Defeitos de Fábrica escrita por Lorena Luíza


Capítulo 18
XVIII. Chama fugitiva


Notas iniciais do capítulo

Oi! Tem crossover nesse capítulo também!
É com a fic Lost It All, da Marcella Serrano (aqui no Nyah!, o nome dela é Tyra).
link no fim do cap! os personagens dela são os russos, heh xD
Revisei feito minha bunda.
Perdão, plz.



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🔥

Ainda que aquele fosse o tipo de lugar que eu costumava frequentar com as pessoas que andavam comigo, nunca havia sido como se eu me sentisse realmente bem por ali. A atmosfera e o ar eram ruins, sem nada que pudesse me ser interessante um dia. Entediante e chato. Um habitat natural perfeito para quase-adultos se sentirem livres para pagarem de bêbados e, culpando a bebida, fazerem o que querem sem terem de sofrer as consequências.

Resumindo bem, eu deveria chamar aquilo de "lugar de gente estúpida", mas, bem, eu não farei isso. Se aquele local realmente fosse isso, então eu devia estar me sentindo em casa.

Tudo aquilo era-me facilmente trocável por uma noite sob uma montanha de cobertores, dois litros de sorvete e um notebook com muitas séries e muitos filmes de terror para assistir, mas eu preferi me esforçar para tentar gostar dali naquele momento. E teria de me esforçar muuuito, aliás, porque estar lá fora na rua estava sendo bem melhor.

Aquele lugar não era, obviamente, como um boteco de esquina. Era um bar arrumadinho, aquele tipo de barzinho que, ao invés de coxinha e ovo colorido, vendia bebida alcoólica e era decorado de forma a se parecer o mínimo possível com um bar de verdade.

Sabe, quando a pessoa quer ir para um canto e encher o rabo de bebida, mas não quer dizer que vai para um boteco ou simplesmente um bar? Ela diz, para parecer mais decente, que vai para um barzinho. É assim que se faz. Ao menos era assim que os meus colegas faziam e assim que eu aprendi.

Mas, para mim, aquilo não se parecia com um bar, boteco ou o que fosse. Sei lá com o que se parecia. Com sofrimento, dor e tristeza, eu acho.

O lugar tinha umas paredes vermelhas, piso quadriculado e as mesas eram espremidas, rodeadas por bancos colados, pretos e sem separação entre os assentos. Isso era uma droga, porque fazia os ocupantes serem obrigados a, independentemente de suas vontades, ficarem encostados uns nos braços dos outros. Aquela mobília perturbadora lembrava uns mobis de Habbo, aquele jogo que, uns bons anos atrás, todo mundo jogava pra arrumar namoradinho instantaneamente e queria me arrastar pra jogar também. Resumindo, mais uma vez, era um lugar terrível de tão feio e desconfortável.

Havia um balcão normal com umas garrafas de bebidas em prateleiras atrás e gente passando para lá e para cá. Música ruim tocava, felizmente, bem baixinho. Não havia cheiro predominante e parecia meio cedo demais para ter gente falando alto — bom, ao menos até o resto dos meus acompanhantes entrarem, eu acho. Era bem previsível que já entravam no intuito de fazer baderna, então eu já sabia pelo que passaria e que a noite seria longa.

Fora as pessoas que eu vira no domingo passado, tinha uns quatro outro conhecidos que apareceram também. Sei lá quem os havia chamado, mas foi até bom vê-los. Quanto mais gente se falando e camuflando a minha boca calada, melhor.

Aparecera, primeiramente, Luci, o guri meio quieto de mechas verdes no cabelo caramelo, a boca mais bonita do mundo e o apelido de "Lúcifer" por destruir a vida de todo mundo que fazia piadinha com o fato de ele ser trans. Era muito silencioso e todo mundo sabia que gostava da minha prima, mas ele não estava nem aí para isso — muito menos ela, para ser sincero.

Aparecera também Lua, a baixinha gorda dona do cabelo afro verde mais incrível ever e a pessoa que ficava melhor de batom roxo que eu já vira na vida. Só abria a boca para falar de livro, fanfic e filmes de que gostava. Lua sentia-se o máximo e a pessoa mais culta do mundo por isso, o que era bem incômodo, mas era só ignorar para ela calar a boca. Ignorar... Quase sempre a melhor saída.

Junto com esses dois, viera Daniel, o revoltado que providenciava ovo e galinha para quando nós éramos crianças e queríamos perturbar os vizinhos. Consigo, trouxera a namorada, Michelle, que mandava nude para todo mundo e era muito feliz assim, muito obrigado. Os dois ficavam trancados vendo série quase o dia inteiro, mas ainda assim tinham uma vida social bem melhor que a de todos por ali. Quem não tinha, aliás?

Como eu não queria me sentar na beirada das cadeiras e ficar com metade da bunda para fora do assento, fui o primeiro a me espremer numa mesa e fiquei lá atrás, tentando me isolar do mundo e rezando para que ninguém que fedesse viesse ficar do meu lado. Nós mal entramos e as meninas já começaram a tirar foto, coisa que eu só percebi depois de virem me mostrar e rirem de mim lá no fundo. Eu nunca percebia quando tinha gente se fotografando perto de mim, então saía com cara de morto ou entediado em todas, vendo-as só quando acabavam me marcando nelas na internet depois ou vinham me mostrar.

Depois de zoar a minha cara o suficiente e ficar irritada com o fato de eu tê-la ignorado, Rebecca veio passando e ficou do meu lado esquerdo, sendo seguida pelo Mickey no direito. Ela me chamou de chato, enlaçou o meu braço quando sentou-se e botou a cabeça no meu ombro. O cheiro dela era forte e doce, mas não chegava a ser muito incômodo, ainda que o do Michael fosse notavelmente melhor. Ela cheirou o meu pescoço e eu fiz o mesmo com seu cabelo de californianas rosa recém pintadas, sentindo uma vontade doida de espirrar.

O resto das pessoas foi se sentando e tagarelando ao mesmo tempo, começando a pedir coisas e rir como se houvessem vindo de casa já bêbados. Eu queria porque queria estar mais empolgado, mas o máximo que fazia era rir um pouco de uma coisa ou outra e acompanhar a conversa apenas olhando para eles.

Quando eu percebi, a mesa já estava cheia de garrafas e algumas das pessoas comigo haviam encontrado conhecidos, então ainda mais gente falava por perto. Nem cabia todo mundo numa mesa só, então logo se dispersaram por uma outra próxima e eu pensei que poderia finalmente respirar. Eu já sabia que, logo, ficariam bêbados de verdade, arrumariam treta e eu acabaria morrendo pisoteado/espremido ali no meio, então sentia-me um pedaço de carne jogado numa jaula de leões.

Era apenas assim que me sentia até aquela fileira de criaturas montanhosas entrarem desfilando no bar, exibindo músculos, cicatrizes, cabelões de comercial de xampu e sotaque russo.

Aí eu não me senti apenas um pedaço de carne, eu me senti um boi inteiro.

Eles passaram numa fila, meio que liderados por um casal onde o cara gigante passava a mão pela cintura da guria ligeiramente menor. Todo mundo andava tão reto, de peito tão erguido e ombros tão bem posicionados que eu me sentia o Corcunda de Notre Dame perto daquele povo. Eram enormes, enormes mesmo, parecendo terem todos as aparências do tipo de personagem que todo mundo quer usar quando vai jogar RPG. Pietra meio que desaparecera em meio àquela massa de gente alta, forte e aparentemente louca para espancar alguém ao menor movimento que essa pessoa fizesse.

O cara da frente tinha um cabelo escuro e olhos muito azuis, a mesma combinação do pirralho babaca, o Kevin. Era o maior e aparentava ter mais idade que os outros, porém um outro, lá de trás, era um pouco mais forte. Ficava olhando para trás como se alguém pudesse pular em cima da menina morena e até bonita que tinha consigo, quase como se fosse paranoico ou alguma coisa assim, e as mãos dele deviam dar umas três das minhas. As pessoas comigo olhavam tanto para ele e para o resto dos seus companheiros que sequer usavam a boca aberta para falarem algo.

Atrás dele, tinha um outro que sorria, também de cabelos escuros. Eram bem menores que os meus, mais ou menos na altura do queixo e bem mais irregulares. Falava super alto com um cara lá de trás, o que só fazia ainda mais com que eles todos se tornassem algum tipo de foco da atenção no lugar.

O cara com quem ele falava estava abraçado a Pietra e um outro parecia criança, erguido na ponta dos pés e olhando curioso para tudo. O animadão era ruivo, com heterocromia nos olhos e todo descabelado, já o outro, que segurava Pietra, tinha pele e cabelos tão brancos que tudo parecia um negócio só. O branquelo devia ser o mais novo, julgando pela aparência. Ele era o único que eu já havia visto por foto — até porque era primo da Pietra, afinal.

Entre os dois, tinha mais um, ainda, que era mais cabeludo que eu e tão alto quanto todos os outros. O olhar dele passeou em todas as garotas da nossa mesa e na das de outras também. E é meio lógico que esse olhar passou pela minha cara também, despistando o fato de ele ter parado e ficado me encarando sem a menor vergonha na cara. Eu ergui uma sobrancelha e ele fez o mesmo, virando a cara em seguida.

Havia, também, um por último, que entrou sorrindo meio com cara de protagonista de seriado de vampiro. Eu já até reparei na Lua, fã dessas coisas, se remexendo em seu assento e amassando os cabelos para arrumá-los. Não pergunte-me qual era a graça que ela via naquilo.

— Ó os russos! — a Rebecca falou animada, quebrando o silêncio momentâneo e erguendo-se de seu assento. Colocou a mão para cima e fez um sinal absurdamente aleatório com as mãos para os russos, fazendo-os olharem para ela sem entenderem bulhufas. — Heil, Hitler!

A vergonha alheia me atingiu como um tapão na testa. Não pude evitar dar uma cotovelada forte naquela criatura sem noção naquela hora, recebendo um olhar confuso da Rebecca enquanto ela esfregava o lugar da barriga em que eu lhe atingira.

— Mas que droga! — falou irritada, fuzilando-me com os olhos. — O que foi, hein?

— Hitler é alemão — Xin Qian, que não havia falado até então, corrigiu-a por mim. — Você vai levar um tiro na cabeça se repetir isso, garota. E eu vou fazer questão de ser a responsável por isso.

Lincoln parou de encarar os peitos da única garota do grupo russo apenas para rir e olhar para a minha prima.

— Eles nem são russos — ele disse e encolheu os ombros, relaxando-se aonde estava sentado e cruzando as pernas. — Não tô vendo nenhum bebendo vodca, brincando de roleta russa ou atirando de AK-47.

Os russos da frente aproximaram-se da nossa mesa e a garota, morena e de cabelo misto, colocou as mãos na mesa. Ela tinha olhões verdes e inexpressivos, com cabelos médios e sem franja alguma, e usava roupas escuras e comuns de adolescente: botas, camisa bordô e jeans. Nada maluco como o meu povo. Ela era perfeitamente normal.

