Defeitos de Fábrica escrita por Lorena Luíza


Capítulo 17
XVII. Um grupo de jovens cheios de ambição


Notas iniciais do capítulo

OI GENTE! :D
ESPERO QUE GOSTEM~
Tem crossover com uma fic que minha amiga Bells escreverá nesse capítulo! São as personagens Analu & Loe. Espero que gostem delas!



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A garagem da casa do Lincoln tinha cheiro de borracha, cigarro, tinta spray, graxa e, dependendo do humor dele e da Analu, um leve arominha de maconha também.

Era umas sete da noite e tinha gente para todos os lados quando eu entrei. A garagem estava meio escura e eu estava com Rebecca em meu encalço, fazendo dezenas de olhos, alguns cobertos por lentes de cores bizarras, erguerem-se em nossa direção. Havia criaturas espalhadas pelo chão, sentadas em pneus e de pé, encostadas à parede, separadas em panelinhas pelos quatro cantos da garagem espaçosa o suficiente para abrigar uns três carros.

Eu esperava encontrar bastante das pessoas que eu conhecia, mas isso foi meio triste, porque tinha muita gente que eu não conhecia ali. Parecia que só os integrantes da banda — tirando o Anderson, já que eu não estava nem um pouco a fim de chamar aquela coisa para vir comigo vê-los — e mais umas poucas pessoas haviam aparecido. Fora elas, tinha mais umas pessoas. Mas só aquelas estava tudo bem, de qualquer forma.

Minha prima foi a primeira a me cumprimentar. Estava sentada logo ao lado do Lincoln, que cutucava com a unha os adesivos da guitarra azul escura dela e estava sentado em cima de uma pilha razoavelmente alta de pneus, cantarolando alguma coisa. Os dois tocavam guitarra na IAL. Eu também o fazia, mas nem pensava em tentar tomar mais essa posição na banda.

Lincoln e ela eram muito bons nisso, antes de qualquer coisa. Eu estava bem gravando minhas coisas sozinho às vezes, mas não sabia tocar em conjunto com outras pessoas enquanto cantava. Para falar a verdade, só cantar já me era uma baita dificuldade, ainda mais na frente de quem eu não conhecia. Eu virava um bicho do mato, o que era mais um motivo para Lincoln viver me chamando de maricas e nós nunca termos nos gravado tocando em lugar nenhum. Eu travava pra caralho perto de outras pessoas, e talvez fosse por isso que eu me sentia bem melhor trancado no quarto, tocando violão ou guitarra e cantando para as paredes do que para um monte de gente que nunca vira na vida.

É, eu tô cada vez revelando mais o quão bundão eu às vezes sou. Queria me orgulhar de dizer "não fico nervoso em situação alguma", mas é, tem umas em que eu fico. Poucas. Mas fico.

— Yo — A Xin Qian disse apenas. A voz era bem rouca e ela falava baixo. Até nisso ela lembrava um pouco eu mesmo. — Long time no see.

Torci os lábios e acenei com a cabeça, dando uns dois passos para entrar um pouco mais. Engraçado como aquele meu povo — inclusive eu, às vezes — incluía palavras ou frases de outras línguas em seu vocabulário e nem percebia isso ao usá-las. Isso já era tão normal entre gente da minha idade que acho que eu era o único a reparar.

Escutei uns outros "oi" e "e aí" da parte de umas outras pessoas que eu nem identifiquei quem eram, respondendo todos da forma mais monossilábica possível. Quanto mais eu olhava para dentro, mais gente amontoada e com cara de animal selvagem eu via. Conhecia, com toda certeza, menos da metade.

Havia, no canto esquerdo e perto de umas caixas, uns sete adolescentes sentados no chão e, como todos os outros, olhando para mim. Não, não eram todos de aparência meio exótica que nem Lincoln, a Xin Qian, uns outros e eu. Mickey e Loe, as únicas pessoas que eu conhecia entre aquelas dali, estavam no meio.

Mickey era bem mais alto que a Loe, negro e dono de um black power inesquecivelmente magnífico. Eu conhecia ele fazia, tipo, muito tempo. O apelido não viera por ele ter algo que lembrasse o rato da Disney ou coisa assim; vinha por ele, todo comprido, magro e com aquele cabelão, lembrar muito um microfone. Ninguém nem pensou no fato de ele se chamar Michael quando falaram isso. Com os óculos, ainda, parecia ter saído de um comercial da Fanta.

