma forma e algum dia, pudesse realmente ser do meu interesse e ser algo em que eu pudesse ajudar os outros. 

Mas a Liana... Ela não era como eu.

Desde o começo, ela sempre veio tentando tomar os meus problemas e ser o meu escudo quando eu, na verdade, era a espada que a feria. E ela nunca desistia de mim, nunca acreditava que eu era alguém ruim, nunca respondia com violência de verdade a todas as coisas insensíveis que eu dizia a ela e a todas as pessoas. 

Polliana era assim. Ela nunca ignoraria um alguém angustiado em meio à rua, por mais perigoso que pudesse ser tentar tocar o peito dessa pessoa. Ela nunca deixaria de se arriscar e se humilhar pelo bem dos outros, mas não pelo dela. 

Liana era, de verdade, quem mais tentava mudar a vida de todo mundo. Mas a vida de todo mundo jamais mudaria ao menos um pouco por causa dela.  Exceto a minha. 

E eu não soubera cuidar disso, da maneira como ela poderia mudar minha vida para algo melhor. Não soubera defendê-la, ajudá-la, ser o mais sincero possível como eu era com os outros. Todo meu medo de feri-la havia feito com que eu a ferisse mais do que qualquer um. Aquele receio de deixá-la sofrer no futuro havia feito-a sofrer, agora, talvez mais do que ela acabasse sofrendo caso eu nunca houvesse feito nada. 

Cada vez mais, as paredes do Alexander antigo iam se derrubando e orgulho, coragem e racionalidade iam ao chão. Tudo o que me tomava agora era a covardia e a angústia que me consumia por inteiro. Se minhas lágrimas não estivessem quentes, eu sentiria que meu rosto era lavado apenas por chuva. 

Eu me levantei recomecei a correr, ainda imerso em desespero. Virei algumas poucas curvas e ignorei toda a falta de ar que sentia. Quando eu vi que devia estar na rua dela, apenas me senti mais perdido ainda. 

Parei e encarei a fileira de casas, comércios, o que fosse. Estava tudo ficando escuro e as árvores chacoalhavam. Eu apertei meus olhos e implorei, a mim mesmo, que tivesse um mínimo vislumbre de qual seria a casa dela. 

Mas nada, nada me veio à mente. Eu sequer sabia o que eu estava fazendo ali. Ainda que soubesse que casa era a dela, o que eu faria? Eu... arrombaria a porta e o que escutaria? O mesmo que o pai dela já podia ter me dito ao telefone, caso eu não o houvesse desligado para sair correndo na chuva? 

De que servira, afinal, ter tido todo o apoio de todo mundo se eu não tinha o que fazer? De que adiantara implorar por uma chance e tê-la, quando não havia, para mim, maneira de aproveitá-la?  

A resposta não surgiria em minha mente, esclarecendo tudo e me mostrando que ela estava perfeitamente bem, dizendo que tudo apenas fora um mal-entendido e eu estava tendo um sonho ruim desde o começo. Nada daquilo aconteceria. 

Havia sido eu quem tirara o dia de descanso de Guilherme para apenas deixá-lo lá, sozinho, desnorteado. Sem saber qual era o meu objetivo correndo daquela maneira e ignorando a minha única fonte de uma solução. Eu fizera todos acreditarem que eu era alguém ligeiramente melhor, por estar me importando com outra pessoa, para apenas chegar àquele ponto e continuar sendo um covarde sem porra nenhuma dentro da cabeça. 

Talvez nem houvesse mais o que eu pudesse fazer. Pelo jeito do pai dela de dizer, talvez ele estivesse... tão arrependido quanto eu por não ter sido capaz de fazer coisa alguma. Talvez ele quisesse entender, compreender tudo o que acontecera com ela desde sempre, ao menos para pensar em um motivo para aquilo ter acontecido. 

Comecei a chorar convulsivamente ali mesmo, aonde estava. Eu não fechava os olhos e tudo ao meu redor apenas se borrava mais. Sentia-me como um menino pequeno, perdido. Ter sempre vivido querendo ser o mais maduro e insensível possível não havia servido de absolutamente nada. 