Olhou só na minha cara e na do Lincoln, por algum motivo que eu não fazia a menor questão de tentar saber. Rebecca, visivelmente morta de cagaço, colou as costas ao encosto da cadeira, prendendo a respiração e fincando as unhas no meu braço.

Depois de dar um tapa na mão da Rebecca, eu continuei na mesma. Não era como se a menina fosse pular em cima e mim e me comer vivo, de qualquer forma.

Ao menos eu esperava que não fosse assim.

— Boa noite — a garota falou séria, ignorando os comentários vergonhosos de quem estava comigo. Parecia estar falando meio como se usasse português de Portugal e não usasse ao mesmo tempo, então era uma mistura interessante (e confusa) de sotaques de muitos cantos. — Meu nome é Ania.

— Por que ela não falou nada com "r" ou gritou cuspindo? — Luci perguntou, franzindo decepcionado as sobrancelhas. — Droga, eu só vim para ver isso. Ela é realmente russa?

Ania não esperou ninguém responder antes de virar-se para os caras que estavam logo atrás, encarando-os séria, como se fosse uma líder ou algo assim. Luci sobressaltou-se aonde estava, assustando-se com o movimento repentino da menina como se ela houvesse ouvido o que ele dissera. E devia ter ouvido, afinal, do mesmo modo como fora com todas as outras bostas que os meus acompanhantes disseram.

Eu me sentiria em alguma espécie de filme se houvesse uma música mais apropriada do que sertanejo universitário ao fundo.

— Companheiros — Ania disse ríspida aos caras que estavam com ela, finalmente enroscando num "r" e fazendo Luci rir —, comportem-se.

A maioria deles só continuou olhando-a, do mesmo jeito que quem estava comigo, e o cara de cabelo claro deu de ombros. Lincoln soltou uma risadinha sem sentido no meio de tudo, sendo ignorado e calando-se em poucos segundos.

Achei que a tal Ania começaria a, sei lá, mandar eles se apresentarem ou coisa assim, mas então ela olhou para a minha cara. No meio de tanta gente, ela olhou diretamente para a minha cara. E não parou com isso até falar comigo.

E então, deixando de ser um boi gordo e suculento, eu passei a me sentir um soldado prestes a receber uma ordem.

— Você.

— Eu?

— Muito bonito seu cabelo.

Eu franzi as sobrancelhas, não entendendo que tipo de abordagem estranha era aquela. Lincoln logo caiu na risada com alguns outros e a Rebecca deu um empurrão em mim, rindo também.

Nenhum deles, russos, deu risada. Nem eu, nem a Xin Qian, nem ninguém que tivesse cérebro por ali e fizesse um bom uso dele.

— Não foi nada — como se fosse uma indireta por eu não ter agradecido, ela disse e sorriu, estreitando os olhos. — Obrigada pelo convite de hoje e obrigada por terem vindo.

Voltei a fazer cara de desentendido, assim como todo mundo. Ok, "obrigada pelo convite" era de boa, mas "obrigada por terem vindo"?

Ela achava que aquilo era uma reunião secreta ou o quê?

— Ei, vocês escolhem sempre o Zangief no Street Fighter? — Lincoln falou, ficando de pé e quase pisando em cima de todo mundo pra sair de trás da mesa. — Ele é russo, não é? Como vocês ou original?

Inexplicavelmente, ele achou algum sentido naquilo e, sozinho, riu, indo para a frente da mesa e aproximando-se deles. Tirara a jaqueta e jogara no colo da Lua, lá longe.

Foi impossível não reparar na regata da The 1975 dele. Sério, uma pessoa tão idiota e vergonhosa devia ter nem o direito de gostar de algo legal assim. Meus dedos foram possuídos por uma vontade de horrorosa de arrancar aquela camisa dele — para roubá-la para mim, claro, e não para ver aquele peito tatuado pela milésima vez na minha vida.

— Oi, meu nome é Lincoln! — ele apresentou-se com um sorriso grande e o piercing do smile deu um "oi" junto com seu dono. Estava alegrinho demais para alguém diante de olhares tão feios. — Vocês criam ursos pardos e dragões no quintal? Aliás! Astrid! — Ele chamou Pietra no meio daquele povo todo, enfiando-se lá e puxando-a pelo braço até a frente. — Pergunte se eles podem me vender alguma arma de fogo!

Enquanto Pietra tentava se recompor por ter sido arrastada, ele estendeu a mão para Ania, que olhou-a com um sorriso divertido e não respondeu ao cumprimento. Enquanto o vácuo se prolongava, o carinha de cabelo branco enfiou as mãos no bolso, ficando só olhando, mas os outros continuaram como bonecos de cera.

— Você é muito idiota — Pietra disse irritada. — Eu não sou tradutora, seu animal de tetas. Você não viu que eles falam português? E falam bem melhor do que você, tá? Não é só a Ania, não.

Ania olhou para ele de cima a baixo enquanto o cara que estava com ela chegava mais perto. Os cochichos ao meu redor tornavam-se cada vez piores, cada vez mais incômodos. Eles, o casal de russos, sorriram um para o outro e Ania olhou para Lincoln outra vez, dando um sorriso ainda maior para ele.

— Eu crio cães que matam ursos, se isso serve de consolo. — Ela deitou a cabeça, estalando ameaçadoramente o pescoço. — E não colocaria uma arma de fogo em tuas mãos nem se pudesse pagar o suficiente para alimentar todos os homens do meu pai.

Lincoln deu uma risadona, erguendo as sobrancelhas pretas extremamente surpreso. Xin Qian soltou um "toma" mais do que merecido enquanto os outros riam e Pietra cruzou os braços com cara de "não falei?".

Admito que acabei rindo de canto também, torcendo o máximo possível para Lincoln responder com alguma provocação, Ania tirar uma bota do pé e fazê-la descer por sua garganta abaixo.

— General Medvedev teria de morrer antes de deixar lhe darmos uma arma — o outro, provavelmente cônjuge dela ou algo assim, comentou normalmente e ninguém entendeu nada. — A propósito, eu sou Kirill e não queria ter vindo.

— O General me deve, deve e deve? Caralho, quanto dinheiro ele emprestou de você?— Analu perguntou de sobrancelhas franzidas, finalmente dando um sinal de sua presença. Ela deu risada em seguida e, não achando aquela idiotice o suficiente, insistiu: — Aliás, Grill? Seus pais por acaso tinham um restaurante e quiseram homenageá-lo com o seu no—

Loe, visivelmente brava, deu um empurrão na amiga, interrompendo-a.

— Idiota, isso não tem graça! — ralhou. — Por que você não pode continuar simplesmente quieta?

— Quê? — Lincoln riu de novo, chegando a ficar vermelho dessa vez. — Que diabos de general é esse, que eu nunca ouvi falar? Além disso, quem é seu pai? Cadê seu pai, na verdade, criança?

Ania ficou séria enquanto o resto deles se dispersava um pouco. Um deles já tinha sumido, e eu me lembrava de tê-lo visto saindo com uma menina. Não que isso me interessasse, afinal. Eu estava muito bem apenas torcendo por Ania naquilo tudo.

— Nikolai Medvedev é meu pai — ela respondeu sem maiores emoções, fungando e coçando entediada o pescoço em seguida. — Ele é o general que Kirill disse.

O outro torceu calmo os lábios, quase como se confirmasse o que ela dizia. Enquanto ninguém falava nada e eu ficava só olhando, o garoto extremamente branco veio para a mesa também.

— Ui, ela é filha de um general! — Lincoln debochou, balançando os ombros e então olhando para os outros. Sorria para eles da forma mais cínica e alegre possível. — E quem são vocês, afinal? Andam com ela — disse e apontou Ania — por causa disso? Por ela ser rica?

— Oh, não, nunca — o menino clarinho completou por Ania. — Somos apenas alguém que tem dinheiro e coragem o suficiente para chutar a bunda da sua família inteira.

Foi inevitável não rir diante de mais aquela resposta inesperada. Lincoln balançou negativamente a cabeça, dando risada e olhando para a gente como se procurasse uma resposta para a estranhice daquelas pessoas em nossas caras.

— Não se ache, Gleb — Ania disse ao amigo. — Eu disse "comporte-se". E olha que você sequer bebeu ainda, não é?

O outro riu mais uma vez e eu somente percebera naquela hora, mas duas das pessoas dali que eu não conhecia já haviam sumido. Cinquenta por cento confuso e cinquenta por cento indiferente, olhei para os lados e me ergui um pouco do assento para procurá-los, vendo o cara de cabelo castanho encarando a Lua e ela enrolando o cabelo no dedo na pior tentativa possível de parecer charmosa.

— Gleb e Kirill? — Rebecca cochichou no pé de um dos meus ouvidos, dando uma risadinha em seguida e fazendo eu me encolher de susto. — Ania é o único nome bonito nisso aí? Cruzes! Gleb parece o som que a gente faz quando vai vomitar, não é verdade?

Ela começou a fingir que estava vomitando, repetindo "gleb", "gleb" e "gleb" várias vezes com uma voz nojenta. Eu enfiei sem muita força a mão na cara dela, empurrando-a para o lado, e ela fez o mesmo com a minha.

Céus, o que eu estava fazendo ali no meio daquelas pessoas?

— Pelo amor, continua quieta que assim estava ótimo — eu reclamei em resposta, usando quase a mesma frase de Analu, falando pela primeira vez em muito tempo e tendo a mão da Rebecca amassando o meu nariz. — Para com isso, garota!

Ela desistiu de me empurrar, rindo, deixando à mostra o aparelho de borrachas rosa e continuando com os "gleb", "gleb" e "gleb" como se fosse uma criança de quatro anos. Eu retribuí um pouco da risada, jurando nunca mais reclamar das coisas toscas que Liana fazia, mas parei quando percebi a Analu me engolindo com o olhar a alguns metros de mim.

Ela estava segurando um copo e pendurada na Loe, falando alguma coisa com ela enquanto me encarava. Já que ia fofocar, aquela vaca ao menos podia fazer isso direito. Eu encarei-as de volta até Analu erguer o dedo do meio para mim, respondendo-a com um gesto igualmente amável.

Sério, eu não estava aguentando mais aquela garota olhando para mim e falando como se soubesse cada detalhe da minha existência destruidora de corações inocentes. Aquilo já estava chegando a se tornar pesaroso e eu quase mudava de foco sobre Ania e Lincoln, agora torcendo para que a garganta recebedora da bota fosse a da Analu, não a dele.

Falando nele, Lincoln e Pietra estavam quase discutindo, mas ao invés de ficar bravo ele só ria e falava mais merda em resposta. Alguns dos meus conhecidos foram tentando interagir com os russos, inclusive Rebecca, que chamou o tal do Gleb para perto e começou a falar do quão incrível era o cabelo dele.

Depois de uns minutos, já estava quase todo mundo conversando, os mais velhos meio bêbados e rindo. Rebecca implicava com o fato de eu ter ficado quieto, ouvindo música no volume máximo e fingindo que não existia, mas eu a ignorei e disse que estava com dor de cabeça. Se não soubesse que iriam arrumar um modo de me zoar, teria virado a cara pro lado e até fechado os olhos para não ver o Lincoln ser idiota publicamente lá na frente, mas no fim continuei olhando.