Já a Loe era super baixa, meio branca e meio cheinha. Bonita. O cabelo bem curto era tingido de lilás e tinha as pontas prateadas, o que devia ter dado um trabalho caralhudo para fazer, talvez até mais do que a cabeleira toda azul clara e roxa da Xin. Além do cabelo, nada se destacava muito nela. A sua melhor amiga drogada, Analu, com seus dreads e roupas estereótipo de gente de humanas, era bem mais chamativa. Não tanto quanto a Xin Qian, mas era.

O resto das pessoas ao redor deles deviam ser seus amigos ou gente que o Mickey havia trazido. Pelo que a Rebecca havia dito quando eu fui à sua casa para chamá-la, havia um pouco de gente querendo me conhecer também por conta de ter visto a I AgaInst LiE — nome terrível, sim, e ainda por cima escrito dessa forma, mas isso é porque você não ouviu o som ainda — na internet ou coisa assim. Só que tipo, não tinha lá muito motivo para alguém querer me conhecer, mas se eles queriam, então tá. Eu não ia dizer "não". Nem tinham me perguntado se eu as queria conhecer, de qualquer modo.

Tinha uns quatro caras e três meninas, dois deles de cabelo meio chapado e elas com aquelas franjas bem 2009 de scene e círculos pretos de maquiagem nos olhos. Não achei nada deles e continuei andando. Pra mim, não me incomodando, a presença deles era bem "tanto faz". Olharam-me com uma cara torta e eu os encarei entediado em resposta, escutando gente conhecida me perguntando coisas aleatórias sobre como eu estava, motivos de ter aparecido e coisas do tipo e tentando respondê-las.

Teria ficado assim mesmo se uma das meninas, as do grupinho lá, não tivesse chamado a Rebecca e perguntado aquilo. Rebecca estava comigo, atropelando minhas palavras quando eu ia falar algo e com o braço agarrado no meu. Saltitava e jogava o cabelo para lá e para cá como se estivesse sob efeito de energéticos muito fortes, falando umas coisas estranhas do que ela vira em Sorocaba trezentos anos atrás. Parou quando a menina chegou, tendo se levantado de onde estava e vindo até nós dois.

— Então, cara, a gente veio para ver ele — a desconhecida ergueu uma das sobrancelhas que parecia ter sido feita só com lápis e colocou a mão na cintura, falando com a Rebecca e olhando para mim. — Tá, você trouxe uma japinha bem bonita. Mas cadê o tal do Alexander, o vocalista?

Eu arqueei a sobrancelha e a Rebecca deu um sorriso torto.

Em outro canto, estavam, como já falei, o Lincoln e a Xin Qian, junto com o irmão da Rebecca e a Pietra. Lincoln jogou a guitarra de lado assim que me viu, pulando de cima dos pneus e ignorando o meu gesto de "puta merda, não sai daí e continua longe de mim". O quão bonito ele continuava sendo não mudava em nada o sentimento de nojo que eu ainda nutria por aquele cara.

Parecia não descolorir os cabelos desde a última vez em que eu o vira, levando em conta o tamanho da raiz preta que estava em contraste com o restante esbranquiçado, e o sidecut demonstrava já ter desaparecido. Usava os mesmos piercings bridge entre os olhos, a mesma argola no septo e os alargadores aumentaram ligeiramente. Achei que a regata fosse com aquela estampa clichê de Jack Daniel's, mas estava escrito "Dolly Guaraná" quando olhei direito. Bem a cara dele mesmo. Talvez eu devesse começar a procurar tatuagens novas em seu braço nu, mas eu levaria muito tempo até fazer isso.

Lincoln não tinha o menor apego com o próprio corpo — mas não, não que eu achasse isso errado. Cada um tinha seu próprio corpo para fazer o que quisesse; não me incomodando com isso, para mim não importava de maneira alguma. Ele mesmo tatuava-se às vezes, além de sempre se embebedar em festas e acabar com várias tatuagens trash no braço esquerdo. Dentre todas elas, inclusive as normais e mais detalhadas, eu só gostava da maior delas, que era a face clichê de um husky siberiano mostrando os dentes e usando coleira de espinhos. Aquela sim, que ficava na lateral do pescoço, era foda.