Cada vez mais, eu sentia chuva caindo sobre mim e não fazia questão de ir à algum lugar coberto. Eu devia sentir como se fosse algo para lavar a minha alma e a minha culpa, mas aquilo era como mais peso sobre mim. Os trovões mal se comparavam aos meus gritos internos. 

Eu só havia iludido todo mundo. Enganado os meus amigos, enganado Liana, enganado a mim mesmo. Não havia sentido em manter a minha própria promessa de nunca mentir em momento algum no momento em que eu a conhecera. 

Não pensei em mais motivos para continuar ali. A chuva parecia ter parado, mesmo que eu ainda a ouvisse. Permaneci de olhos fechados, pensando que talvez os meus pensamentos fossem, mesmo, mais altos do que aquilo tudo. 

E então eu ergui a cabeça e abri os olhos. Previsível, quando você é louco. Mas... ela estava ali. 

Seu braço estava estendido, segurando um guarda-chuva transparente sobre a minha cabeça. O corpo todo colocado na chuva, com os cabelos colados à testa e as sacolas de compras que carregava sendo encharcadas. Eu apenas senti as minhas pernas perdendo a força e não evitei que as minhas lágrimas colaborassem no trabalho de me deixar mais deplorável ainda.

Ela foi, naquele momento, o borrão ensopado mais lindo que eu já vi na vida. 

☔ 

Você foi tudo o que eu vi 
Mas você disse que eu era cego 
Agora, eu sei o que você significa 
Para mim 

Houve palavras que eu devia ter dito 
E houve coisas que eu desejo ter feito 
Eu não fui quem devia ter sido 
E é por isso que eu estou aqui, sozinho 

Eu sei o porquê de você ter me deixado 
Eu sei o porquê de você ter me ferido tanto 
Você me deu liberdade, me deixou ir 
E eu nunca senti essa dor 

Com o tempo, irá embora 
Um dia, eu ficarei bem 
Apenas precisa saber que eu seguirei em frente 
E sei o que você fez por mim 

Não olhe para baixo, dê um passo 
É hora de acordar de seu sonho 
Eu vim tão longe 
Eu sei 

Há algo que não sei 
Mas que realmente deveria saber 
Quando você esteve comigo, eu me lembrava disso 
Mas agora estou só 

Apenas me deixe fora daqui 
Tão quieto, em meu quarto 
Tantas vezes, cometi erros 
E sei que isto é errado 

Neste pequeno e silencioso mundo 
Não posso provocar som algum 
De tempo em tempo 
Quero desistir 
Mas talvez hoje não 
Não, hoje não 

O que seria se eu dissesse que desisto? 
Você ainda chamaria pelo meu nome? 
O jogo terminou 
E estamos fora do caminho 

Não podemos evitar que o tempo passa 
Nem mesmo você 
Você nunca sentiu 
Que nenhum de nós é inocente? 

Você já percebeu 
Que você é um deles? 

Com o tempo, deixarei ir 
Um dia, eu ficarei bem 
Só é preciso saber que irei em frente 
E sei o que fez por mim 

Apenas tente ver da forma que vejo 
(Innocent In A Silent Room, Pay Money To My Pain) 


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Notas finais do capítulo

AEHOOOOOOO, A DONA DO MORRO SOU EU, SE FODEU, BLOQUEIO CRIATIVO!
Mentira, gente. Vamos lá então. Eu havia escrito um puta texto aqui, mas o Nyah apagou e eu tô bem puta, então só vou agradecer por todo esse apoio maravilhoso, pedir desculpas pela demora (de novo) e mandar beijo para todo mundo!
AMO VOCÊS, LINDOS! LULÚCIFER, MYLLENA, LIKA, THAIS, SAMEQ, MICHELLE, LIZA, ANA BEATRIZ, ROGER, HAN, LARISSA GALVÃO, BELLS (que sumiu, né, vagabunda), VITÓRIA, RAQUEL, MARIA FERNANDA, MORGANNA, FILIPA, LORENA (aquela que não sou eu), BEATRIZ, JADE, TEODORA (tá sumida né), SUNNY, MARINA, MARIA BEATRIZ, ATÉ PRO SAWYER, PRO TAKA, PRO K, EU DEDICO PRA TODO MUNDO! ♥
Espero que possam comentar!