Meu celular ainda vibrava toda hora por causa do babaca enchendo o saco. Eu não conhecia o número, então sequer abria as mensagens. Não tinha paciência para isso e, se abrisse, seria só para mandar a pessoa se foder, então continuei só olhando os russos sendo bobos também.

O tal do Kirill e Ania eram os mais quietos, provavelmente por terem de ficar de olho no resto para a zoeira não sair do controle. Sério, eu me senti num jardim de infância no meio daquilo tudo, mas os meus amigos pareciam estar amando. Até a Xin Qian estava rindo da demência daquele povo e, contrariando os pensamentos preconceituosos de quem estava comigo, nenhum deles bebeu vodca, mencionou algo sobre armas secretas nucleares ou ameaçou de morte a família de algum BR dali.

Ania às vezes ficava puta com algumas pessoas, então o cara que devia ser namorado dela ia e acalmava-lhe os ânimos. Eu não ficaria surpreso se, uma hora ou outra, ele saísse no tapa com algum cara que tivesse assobiado para ela — e espancasse-o, também. Isso seria definitivamente tão divertido de se assistir quanto seria com Ania.

Além disso, segundo ela berrando, o resto das pessoas tinham uns nomes tão diferentes quanto o dela: Pyotr, Krtoph e Valary não eram coisas lá muito fáááceis de se dizer. Com esse monte de "r", minha avó passaria mal só de pensar em tentar pronunciar.

Só um, como a Ania, tinha um nome mais normalzinho: Alexandre — com "csandre", não "xandre". Era, por motivos óbvios, o único nome de quem eu realmente gostei por ali. Era um nome foda, claro. Imagina eu com um nome lindo desses.

Mas, antes que as coisas tomem o sentido errado, isso não significa que eu fui com a cara dele.

Eu gostaria de ter continuado em paz o tempo inteiro, mas não foi bem assim quando esse cara, o Alexandre, disse que ia embora mais cedo. Ele saiu beijando rápido a boca de todas as meninas, dizendo que era um cumprimento russo e depois curvou-se sobre a mesa aonde eu estava, chegando perto da minha cara como se fosse fazer o mesmo comigo. Eu recuei o máximo que pude, soltando vários "eu, não", "eu, não", "eu, não" até a testa descabelada dele encostar na minha.

Eu provavelmente beberia um litro de água sanitária se um desconhecido — e um desconhecido bêbado, apenas para constar — acabasse encostando sua boca na minha. Por causa disso, ter aquele russo me beijando não se pareceu nem um pouco com uma boa ideia, e eu deixei isso absolutamente claro na minha cara assustada.

E então ele, provavelmente vendo isso, começou a rir. E ele ria de um jeito muito feio, puta que pariu, dava para competir com a Rebecca!

— Calma, você não — ele, diante do quão desconfiado eu fiquei, falou e deu uma risadona. — Você é menino. — Sequer tive tempo de respirar aliviado antes de ele adicionar outra coisa terrível: — Te deixo pro Valary.

E então Alexandre saiu de cima da mesa, gritando o nome do cara em seguida:

— Ei, Valary! Quer beijar um coreano?

— Não! — eu interrompi. — Que nojo!

Ele parou e ficou me olhando por uns segundos, com a mão na cintura e o rosto torto. Parecia uma coruja laranja que rolou barranco abaixo. Eu achava que, na minha vida, nunca encontraria alguém mais descabelado que Liana e eu, mas Alexandre era a prova viva de que isso era possível.

Quando pareceu ter pensado em algo para dizer, fez uma cara mais confusa ainda.

— Nojo de coreano?

— Como você é burro! Não é isso!

Alexandre franziu as sobrancelhas cor de cobre e o tal do Valary olhava, de longe, confuso para nós dois. Eu queria sumir dali o mais rápido possível. A presença daquele cara estava fazendo eu me sentir mais do que encurralado.

— Tem nojo do Valary? — indagou boquiaberto, insistindo e olhando para o amigo de novo. — Mas ele tomou banho hoje, não foi, Valary? Você escovou os dentes?

— Eu só não quero ninguém me beijando!

Enquanto o nosso diálogo totalmente aleatório e estúpido ocorria, alguns dos russos tinham tirado a camisa para mostrar as tatuagens para o Lincoln e Lua, toda animada, batia palmas por ver os músculos deles assim de perto. Parecia que todos eles tinham uns lobos nas costas, algo que devia ser da academia deles ou alguma coisa assim. O Lincoln estava meio xoxo com o husky siberiano do pescoço dele, então começou a achar defeitos nas tatuagens dos outros para se sentir menos pior.

— Por quê? — Alexandre pendeu a cabeça pro lado de novo, perguntando isso para mim. — Você não tem cara de quem gosta de menina.

Eu revirei os olhos para ele, bufando e empurrando a Xin Qian de lado para sair da mesa. Saí do bar, indo para fora e pensando nos motivos de eu não ter feito isso antes. Cara, como eu era idiota. O ar estava tão bom e tão puro ali, estava tão, tão fresco. Eu só precisava me sentar e torcer para aquele cara não vir atrás de mim, porque, sério, naquele momento eu não beijaria nem a Faris Scherwiz se ela existisse e repentinamente aparecesse querendo meu corpo nu.

Sentei-me no chão com Dead Unicorn, da EGG BRAIN, soando alto nos meus ouvidos. Puxei a lista das notificações no celular e fiquei vendo aquele monte de mensagem acumulada em meios às de outras pessoas. Tinha coisa do Facebook, umas atualizações que eu ignorava há dias e haviam me enfiado em uns cinco grupos irritantes no Whatsapp só no tempo em que eu chegara no bar e estava ali.

Qual era o grande problema de perguntar se eu queria ser colocado em grupos antes de me por, afinal? Eu havia acabado de abrir o aplicativo para sair dos grupos quando mensagens daquela garota vieram. Não, não quem você tá pensando. A Rebecca, mesmo.

"Eu vou aí te procurar se vc estiver indo embora", ela dissera. "E então eu te tratei pra dentro na base da porrada."

Sempre doce e gentil. Nesse quesito, não era surpreendente sermos amigos.

"Não tô indo embora ainda, mas obrigado por me lembrar disso", respondi. "Agora eu vou."

"Entra pra dentro, vagabundo! Nada de ser antissocial hj."

Encarei incrédulo a tela não muito riscada do meu celular. Não era antigo, todo preto e sem capinha. Eu não ligava muito para trocar de celular em períodos curtos de tempo, mas até cuidava bem dos que tinha. Ficaria com os mesmos para sempre se não estragassem ou coisa assim, porém não dava nem tempo de ficarem muito ferrados, já que meus avós estavam sempre em cima de mim para me dar coisa nova.

Meus colegas diziam que eu nunca estava nem aí com celulares porque sempre ganhava o mais caro possível e sabia que seria sempre assim, mas eu realmente não dava a mínima para aquilo. Realmente. Tipo, sério.

O que eu fazia de mais num celular? Escutar música, mandar mensagem, ligar para alguém, ver alguma porcaria numa rede social ou aplicativo?

Eu precisava mesmo de algo que custasse mais de, sei lá, quinhentos reais para fazer coisas assim?

Que me dessem o dinheiro para gastar com porcarias Fini, então.

"Não tenho como entrar para fora", eu respondi para Rebecca. "Não vou entrar, aí tá quente e tem um ruivo querendo me estuprar."

Ela ficou alguns segundos quieta antes de começar a digitar.

"O Lincoln vai aí fora te encher o saco se vc continuar ai. Antes de a gente te ver, ele não parava de falar de vc, aposto que vai sair e vai tentar te agarrar aí no escurinho."

Eu gelei e fiz cara de nojo para o celular.

"Eu já escutei isso umas quatro vezes nessa semana."

"Ele realmente fala pacas de ti ♥ ♥ ♥ mas n shippo, nao. Shippo vc x eu."

"É, eu entendi, já."

"Quer notícias boas?"

"Diga."

"Tão gostando de vc e sou eu."

"Céus, essa é tão velha."

"É q eu n quero deixar Lincoln roubar meu homem, então n tive nem tempo de pesquisar alguma coisa mais legalzinha."

"Pelo amor, Rebecca. Eu não sou seu homem."

"FODA-SE, O LINCOLN QUER TE COMER COM FARINHA!"

Confuso, não pude nem rir daquilo. Liana reclamava das minhas expressões, mas eu definitivamente queria ver como seria se ela conhecesse Rebecca.

"Estou aterrorizado."

"Eu to falando serio!", ela confirmou. "Eu aposto meu himen que hj vc não foge dele."

"Não faça isso. Eu já vivi o suficiente para saber que você não tem hímen mais, se é que me entende."

"E daí? Eu preciso ter pra apostar?"

"Vai cagar, Rebecca."

"É virgindade imaginária. To guardando ela pra vender pra um milionário."

Revirei os olhos, saindo da conversa e apagando a tela sem sequer respondê-la.

Rebecca era uma criatura tão aleatória que realmente fazia sentido ela estar se dando tão bem com os russos. Perguntei-me o quão oprimido Luci estaria se sentindo lá no meio daquele bullying todo, logo pensando na Lua endoidando com os tanquinhos e Michelle, agarrada no Daniel, fingindo que não estava interessada em nada (destaque para o "fingindo").

Aquele povo era mesmo muito tonto, mas pensar no quão bestas eles eram ao menos me distraía. Eu ri, fiquei bravo, fiquei com sono e quase fui abusado sexualmente, mas nada de Anderson, Érica, Liana ou suco de caju tomando muito espaço da minha cabeça. Ou seja, estava quase tudo bem. Isso até eu sentar ali fora e começar a pensar de novo nisso.

Bufei para mim mesmo. Fiquei passando o dedo pelos rasgos da calça para abri-los um pouco mais, cantando baixinho junto com a música e vendo que já era hora de lavar os tênis. Aquela música era estranha e grudenta, como tudo o que eu gostava. É, começando com aquela pessoa que começa com "Polli" e termina com "ânus".

— It's getting, it's getting, it's getting hazier — falando sozinho, cantei, esticando uma linha do jeans até rompê-la e deixando uma parte da minha coxa que nunca vira sol ainda mais à mostra. — She never, she never, she never comes back...

Lembrei-me de que havia deixado a minha blusa lá dentro, em cima do banco, então levantei-me por estar sentindo um pouco de frio. Eu sabia que vestiria a blusa e sentiria calor de novo, mas ficar sem ela me incomodava de alguma forma. Estava só com uma camiseta vermelha normal debaixo dela, aonde se lia XXXV escrito de um jeito bem frescurento, como a capa do 35XXXV.

Era mais ou menos chegado naquele álbum. Niche Syndrome grudava bem mais, apesar de não ter Good Goodbye ou Suddenly.

Distraía-me com isso e com o frio quando me levantei e puxei a calça para cima, olhando para o chão e dando de cara com creepers de bolinhas parados diante dos meus All Stars pretos.

— Oi, cremoso. Tudo bem?

Rebecca deu um sorrisão quando eu dei de cara com ela logo na minha frente, fazendo eu me assustar com aquela criatura colorida aparecendo ali de uma hora para outra.

— Não apareça do nada! — reclamei, colocando a mão no peito e sentindo meu coração dançando funk. — Que coisa horrorosa. De onde você saiu?

— Eu vim te ver, ué!

Ela empurrou o cabelo para trás da orelha, aproximando-se e colocando as mãos nos meus ombros com um sorriso enorme. Foi me empurrando mais ou menos um metro até parar, continuando com as mãos ali e me encarando. Rebecca tinha olhos realmente enormes. E não, eu não estou dizendo isso porque sou chinês.

Não, eu não vou me autointitular "japonês", ainda que todo mundo fique me chamando de japa só para me ver irritado.

Ok, "asiático".

— Se a montanha não vai até Maomé — Rebecca começou —, então Maomé...

— Que se dane Maomé — eu cortei, erguendo uma sobrancelha. Tirei seus braços de cima de mim e desviei de Rebecca em meu caminho, fazendo uma curvinha e indo em direção à porta. — Eu já estava entrando.

Ela fez bico, balançando negativamente a cabeça, vindo se enfiar na minha frente de novo e olhando feio para mim. Fiz uma careta e virei a cara, tentando andar outra vez e tendo meu caminhar interrompido logo em seguida.

— Não! — Rebecca brigou, grudando a mão no meu pulso. — Agora que eu já saí, vamos ficar aqui. Eu já estava querendo falar contigo, afinal.

A ideia somente fez a minha cara fechar-se mais ainda. O corte químico que ela sofrera em certas partes do cabelo provavelmente seria por estar ficando careca de tanto saber que eu não queria abrir a boca para falar sobre aquilo.

— Agora não, Rebecca. — Virei a cara outra vez. — Estou com dor de cabeça.

— Agora sim, princeso! — Ela puxou-me com mais força, arrastando-me de volta para o lugar aonde eu estava sentado e sentando-se ali.

Encostando-se à parede, passou as mãos em cima das coxas para abaixar a roupa e então deu umas batidinhas ao lado de onde estava.

— Senta aí logo, vai. Você não vai fugir pra sempre, tampinha.

Ela estendeu o braço para mim e eu, contrariado, peguei a mão, sentando-me com puro descontentamento estampado na cara e cruzando os braços. Rebecca não soltou a minha mão ainda assim, mas isso não me incomodou. Eu e ela éramos assim um com o outro, afinal. Isso não significava que ela queria alguma coisa — ainda que, àquela altura, realmente quisesse.

— Eu me lembro de você triste naquele dia — Rebecca disse simplesmente, ainda ocupada em sumir com as dobras da roupa e com um sorrisinho comum no rosto. — Por causa da sua mãe e tudo mais. Você não me contou direito ainda o que aconteceu, então, se quiser me dizer, eu vou ouvir. Eu percebo quando você tá mal e sei que isso está te incomodando. Está me incomodando também, aliás.

Eu encolhi os joelhos e coloquei a cabeça sobre eles, olhando de canto para ela, que continuava com um sorriso e o que sobrara de suas sobrancelhas lá no alto. Havia feito um rabinho de cavalo extremamente simpático nos cabelos, que ficara bem torto e estava enfeitado com um laço rosa que tinha um globo ocular azul e brilhante no meio.

Rebecca era uma criaturinha estranha com jeito de Harajuku.

Forcei um sorriso e ela levantou nossas mãos, balançando-as para lá e para cá.

— Obrigado, cara de bolacha — falei. — Eu te devo essa e ficarei devendo para sempre, porque eu não sirvo para escutar desabafo dos outros.

Rebecca estreitou os olhos e sorriu, agora juntando os lábios. Respirei fundo e olhei para a rua.

Aquela cena, por algum motivo, lembrava-me de Liana e eu sentados na rua todos os dias. Pensei no dia em que eu, sentado exatamente da mesma forma que estava naquele momento, simplesmente virara a cara para o lado e a beijara sem mais nem menos. Lembrei do tamanho dos olhos assustados dela me olhando enquanto eu fazia isso e no quão paralisada estava.

Eu odiava me arrepender das coisas, mas algo sempre me cutucava por dentro quando eu me lembrava disso. Tinha sido muito, muito, muito errado beijar aquela menina. Mais errado do que muitas coisas que eu já tinha feito na minha vida.

Não devia tê-la beijado e ponto final, não importando o tanto de vezes em que eu me sentira absurdamente tentado a agarrá-la, mas agora já tinha sido feito e foda-se. Fechei os olhos, respirando fundo.

Foco, Alexander.

Arrepender-se é só para coisas que você não fez.

— Eu queria poder dizer "não precisa contar se não quiser" — Rebecca disse —, mas, desculpe, eu quero saber, então precisa. Tudo sobre você me interessa, Lexy. Você é meu melhor amigo.

— Não, relaxa. Não tem problema. — Massageei a fronte, colocando o cabelo atrás da orelha em seguida. — Tô nem pensando nisso. Vou contar, sim. Sobre minha mãe, não é?

— É! — Ela abriu um sorriso de novo. — E, antes que você ache de novo que escapará, é pra falar se tá apaixonado também, e por quem! Pensa que eu me esqueci, é?

Eu torci o canto dos lábios num sorriso torto e desanimado. Se fosse só para falar da minha mãe e do bundão do Anderson, seria realmente fácil demais. Ela queria era arrancar fofocas minhas de todas as formas.

Já sabendo que daquela vez não tinha escapatória, eu fui e botei logo para fora tudo o que queria ter falado pessoalmente para a minha família e ela escutou tudo quietinha. Foi mais apenas como repetir o que eu já havia dito no dia do ponto de ônibus, só que com mais detalhes e mais palavrões. No fim, ela só disse vários "vixi" e "eita".

— Pelo menos seu avô já tá morto e agora não tem ninguém pra te bater, né? — ela, depois de um tempo, disse isso sorrindo, como se fosse realmente algo muito bom que havia acontecido. É, não era lá muito ruim, afinal (ui, Alex, seu insensível!). — Isso é ótimo! Agora você só precisa ignorar a mamãe e o Andy até ela pagar a sua faculdade e você se formar.

— Obrigado, cara de bolacha — agora sendo sarcástico, repeti. — Tô bem melhor agora. Nem saí do segundo ano e você já está falando para eu terminar logo a faculdade, muito obrigado mesmo.

Rebecca mordeu os lábios, rindo de novo em seguida.

— Não foi nada, darling.

— Enfim — eu disse, querendo despistá-la —, vamos entrar, sim?

— O quê? Não, não. — Já me levantava, mas Rebecca agarrou meu braço e me puxou pela segunda vez, fazendo eu bater a bunda no chão. — Vamos, ainda tem muita coisa pra você falar! E muita coisa para eu falar, também! Ou você acha que eu fiquei na seca enquanto você sumiu?

Olhei desolado para ela, franzindo as sobrancelhas da forma mais triste que pude. Abaixei a cabeça, abracei os joelhos de novo e olhei para ela pelo emaranhado preto e zoado que era o meu cabelo.

— Ah, não fode, Rebeeecca...

— Fodo sim!

— Por onde eu vou começar, então?

— Primeiro diga se está querendo me pegar ou não, porque eu estou me perguntando isso há séculos.

Eu não pude evitar rir naquela hora, mas acabei me sentindo meio mal depois. Nem um pouco direta, ela era.

— Querer eu quero, cara, você não entendeu ainda? — expliquei ainda meio rindo. — Mas eu não farei e não estiver gostando de você.

— Oh — ela soltou um muxoxo, fazendo beicinho —, e você está?

— Não estou, desculpa.

Rebecca fechou a cara, cruzando os braços e olhando para a rua.

— Vagabundo você, hein.

— Para com isso! — Dei risada, balançando a cabeça e empurrando-a de lado. — Eu ficaria com você se nós estivéssemos nos gostando, mas eu não tenho como fazer isso se essa coisa não está acontecendo. Você sabe que eu não curto, ainda que...

— Quem disse que eu não tô gostando de você? — ela indagou brava. — Eu estou quase, tá bom? Tô me esforçando pra isso, mas você nem pra me deixar te beijar! Ninguém resiste quando eu vou e beijo. Quem é a vagabunda de quem você gosta agora, hein? Me conta se ela é tudo isso, mesmo. Como ela é?

Eu olhei-a ainda continuando a rir, mas parei depois. Engraçado o fato de ela ter se esquecido de novo que eu não gostava só de meninas, mas não comentei isso. Rebecca ficou me olhando como se esperasse alguma resposta, porém nem mesmo eu a tinha.

— Sei lá, ela é boazinha... Pera, você quis dizer fisicamente? — eu perguntei de volta depois de algum tempinho, já vendo que não conseguiria uma resposta de sua parte. — Você diz... Cara, cabelo, corpo?

— Também — ela respondeu, cutucando o canto das unhas com os dentes e me olhando de canto com os olhões verdes. — Ela tem que ser bem bonita para você preferi-la a mim, não é? Então explique. Digo, descreva.

Olhei para cima, morto de impaciência e pensando no que eu diria a ela. Eu não me interessava tanto assim pelas pessoas de quem Rebecca gostava, então não conseguia entender ao certo o motivo de tanto interesse de sua parte. Não era como se tivesse ciúmes ou coisa assim. Aquilo tudo de estar querendo me pegar ou gostando de mim era gracinha, nem era sério.

Encostei a cabeça na parede, já perdendo a noção de quantas vezes bufara naquele mesmo dia e encarando o céu todo pretão com umas pintinhas brancas de estrelas.

Eu gostava pra caralho de estrelas. Tipo, muito, muito e muito.

Meus cordões sempre tinham pingentes nos formatos delas.

E não, eu não vou dar uma de apaixonadinho clichê e começar a comparar a Liana com uma estrela — por parecer distante e eu senti-la por perto mesmo assim, você sabe. Muito menos por ela ser muito brilhante e clara pra caramba ao meu lado, claro. E por ela ser super bonitinha e eu sentir vontade de espalhá-la para todo lado ou carregá-la junto comigo, no peito, quem sabe perto do coração? Não, nunca, jamais.

Tá, eu acabei de fazer isso.

— Que cara de estúpido, meu Deus, isso me incomoda — Rebecca resmungou, interrompendo a minha tentativa de pensar e olhando feio para mim. — Você realmente gosta dela, não é?

Encarei-a com os olhos meio tortos, enlarguecendo as narinas e fechando a cara.

"Você não vai me obrigar a dizer isso."

Não apenas a regra do "não fico nervoso nunca" deixava de aplicar-se agora; a "não me envergonho em momento algum" também, definitivamente. Era lógico e terrível o fato de sim, eu me envergonhar! Em momentos totalmente nada a ver, claro, mas me envergonhava. Ficara menos envergonhado na minha primeira transa com aquela garota do que diante daquele olhar toscamente interessado da Rebecca.

Era certeza que eu estava vermelho, certeza absoluta. E certeza que aquela vaca já estava tirando conclusões apenas disso, pela cara ainda mais desconfiada que ela fez.

"Não faça com que eu me saia ainda pior em tentar disfarçar essa maldita vergonha."

— Cala essa boca, Rebecca.

— Só queria, antes de tudo, ouvir isso da sua boca. — Ela não estava sorrindo. Estava séria, olhando diretamente para a minha cara. E era realmente raro vê-la assim quando não estava brava. — Lexy. Você ama essa menina?

A pergunta repentina ressoou como um chute no saco mil vezes mais doloroso do que a anterior.

— Q...Que merda de pergunta é essa?

Indignado, eu abri outra vez a boca para respondê-la com algo melhor do que aquilo, porém fechei-a tão rápido quanto abri. Quase fiquei olhando-a com cara de idiota, deixando claro que precisara pensar antes de responder, mas me apressei em arrumar uma resposta.

— N-não, ué. — Encarei sério um canto, sendo obrigado a ter o rosto de bolacha Trakinas dela se aproximando curiosa e emburradamente do meu. Empurrei-a de lado, dessa vez com força (e não vem pro meu lado reclamar, ela me estapeava o tempo todo). — Velho...! Sai de perto!

— Você ama ela? — Rebecca insistiu, tirando a minha mão de seu rosto e fechando a cara. — Você tem a obrigação de me dizer, mas que droga! Como eu poderei opinar?

— Eu não quero opiniões! Para começar, eu sequer quero te dizer algo! — respondi irritado, recuando o máximo que podia para ficar longe do rosto dela. — Não é por sermos próximos que eu sou obrigado a falar isso na sua cara! Além disso, eu não a amo, cara. Se eu realmente o fizesse, eu jamais teri—

A cara que Rebecca usou para olhar para me olhar interrompeu totalmente o que eu estava prestes a dizer. Eu a conhecia bem demais para saber há muito tempo que já havia ficado puta comigo.

Ela afastou-se de mim e suspirou de um jeito grosso, olhando para cima e esticando as pernas.

— Você a ama ou não? — Rebecca persistiu pela milésima vez. — Eu quero saber. Eu tenho interesse nisso, Alexander.

— Ah, vai me chamar de Alexander, então? — Fiz bico. — Você não tem que ter interesse em nada, menina.

Rebecca olhou esnobe para mim.

— Olha, querido, eu preciso saber se o que tá acontecendo entre vocês é forte o suficiente para eu não poder estragar tudo.

Odiando-a mais que nunca, encarei-a e torci os lábios, contrariado.

Odiava a mania dela de me perguntar coisas das quais sequer eu sabia direito a resposta.

Odiava simplesmente o fato de ela estar ali quando eu desejava, do fundo do meu coração, que estivesse em Marte ao invés de logo do meu lado e me enchendo tanto o saco.

Se eu amava Liana? Que tipo de pergunta era essa? Com o que ela esperava que, novamente, eu respondesse?

Eu não podia repetir que não a amava por estar, atualmente, machucando-a tanto. Eu não precisava colocar uma pessoa num pedestal apenas por amá-la — ainda que, agindo da forma que eu agia por Liana e sendo cruel com ela, eu não tivesse o intuito apenas de vê-la péssima.

Eu queria, ainda que talvez eu não fosse capaz disso um dia, vê-la bem. Nem que fosse apenas imaginá-la bem, já que nós provavelmente sumiríamos totalmente da vida um do outro em pouco mais ou pouco menos de um ano e meio.

Sim, eu tinha certeza de que nós não nos veríamos mais após o fim do ensino médio — ao menos se tivéssemos sorte, eu sei. Eu não pretendia ficar em Sorocaba para sempre, afinal. Além de Liana, não havia realmente nada lá que fosse do meu interesse.

Eu gostava da capital.

Eu vivera praticamente toda a minha vida lá e, caso fosse fazer uma faculdade, eu queria fazer por ali ou pela região. Caso fosse fazer, claro. Na melhor ou pior das hipóteses, eu acabaria como noventa e nove por cento dos meus parentes, trancado o dia inteiro em meio a uma loja de um e noventa e nove, passando calor, escutando cliente chato reclamando e primos xingando-os e rindo deles em chinês para lá e para cá.

Já o futuro da Liana... Eu sinceramente não tinha a menor das ideias sobre ele.

Eu não sabia nem um pouco do que ela iria fazer de sua própria vida — se eu mal sabia da minha, como saberia da dela? Polliana dizia que não era boa em nada e que procurava nem pensar nisso para não sentir-se mal, mas não era verdade, sério. É claro que ela era boa em algo, ainda que visse seus talentos como coisinhas banais, como "isso todo mundo faz".

Eu morria de vontade de começar a chacoalhar uma cadeira e gritar "mentira", "mentira", "mentira" quando aquela idiota dizia isso.

Eu nunca conseguiria fazer um desenho tão foda como os que ela fazia, com certeza. Liana desenhava realmente muito bem — sabe o que é você sofrer para fazer um risco certinho na aula de arte e o colega do lado desenhar uma fucking Torre Eiffel sem sofrer nem um pouquinho? Sem falar que ela era compreensiva demais para alguém comum e dava uns conselhos do caramba, metendo-se nos problemas que não eram dela e se virando muito bem para tentar resolvê-los. Ela realmente tinha talento para essas coisas e muitas outras, certeza.

Bom, até então ela era tudo isso.

Até então.

Era uma merda pensar assim, mas era esse o modo certo de falar de como a Liana que eu conhecera e de quem eu gostava era.

Prosseguiria gentil depois de tudo, prosseguiria tentando resolver a vida de todo mundo sem ligar para a sua própria? Muito provavelmente não, eu já falei mil vezes. Isso era e não era o que eu queria para ela, mas agora, provavelmente, já estava definido. E era óbvio que era culpa minha, apenas não sendo mais óbvio o quanto isso me influenciava.

Doía, incomodava e machucava muito mais do que seria possível dizer por aqui.

Só eu sabia o quão ruim era tentar dormir, tomar banho ou fazer qualquer porcaria de coisa sem tirá-la da minha cabeça. Rir e tentar esquecer-me de tudo com aquilo martelando na minha cabeça, jogando na minha cara o quão cruel eu estava sendo de tentar me divertir enquanto ela, provavelmente, ficava trancada no quarto e não fazia mais porra nenhuma de sua vida. Isso era uma droga, de verdade.

Doía, mesmo, muito mais do que qualquer coisa que eu já tivesse sentido antes. Ela exercia sobre mim algo que eu não sabia controlar. Era terrível, me consumia por dentro. Não havia modo de eu não me preocupar e não sofrer por conta disso.

E, no fim de tudo, eu ainda não havia sequer parado para pensar se aquilo era amá-la ou não.

Se eu estava me ferrando e me machucando imensamente por isso e continuando a fazê-lo, provavelmente era. Com a indagação de Rebecca, a confirmação chegara avassaladora como um terremoto.

Realmente havia algo de muito errado comigo.

— Não sei, Rebecca. — Eu parecia um gato acuado falando aquilo. Cocei a nuca, passando os dedos pelos cabelos e agarrando-os com não muita força enquanto olhava pro chão feito um puta covarde. — Eu preciso de um tempo para pensar nisso direito antes de te responder. Foi mal, tá bom? Não posso te inventar uma resposta para isso agora, só para fugir.

Rebecca cruzou irritada os braços, fazendo bico de novo e olhando para mim.

— Tá bom. — Ela forçou um sorriso cínico, estreitando os olhos. — E por que não a ama, então? Ela é tão bonita que você até se envergonha de dizer isso, já que ela provavelmente não tá nem aí pra você ou te rejeitou de cara?

Revirei os olhos, bufando, cruzando os braços junto com ela e relaxando a posição do corpo. Não devia, mas, por algum motivo, acabei por me alegrar um pouco com Rebecca arrumando treta. Aquilo me distrairia de novo — é, lá ia Alexander feito uma besta tentar esquecer tudo outra vez — e, quem sabe, o dia acabaria bem. Sorri de canto, em segredo. Ela iria querer me estapear caso me visse rindo naquela hora.

— Você tá tirando, Rebecca? Achei que me conhecesse — resmunguei, desfazendo o sorriso e olhando desafiador para ela. — Você acha realmente que eu me envergonharia de dizer que gosto de alguém só porque a pessoa é, sei lá, bonita demais para mim? Pelo amor. Você sequer entende o jeito como penso.

Rebecca mexeu a mandíbula, erguendo com desdém as sobrancelhas e fazendo o olhar passear pelo chão.

— Não entendo mesmo — ela disse, incomodando-me com o que falara em seguida e enrolando um pedaço rosa do cabelo. — Descreva-a logo.

Era muito insistente. Muito insistente e muito chata.

Derrotado outra vez, encostei a cabeça de novo na parede e olhei pra cima. Por que a aparência da menina seria importante para a Rebecca? Fala sério. Polliana era mesmo bonitinha, mas, além de Rebecca também ser, eu não iria ligar para a aparência da Liana o suficiente para levar isso em conta quando fosse pensar em gostar dela.

Rebecca era chata pra caralho.

— Ela é grandona e bem branca, cheia de sardas e manchinhas e com corpo daquelas modelos de roupa caras e feias — comecei a dizer, olhando ainda para o céu e tentando enxergar a cara da Liana lá. — E é loira, mas não faz o tipo de loira cabeluda, com corpão e rosto de capa de revista, sei lá. É só isso. Posso vazar agora?

Rebecca franziu o nariz, fazendo cara de desconfiada, e botou a mão no rosto.

— Estou imaginando algo errado e bizarro para não pensar em outra coisa.

— Ah, para — reclamei. — Ela não é nem um pouco feia, só não é muito no...

— Branca, cheia de manchas, comprida e loira — Rebecca interrompeu pensativa. — Eu imaginei uma banana com essa droga de descrição, Alex.

Eu quis me impedir de rir, mas dar uma gargalhada foi inevitável. Ela continuou brava, olhando-me de canto até eu parar de rir. Não devo ter rido normalmente, devo ter gritado.

Liana era mesmo banana, ao menos no sentido psicológico da coisa.

Primeiro Pollianta, depois Polliânus e, agora, Polliana Banana.

Eu não estava nem um pouco a fim de saber aonde esses apelidos a nivel Lincoln iriam parar.

— Quem é você e por que está rindo de algo idiota que eu disse? — Rebecca indagou ainda irritada. — Cruz credo, Alex!

— Isso não foi apenas idiota, isso foi muito idiota! — eu disse, incomodado com ela ter dado uma de Analu e questionado a minha risada. — Caralho, se eu vê-la outra vez, como eu vou olhá-la sem me lembrar de uma banana?

Finalmente, ela encolheu os ombros e soltou uma de suas risadonas horrorosas.

— Há! — aparentemente realizada, ela exclamou e enfiou o dedo no meu peito. — Destruí seu amor por ela.

— Não... — Franzi as sobrancelhas e sorri de canto. — Ela não parece uma banana. Sei lá, ela lembra... outra coisa. Tipo o Piu-Piu.

A risada de Rebecca desapareceu e ela agora tornou-se confusa. Super confusa.

Talvez por ter ido na onda da banana e pensado nas Bananas de Pijama, eu me lembraria de outro desenho, mas nem pensei no Piu-Piu por causa disso.

— O Piu-Piu? — perguntou. — Espero que seja naquela forma monstra que dava medo quando eu era criança, porque ele é fofinho demais.

— Não, na forma normal, bonitinha mesmo — falei rindo. — Eu sei que é muito idiota, mas um dia eu pensei nisso e me achei super idiota, mas com o que você disse eu já nem me envergonho mais de contar.

Ela me olhou com cara de Chloe agora, com os lábios separados e rosto de "eu, hein".

— Isso foi estupidamente fofo, Alexander, e eu estou me sentindo culpada por ter pensado em você como o Frajola agora. — Já num tão desgastado ato, Rebecca revirou os olhos. — Tá, prossiga com a descrição. Eu sei que você não é cem por cento hétero, mas não quero continuar te imaginando apaixonado por uma banana.

Polliana como Piu-Piu e eu como Frajola?

Se Rebecca sentiu-se estúpida pensando isso, eu me senti ainda pior. E o problema é que, estranhamente, quase se encaixava. Quase.

"Eu tô na merda, mesmo."

Tentei imaginar mais algo para dizer na descrição da Liana. Eu teria mil coisas para ficar falando da aparência dela, mas não estava muito a fim de falar tudo para ela. Ainda sabendo que Rebecca só queria ouvir que Lia era feia e que ela era cem mil vezes melhor, eu tentei prosseguir.

— Tá, eu... vou falar do rosto.

— Fale, estou esperando.

— O nariz dela é tão arrebitado que parece que lhe deram uma martelada — por mais estranho que pareça, foi isso que eu disse, já mudando o foco da visão de Rebecca para o céu outra vez. — Tá, não é tanto, mas é bem erguidinho. Já a boca é meio cheia, sempre toda rosa porque ela fica mordendo o tempo inteiro. Os olhos são de um azul meio mais ou menos e um deles tem uma manchinha meio marrom, acho que é o esquerdo. Eu falei do cabelo, não falei?

— Falou — ela respondeu, agora desconfiada de novo —, mas continua, dá detalhes. Credo, ela tem cara de rica.

— Não existe "cara de rica."

— Existe sim e ela tem. Você está querendo dar um golpe nessa loira tonta aí que eu sei, Lex. Não venha disfarçar.

Eu encolhi os ombros, começando a rir e não encontrando coisa alguma para dizer.

— Ela só não é mais pobre do que eu, Rebecca!

— Ah, sei! Você não é pobre, não!

— Não muito, mas ela não é rica!

— Por que você não para de defender essa high society e fala logo da porcaria do cabelo dela?

Eu parei de rir, fazendo cara de morto, e ela ficou esperando.

— Sei lá, ele é curto, tipo, bem curto. Menor que o seu, e ela pode pentear o quanto quiser, mas nunca vai ficar comportadinho assim... — Eu ia falando e colocando a mão na cabeça, tentando dar um exemplo de como era o maldito cabelo da menina, e a Rebecca ia fazendo que sim com a cabeça. — Faz umas ondonas bem grandes em cima, tipo aqui, e uma sempre cai em cima do olho, então eu só via a mancha marrom que ela tem no olho quando o cabelo não tava ali! Entendeu? Então.... É isso. É assim o cabelo. Um tsunami, só que numa mistura de tons meio amarelos que você olha, pensa "como ela fez isso?" e, no fim, percebe que não entendeu nada.

Eu abaixei o olhar da minha franja para olhar quem estava ao meu lado. Rebecca me olhou sem dizer nada, com o que restava de suas sobrancelhas bem franzido e a boca torta. Parecia desconfiada, confusa e brava ao mesmo tempo, com a mão no queixo e a unha erguendo o nariz. Na verdade, parecia era uma porquinha.

— Que coisa horrorosa e bizarramente linda.

— Não é?

— Se ela não for oxigenada que nem o Lincoln, então...

— Não é, não.

— Então é familiar.

Ela entortou a cara e deu de ombros, quase como se fosse possível ler "só não é melhor que eu" em sua testa.

Familiar?

— Então, é isso. — Dei de ombros também. — E ela se veste numa mistura de swag, Harry Styles e aqueles coreanos dançantes que você ama.

Rebecca ficou me olhando por uns segundos antes de dizer algo, estando com uma cara absurdamente estranha. Qual era a dela naquele dia? Uma hora, ficava brava; outra hora, ria da própria besteira e então, por fim, vinha ficar brava de novo. Cruzes.

Parecia até eu.

— Como é o nome dessa guria? — Ela fechou a cara, perguntando aquilo como se ignorasse o detalhe que eu havia acabado de adicionar. — Não é possível. Eu tô pensando merda de novo.

— Não é para pensar em bananas de novo, garota. Pra que você quer o nome? — eu perguntei de volta, estranhando ela ter falado meu nome todo. — Não tem nada além de fotos de cachorrinhos no Facebook dela, não adianta tentar stalkear.

— Não é pra isso. — Rebecca tirou a mão do rosto, passando ela pelos cabelos e empurrando tudo para trás.— É porque, se é a pessoa que eu tô pensando, eu conheço.

Eu ergui uma sobrancelha e olhei para ela sem ter o que dizer.

Rebecca e a Liana não tinham como se conhecer. Não somente pela distância absurda, Liana nem usava internet o suficiente para fazer amizades por ali. Ela era uma porta usando qualquer tipo de tecnologia.

E, mesmo que usasse, Liana não se parecia nem com o tipo de gente que adiciona pessoas que não conhece, cara.

Rebecca e Liana?

Até parece.

— Você não conhece ela — eu respondi de cara feia. — O nome dela é Polliana e o sobrenome é algo muito chique que, mesmo que eu te diga, você não vai reconhecer.

Rebecca pareceu relaxar quando escutou aquilo e, admito, eu também.

— Carai, doido. Me assusta assim não. — Ela deu um tapa na minha testa, suspirando em seguida. — A que eu conheço é Elisana, caramba, quase achei que fosse. Parece essa daí que tu falou.

Torci a cara, vendo-a levantar-se e começar a bater na bunda para limpar ali. Rebecca errava para caramba o nome de todo mundo, como eu já disse, então eu me perguntava se o nome da tal da menina era Elisana mesmo ou, sei lá, Eliana ou Liana mesmo.

Se fosse, puta merda.

E devia ser.

— Cara... Não é Liana?

— Não — ela respondeu ríspida. — É Elisana. Tá até salvo assim nos meus contatos, você acha que eu ia errar? Eu já passei dessa fase, você sabe.

Ela começou a passar a mão nos shorts folgados como se procurasse algo nos bolsos dali, depois passando a mão na camiseta e tirando o celular do meio dos peitos como se isso fosse normal. Minha mãe fazia isso para guardar dinheiro quando não queria esconder na lata de arroz para eu não pegar, mas o celular...?

Rebecca achou alguma coisa no celular e depois virou-o para mim, mostrando a lista de contatos do celular com um grande "Elisana" escrito em cima do número. Eu quase fechei os olhos tentando enxergar o número sob ele quando ela apagou a tela e guardou a mão rapidamente.

— Caralho, eu tava lendo, sua grossa — resmunguei irritado. — De qualquer forma, foi ela quem escreveu?

— Não, mas foi logo depois de eu pedir o número. Eu não confundiria o nome dela em menos de uma hora, seu chato.

— Rebecca, isso tá muito estranho.

Ela guardou o celular outra vez e eu me levantei, vendo-a por as mãos na cintura e ficar olhando para mim enquanto batia o pé. Rebecca estava puta comigo, mas eu não sabia o motivo, então não tinha que pedir desculpas ou coisa assim. Pedir desculpas por não ter feito nada? Eu posso ter aprendido muito com a Liana, mas não aprendi isso.

— Não tá estranho, não é ela e pronto. Não me irrite. — Ela virou as costas para mim depois de pegar meu braço. — Elas só são parecidas, aposto que a sua menina não tem nada a ver com a minha e a gente só tá viajando na maionese. Vem, vamos entrar.

Deixei-a puxar-me em direção à entrada do bar outra vez, perguntando-me se aquela tal Elisana seria real ou não. Eu não conseguia imaginar uma pessoa fisicamente tão parecida com a Liana, então estava procurando na minha cabeça maneiras de Rebecca conhecê-la, mas o sono provavelmente me privou bastante disso.

Nós entramos comigo em seu encalço e a mão dela segurava com força o meu braço, provavelmente me marcando com aquelas unhonas falsas cor-de-rosa, repletas de desenhos e horrorosas.

Os russos e os meus conhecidos ainda faziam bagunça quando entramos, tanto que eu quase não entendi nada quando Rebecca falou aquilo. Ela parecia estar falando mais consigo mesma do que comigo, de forma que aquilo era um sussurro, não uma fala de verdade.

— Você me assustou muito — ela havia dito séria. — Eu não sei o que eu faria se você e eu estivéssemos apaixonados pela mesma pessoa.

Decerto não era Polliana.

Não fazia muito o tipo de menina com jeito de Harajuku que Rebecca gostava.

🔥

As coisas não mudaram quando nós entramos outra vez. Rebecca esqueceu-se de que estava brava e foi rir com os outros, e eu me sentei de novo — agora de blusa — e fiquei no celular, agora escutando uma música da HEY-SMITH. Sequer prestava atenção no que tocava, tanto que me esquecera que música era depois de menos de um minuto escutando-a. Em silêncio, olhava a mesa cheia de copos seguindo as espirais da madeira com os olhos, brisando mais do que a Analu no dia em que a mãe dela recebia o pagamento.

Não dava para ouvir nada do que o povo ao meu redor falava, ainda mais por eles terem diminuído o tom depois de o pessoal do bar reclamar e boa parte das pessoas ter ido fazer baderna lá fora. Lincoln e uns três russos estavam lá dentro, mas a maioria das meninas havia ido para fora, menos a Xin, a Ania e a Rebecca. O resto tinha sumido e o Luci tinha passado mal e ido vomitar no banheiro, com a Pietra indo junto para cuidar dele. Ele estava chorando porque algum babaca foi lá chamá-lo de traveco e fazer showzinho, então não o deixaram entrar no banheiro masculino. Preferi não fazer nada sobre aquilo, mas admito que deu pena.

E, se estava tudo acontecendo daquele jeito num bar arrumadinho daqueles, é bom que você não queira nem ver como era nas festas.

Como se fosse um castigo por eu ter dito aquilo para a Rebecca naquela hora, minha cabeça agora estava doendo de verdade. Além disso, ter falado tanto de Liana entupira minha cabeça de caraminhola e eu já nem reparava mais no que estava fazendo ou na cara de morto que tinha naquele momento. Eu tinha rido, sim, e tinha achado até divertido o tal assunto da banana ou do Piu-Piu & Frajola. Mas, agora, sozinho, eu não conseguia pensar em qualquer coisa que fosse capaz de me fazer rir.

A bad tinha batido com força.

O celular vibrara mais umas duas vezes por conta das tais mensagens e, por tentar usar uma distração que não fosse olhar os meus amigos passando vergonha, eu as abri. Não havia nada de diferente nas primeiras. Eu me confundira tempos atrás, pois o desconhecido não havia mandado mais de trinta mensagens. Essas mais de trinta eram de gente que eu conhecia, segundo o que diziam nas mensagens, mas eu não tinha o número deles, portanto tudo aparecera como desconhecido e pronto. Lendo-as, eu já pensava que o tal desconhecido era alguém, na verdade, conhecido, mas não era.

O único desconhecido que me enviava mensagens só falara comigo umas dez vezes, todas em horários absurdos da madrugada. A primeira mensagem de texto era da última segunda e não fazia o menor sentido.

Eu não devia ter me sentido daquele jeito lendo a primeira. Meu coração, inquieto, palpitou dolorosamente e eu franzi as sobrancelhas.

"Perdão", a mensagem dizia simplesmente, "eu sei que é culpa minha."

Perdão?

Que viagem era aquela?

Fala sério, nenhuma pessoa iria me pedir perdão atualmente. Minha mãe raramente o fazia, já os outros quase nunca. Anderson nunca era sincero o suficiente em suas desculpas para eu considerá-las.

A única pessoa que eu sabia que magoara absurdamente recentemente era ela, mas eu sabia boa parte dos componentes de seu número. Pelo contrário, desconhecia totalmente aquele que me enviava mensagens.

Não tinha como ser ela.

Tentando desviar esse pensamento, eu passei para a próxima mensagem, que não era do mesmo dia.

"Você não me respondeu, mas essa não era mesmo a minha intenção quando eu disse isso. Eu não espero mais nada de você. O perdão que pedi é apenas por existir e estar te enviando isto agora, neste momento. Eu apenas não tenho para quem dizer e eu prefiro ter você me ignorando do que ele a me chamar de falsa, ou Angelina e meu pai querendo me levar a um psicólogo."

Eu sequer parei para pensar antes de passar para a próxima. Ainda mais do que antes, meu coração não apenas palpitou de forma dolorosa. Eu o senti pular de meu peito e rolar para o outro lado do bar, não fazendo nada para que isso fosse impedido.

"Tentar ser você", havia dito apenas. Agora, era quarta-feira. A pessoa, ou ela, parecia enviar uma ou duas mensagens — grandes, digamos — por dia. Então, uns cinco minutos depois, viera a continuação da mensagem: "não é fácil. Isso machuca. Eu estou chorando e ninguém sequer está vendo."

Às três da manhã de quinta, ela mandara outra. A única coisa que eu sentia eram os meus ossos gelando-se e uma onda fria percorrendo toda a corrente sanguínea. Eu não conseguia fazer mais nada além de deslizar verticalmente o dedo trêmulo na tela do celular.

Tinha de ser Liana, não havia como não ser.

Era ela.

E ela, naquela situação, havia sido ignorada por mim por quase uma semana. Com aqueles pensamentos terríveis e com tudo aquilo acontecendo à sua volta. Minha cabeça tentava o máximo possível se recusar a acreditar no que ali aparecia.

Aquele tipo de pensamento... todos sabem o que eles significam.

Eu sabia muito, muito bem. Bem o suficiente para me desesperar diante de tudo. E o que eu faria diante daquilo? Eu sequer havia lido todas as mensagens e pensado no que fazer, no que dizer, no que diabos pensar!

Eu só tinha de fazer alguma coisa. Interromper aquilo, aquela droga de mensagens horríveis que deviam estar sendo, realmente, a única forma dela de pedir socorro. Pelo que Liana estaria passando agora?

Que família ela teria e, se ela não fosse ruim, a ajudaria? Eu não tinha como fazer nada naquele momento, absolutamente nada, ainda que quisesse mais do que tudo e não conseguisse nem pensar direito por conta disso. Minha pura agonia saía de mim em forma de suor frio e um coração descompassado.

"Ela precisa de ajuda."

"Precisa."

"Que porra... está acontecendo?", eu pensei ao ler aquela mensagem seguinte que, surpreendentemente, era da mesma noite. "Céus! Quem diabos é Angelina?"

"Eu estou descontando o meu interior no meu exterior", era o que dizia, e eu não podia pensar em algo além de automutilação ao ler aquilo. Cada palavra lida soava na minha mente com a voz sussurrada e suave dela dizendo-a. "Foi... a melhor ideia que eu já tive nos últimos dias e eu estou realmente feliz por isso. Eu não posso te encher para sempre, afinal, então fique tranquilo como a Angelina está por eu ter ficado mais quieta recentemente; há outra saída para soltar o que eu estou sentindo. E as minhas lágrimas agora estão se misturando com o sangue dos meus cortes."

Eu senti um aperto absurdamente grande naquele momento. Como se pulassem em meu coração e então o passassem por um moedor de carne em seguida. Algo pior que isso.

A próxima era do outro dia. Madrugada. Quatro e vinte e dois.

"Eu ia servir o meu pai no jantar e ele viu o meu braço. Não está tudo bem, mas vai ficar em breve. Eu prometo, tá bom? Aguente só mais um pouco, do mesmo jeito que eu estou aguentando."

Até mesmo aquele jeito de falar confirmava que era ela.

Liana dizia muitos "tá bom?".

Aquilo apenas enterrou mais um milhão de perguntas na minha cabeça e um desespero inexplicável no meu peito. O pai da Liana... O que ele teria feito? Quem, aliás, seria ele? E o meu coração partia-se com a imagem de Liana sendo repreendida por conta de se cortar. Apenas imaginá-la se machucando assim me destruía totalmente.

A mente gritava: "Isso é culpa sua, está vendo? Era isso que você queria? Foi para isso que você fugiu?"

"Estou proibida de usar a internet e não tenho mais meu celular, pois o meu pai acha que há algo na internet que está me influenciando", ela dizia mais para a frente. "Pego o da Angelina toda noite. Não quero imaginar o que vai acontecer se ela descobrir isso."

Angelina... era irmã dela?

E o que ela faria diante de um celular emprestado? Leria as mensagens que Liana enviara e procuraria ajudá-la, ou seria como eu e apenas continuaria fazendo de tudo para piorar a vida da garota?

Eu estava tão paralisado diante de todas aquelas coisas que nada ao meu redor me influenciava mais. Perguntava-me que expressão de puro horror devia ter no rosto agora.

Era tudo culpa minha, sim, eu já sabia, mas agora... doía muito mais do que eu poderia imaginar antes. Ela devia ter superado, não entregado-se daquela forma. Era isso o que eu queria, era por isso que eu havia fugido! O que eu havia feito, como aquilo acabaria agora?

Já era domingo e sua última mensagem era de sexta-feira, ou seja, ela já interrompera o ciclo de mensagens toda noite. Eu me perguntava o que diabos acontecera. Se ela não houvesse aguentado, eu não sabia o que poderia fazer. Se eu já estava daquela forma apenas imaginando isso, provavelmente enlouqueceria.

Ela simplesmente... não podia tirar a própria vida.

Não por mim... Não por tão pouco.

"Liana, aonde você está?", eu digitei atropelando as palavras e implorando internamente por uma resposta. Não importava o que fosse... eu queria aquilo, um sinal de vida. Já estava tarde o suficiente para ela ter pego o celular, eu esperava. "Eu preciso falar com você. Por favor, responda. Eu estou falando muito sério."

Eu abaixei o celular e esfreguei os olhos com uma das mãos totalmente trêmulas, alheio à baderna e com uma música aleatória estourando os meus tímpanos. Eu arranquei os fones do ouvido e desconectei-os do celular puxando-os pelo fio com força, provavelmente estragando o interior deles por conta disso e não dando a menor atenção a esse fato.

Se eu conseguisse uma resposta, por mínima que fosse, eu jurava que eu faria algo. Eu prometia a mim mesmo. Eu só queria um sinal de vida, um sinal de que eu não havia matado ninguém, de que ela não havia ido embora. Não podia ter acontecido aquilo. Talvez, eu estivesse apenas sendo um idiota, jogando tudo fora e me desesperando por algo que não devia importar, mas eu não ligava para isso.

Eu só queria uma chance.

Por favor, apenas uma.

Se eu pudesse recomeçar, eu prometia não cometer os mesmos erros.

Se pudesse... reescrever tudo, não acabaria assim.

Por favor.

"Oi."

Meu coração vibrou com uma intensidade mil vezes mais forte que o meu celular naquele momento e eu cheguei a sentir meu estômago se embrulhar totalmente. Não, eu não podia infartar agora. Muito menos passar mal e vomitar.

Eu tinha a minha chance ali, sobre as minhas mãos oscilantes. Dentro de um celular caro que valia muito mais do que a minha cabeça vazia de coisas boas.

Mesmo que todo o meu esforço para mudá-la e protegê-la fosse pelo ralo, quase tudo já havia ido, de qualquer modo. E a vida dela, para mim, estava valendo muito mais do que apenas um pensamento escroto e até egoísta como esse. Eu faria de tudo. Definitivamente de tudo.

Eu não hesitaria.

"Eu preciso muito falar com você, por favor." Lutei contra minhas mãos e o teclado para dizê-lo. "Me dê apenas um minuto, eu preciso te ligar. Não tenho como te dizer tudo por mensagens. É muita coisa. É muito complicado."

"Eu estou na minha casa."

"Vá para fora, onde seu pai ou a irmã não possam ouvir. Na rua. Eu vou te ligar."

"Não me ligue."

"Polliana, por favor."

"Eu não quero escutar tudo outra vez. Eu me lembro de tudo, você não precisa repetir. Apenas me lembrar já o suficiente para chorar de novo, eu não quero ter a sua voz para ajudar nisso."

"Polliana, por favor, presta aten—"

Antes que eu sequer terminasse de digitar, uma mão enorme e tatuada tomou o celular de minhas mãos. Meu rosto desesperado apenas ficou mais evidente quando eu o ergui para ver Lincoln, risonho e vermelho como um demônio, praticamente deitado sobre a mesa e me encarando com olhos faiscantes.

— Oh, a nossa princesa está tão distraída que sequer está me ouvindo falar com ela! — Sua voz jamais soara mais estúpida e irritante. Eu não fui capaz de esboçar reação enquanto ele erguia o corpo, levantando a mão no ar e estreitando os olhos de bêbado para ler o que estava no celular. — Oh, o que há de tão interessante no seu celularzinho?

Ele... não podia ser capaz de fazer isso.

"Por que você quer tanto mais uma chance de me humilhar outra vez?" — ele recitou alegre. — Oh, você virou um bully, Alexia? O que anda fazendo com seus amiguinhos lá no interior?

Eu sequer tinha controle do meu corpo quando me levantei. A visão se embaçando denunciava que a minha pressão devia estar maluca.

Grande novidade.

Logo meu nariz sangraria e esse seria apenas mais um motivo para Lincoln me chamar de garota menstruada.

— Filho... da puta. Devolva, Lincoln. Eu não estou brincando com você.

Meus dedos torciam-se de ódio, tamanha a raiva que eu tivera ao vê-lo ali, não sabendo nada sobre o que acontecia e tentando me atrapalhar. Se ele enviasse alguma coisa errada para ela, por menor que fosse, eu—

— Oh, eu já sei o que responder! Espere um minuto! — Rindo como um demente, ele segurou o celular com as duas mãos, colocando-se a digitar. — "Porque você é escrota, eu não consigo me controlar diante dessas bostas que você fala! Risos, risos, risos."

Eu pus as minhas mãos na mesa, forçando as unhas contra a superfície dela. Ninguém dizia absolutamente nada e eu apenas escutava o meu coração batendo, minha mente gritando palavras absurdas e a risada ridícula do Lincoln.

Ainda se eu tivesse algo são se passando pela minha cabeça, eu tinha certeza de que não o escutaria.

Lincoln.

Eu não o perdoaria se aquelas brincadeiras ridículas atingissem esse ponto. Já eram anos demais com isso na cabeça para continuar apenas ignorando-o ou tentando esquecer, sem tomar atitude alguma.

A época em que eu não fazia nada além de ficar quieto e fingir não ligar já havia ido embora há muito, muito tempo.

— Lincoln — eu ouvi a voz de Xin Qian vindo da minha direita. — Devolva para ele, caralho.

— Estou quase acabando, espere! — ele disse contente, desviando o olhar por um minuto e dando um sorriso insano para mim. — Eu não sou acostumado a digitar nessa droga de celular caro, garoto. Vocês dois precisam ter um pouco mais de paciência comigo, sabiam? Eu sou velho e não sou acostumado com tecnologia.

Um sorriso dividido entre ele e Samuel.

Esse era o sorriso estúpido de Lincoln.

Era exatamente esse sorriso, sem tirar ou por. Correção: pondo. Pondo muita falta de vergonha na cara. Falta essa que eu compensaria daqui a pouco com um murro bem no meio dela.

Não apenas o sorriso deles se parecia. Lincoln e Samuel eram as criaturas que mais conseguiam me tirar do sério no mundo por motivos muito, mas muito parecidos.

E aquele sorriso, daquele momento, era um sorriso que, se perdurasse por mais alguns segundos, ganharia muitas e muitas janelas.

Então eu ouvi aquele barulho e ele pareceu surpreso. Era o celular vibrando em sua mão. E então ele olhou-o, fazendo cara de coitado e biquinho em seguida.

— "Por que você está falando isso para mim?" — Lincoln leu, colocando a mão no rosto de uma forma forçadamente meiga e depois olhando feio para mim. Estalou a língua negativamente. — Awn, coitada, Alexander. Você não presta, sabia? Por que foi chamar a menina de escrota?

Minha cabeça latejava. Eu mal sabia o que estava fazendo e o rosto dele perdia lentamente ainda mais as suas feições. Minha mente deixou claro para mim que era a última vez que eu tentava e eu fechei os olhos, sentindo-me totalmente zonzo e forçando ainda mais as mãos na mesa.

E então eu abri os olhos outra vez, encarando-o diretamente.

Ele digitava alegremente alguma coisa no celular.

— Devolva, Lincoln.

— Oh, não, eu não irei. —Seu olhar saiu da tela e pairou diretamente no meu. — O que você vai fazer, santinha?

Lincoln aproximou-se com o celular ainda na mão, que estendeu para cima outra vez. Ele curvou-se sobre a mesa repleta de copos de novo e me encarou diretamente, erguendo a sobrancelha escura e fazendo seu borrão de boca contorcer-se num sorriso.

— Me diga — pediu. — O que é que você vai fa—

Meu punho invadiu seu rosto na mesma velocidade em que seus dedos soltaram o meu celular.

A única coisa que eu ouvi foi um som de água e Rebecca abafando um gritinho. Nada além disso. Meus olhos se moveram automaticamente à procura do meu pertence enquanto a mão latejava e foi aquilo que eu vi, então.

Afundado num copo alto de bebida, soltando bolhas de ar que iam para a superfície até sumirem.

Sumirem junto com a minha noção do que eu estava fazendo ou do que pensava.

Eu apenas olhei irado para o borrão confuso que era o rosto idiota do Lincoln, mas não o atingi outra vez ou comecei a gritar horrores e a soltar o tanto de veneno que eu guardava há anos para ele. Eu apenas sentia o meu corpo doendo e a mente desfalecendo, como se eu fosse desmaiar ali no meio ou algo assim, mas eu não desmaiei. Por sorte, eu não desmaiei.

Ele parecia desnorteado e incrédulo. Perdera o equilíbrio com o soco e caíra pateticamente sobre a mesa, talvez por não estar esperando aquilo. E então, para tentar se levantar, ele apoiara as mãos em cima dela e o cotovelo empurrara o copo com meu celular em direção à beirada da mesa.

O ruído, agora, fora de vidro contra o chão.

Apenas afogar o meu celular não fora o suficiente, afinal. Ele precisava derrubá-lo no chão.

E então, dos meus passos firmes enquanto eu ia até a porta e saía, deixando para trás a porra do celular, aquele filho da puta e mais umas vinte pessoas para ficarem sem entender coisa alguma. Sequer eu entendia algo. Mas não, eu não me arrependia. Devo ter saído justamente para não soltar vários anos de ódio em forma de chutes em testículos alheios.

Com um vento absurdamente frio no meu rosto, braços nus por ter largado a blusa lá no bar e pedaços de perna à mostra por usar o tipo de calça que parece ser resultado de uma briga com dez gatos, eu precisei andar uns cem metros até realmente ter noção do que acontecera.

Eu só queria um pouco de uma porra de paz para tentar resolver tudo. Agora, que o desespero batia da pior forma possível e eu respondera às batidas, aquele vagabundo desgraçado do Lincoln derrubava a porta e a usava para me esbofetear.

Como eu poderia falar com a Liana agora? Eu não queria voltar lá, eu não pegaria meu celular outra vez — mesmo que eu fosse pegar, à essa altura não devia ter sobrado mais um mísero pedaço dele. Não sobrara, também, um esguio fio de esperança em mim. Nem uma gota. Uma partícula.

Por conta de uma provocação de merda e por Lincoln amar me ver puto da vida, meu único modo de falar com a Liana havia sido jogado no lixo e eu não fazia a menor ideia de como recuperar isso. As minhas chances de tentar reescrever a minha vida e a dela já não existiam mais. Não havia mais solução, eu nem mesmo tinha jeito de ir o mais rápido possível para Sorocaba e invadir a casa dela — ainda que, nisso tudo, vontade não me faltasse. Nunca me faltara.

E então, no meio do centro, totalmente sozinho e sem nenhuma solução passando pela cabeça, eu chorei. E eu chorei muito. Incontrolavelmente. Como se a caixa d'água inesgotável da Liana houvesse se teletransportado magicamente para dentro da minha cabeça e eu tivesse começado a usá-la sem sequer perceber.

Por conta dela, eu já chorara tantas e tantas vezes. Eu nunca havia chorado por sofrer por conta de alguém que não era da minha família nem nada, nunca chorara por alguém dessa forma. Por Lincoln, eu não chorara por medo de perdê-lo, por vergonha de mim mesmo ou por simplesmente me sentir perdido. Eu chorara porque ele era um filho da puta e, além de sofrer em casa por namorar um cara, eu também sofria fora por ele ser um desgraçado que só sabia ficar me enganando cada vez mais.

Eu enchia Liana justamente por não querer que ela ficasse se enganando do mesmo jeito que eu fazia, mas isso... não importa mais.

O fato de ele se envergonhar de ter algo comigo e me desprezar na frente dos outros já não influenciava em porra alguma. Eu nunca tinha feito nada errado para ele ter passado a agir assim comigo. Foi por isso que, quando era mais novo, eu chorei por conta dele uma vez. Uma única vez. E, depois disso, eu nunca mais sequer olhei para ele da mesma forma. Nunca aceitei as desculpas frequentes ou o modo dele de tentar me agarrar como se nada nunca houvesse acontecido.

Eu chorara por ele, mas, depois de Liana, eu só chorava por mim mesmo. Pelo que eu fazia, por tudo "meu" que a machucava e que, por isso, me machucava também. Cada vez por sentimentos piores e menos escapatórias surgindo. Sempre achando que aguentaria mais um pouco, que não faltava muito para eu esquecer e que tudo daria certo, mas então tendo a confirmação de que nada mudaria se eu apenas continuasse a fugir cada vez mais.

Eu queria realmente desistir. Eu não podia mais sustentar aquela pessoa que eu era antes.

O que me restava, agora, seria me desligar totalmente do meu orgulho e de quem eu fora para me concentrar no que eu seria dali para frente — não importando se eu a teria de novo ou não. Não era essa a minha intenção. Eu não a desejava mais como amiga ou como algo a mais.

Eu só desejava que ela se soltasse de mim o suficiente para seguir com a própria vida e se esquecer de tudo.

Eu queria reescrever uma história dela em que as atitudes egoístas de um Alexander não influenciassem em absolutamente mais nada.

Eu nunca poderia parar de chorar se não tentasse reescrever tudo.

Apenas... uma chance.

🔥

As estrelas chorarão
Tornando-me as trevas, eu não posso ver seus olhos
Na noite, eu estou sozinho, e silenciosamente decido parar de viver

"Por que você não quer encontrar uma razão?"
Eu não posso entender isso agora!
"Mesmo que você possa livrar-se de tudo?"
E o tempo acabou...

Eternidade? Fim? Essas são as provas de que algo está desaparecendo
Mesmo para mim, mesmo agora! Está tudo sendo em vão outra vez!

Quando acabar, eu nunca cairei no chão!
Está voltando para mim agora!
Não importa quantas vezes as mentiras se empilhem
Quando eu for embora, você sequer olhará em volta
Eu estou preso dentro de mim mesma agora!
E, mesmo depois disso tudo, você ainda continuará esperando pelo "eu" ininterruptível?

Apenas a luz da cidade se tornou um sinal de vida para mim
Enquanto eu ando, eu desejarei olhar e procurar para alcançar o objetivo da minha mente

"O que você quer se tornar no futuro?"
Não consigo encontrar a resposta agora
"Quanto tempo vai demorar? Seis anos?"
E o dia terminou...

Certezas? Destino? Você perguntou: "Você não conectou-se a algo ou coisa assim até agora?"
Eu me fechei completamente de tudo e todos, e, na frente dos meus olhos...

Quando acabar, eu nunca cairei no chão!
Está voltando para mim agora!
Não importa quantas vezes as mentiras se empilhem
Quando eu for embora, você sequer olhará em volta
Eu estou preso dentro de mim mesma agora!
E, mesmo depois disso tudo, você ainda continuará esperando pelo "eu" ininterruptível?

Tudo o que eu sei é que eu não sou você...
O eu de agora? O próximo você?
Diga-me o porquê de você ter se perdido
Você decidirá no fim
Eu estou julgando isso por mim mesmo
O eu de agora? O próximo você?
Peço-lhe: "Você ficará comigo?"

Eu estarei sempre com você, para sempre com você
Não há mais tempo! Até o dia em que eu chegar, dessa forma
Eu estarei sempre com você, para sempre com você
Mais uma vez! E, pouco antes do dia em que você surgir
Eu viverei mais uma vez
(-Shissou Flame-, MY FIRST STORY)


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Notas finais do capítulo

Aqui a fic da Marcella! :D
https://fanfiction.com.br/historia/613086/Lostitall

Beijos! Reviews, plzzzzz!
E créditos à Michelle, minha outra amiga, pelo "aposto meu hímen" UHSAHUSAHUSHUASHUAHUS