Eu gostava de tatuagens, mas elas não me interessavam taaanto. Tinha poucas imagens de coisas que eu realmente achava que valiam a pena ter marcado na minha pele. Não era por questão de dor ou coisa assim que eu só tinha duas, nem muito por causa de dinheiro e afins. Era lindo e tinha dias em que eu realmente acordava com uma puta vontade de sofrer um pouco, mas sei lá, eu preferia mil vezes pendurar algo novo em algum canto da cara.

— Cara, você é louca? — Lincoln abriu um sorriso enorme, deixando à mostra o piercing no smile e fazendo pequenas fendas se abrirem nos cantos de seus lábios. Covinhas. Falsas, mas covinhas. Ele abriu o braço e passou-o por cima do meu ombro, tendo de se abaixar ligeiramente para fazê-lo. — Tá vendo esse pirralho? Ele, ele aqui. — Apontou para mim com o dedo tatuado. — Ele é o Alexander. Não parece, né? Mas então, alguém anda dizendo que vê os nossos vídeos, mas não viu porra nenhuma. Quem de vocês que quis vir, hein?

Eu olhei indiferente para os dois, escutando Rebecca rir como um porco. Eu ia para um lado, sentar-me perto da Analu, mas a Rebecca fincou as unhas no meu braço e eu olhei para ela com a cara mais horrorosa do mundo.

— Sério? Nossa, cara! — A garota colocou as mãos na boca, ignorando totalmente a indireta super direta do Lincoln e olhando surpresa para a minha cara. — Bem que eu estava estranhando que você não tem peito.

— E daí? Vocês ouviram, Ami, Yumi? — Lincoln respondeu por mim, olhando para Rebecca e eu e depois para Pietra, uma loira filha de russos do grupo, e provocando-a em seguida. — A Astrid também não tem e é fêmea. Isso é preconceito, ok?

A desconhecida deu risada, mas ela não tinha peito também. Continuei sem dizer nada, e já havia me livrado há tempos do braço da criatura escrota e falsa que era aquele Lincoln e da mão da Rebecca. Pietra, já sabendo que o apelido estúpido do Lincoln se referia a ela, tirou os olhos do celular apenas para mostrar o dedo do meio.

O cabelo dela era bem comprido, ralo e liso. Lincoln dizia que, para se parecer com a guria de Como Treinar Seu Dragão, ela só precisava vestir uma armadura e trançar o cabelo, mas na realidade ele chamava todo mundo por apelidos de desenhos animados mesmo sem fazer sentido. Aquilo irritava demais.

— Sério, já te disseram que você se parece demais com uma garota, fofo? — a menina que falara pouco atrás me perguntou, esticando o braço para passar a mão em cima da cabeça. — Parece demais! Olha só o seu narizinho.

Eu desviei sem o menor receio em deixá-la no vácuo, perguntando-me quantos anos aquela demônio devia achar que eu tinha. "Fofo." Fofo iria ser quando eu metesse a mão na cara dela.

— Acredita que nunca me disseram? — eu perguntei ironicamente em resposta, erguendo bem a sobrancelha e encarando-a para fazê-la perceber que me incomodava.

— Não pode ser, você é tão... fofuxinha! — Ela colocou a mão no rosto. O modo como falara deixara bem claro que os emoxinhos não haviam sido extintos até então. — Sério, você é lindo! Já te disseram que podia ser ulzzang?

Olhei de lado para a Rebecca, deixando claro no meu olhar que, mentalmente, lhe dizia "foi você que trouxe essa coisa para cá, sua desgraçada?".

— Que porra é ulzzang? — eu perguntei, virando a cara para a menina outra vez e me lembrando de já ter ouvido falar nisso alguma vez.

— Não é nada, Alex! — Rebecca encolheu os ombros e deu uma risadona sem graça, enlaçando o braço no da garota e puxando-a de volta para o canto de onde ela havia saído. — Vamos até ali, miga? Deixa eu te explicar umas coisinhas.

Lincoln, aproveitando-se do fato de a garota ter saído de perto, veio outra vez na minha direção, abrindo os braços e olhando-me contente como se esperasse alguma coisa. Passei debaixo da asa aberta e fui me sentar no lugar dele, fazendo-o virar-se indignado para mim. A única coisa que se passava pela minha cabeça era uma vontade horrenda de morrer. Sério, por que a Rebecca continuava com aquela mania de trazer gente sem avisar?

E o Lincoln era um cara chato, quase tanto quanto Anderson, com aquelas manias de ficar me abraçando como se eu o quisesse por perto. Ele fazia uma quantidade inimaginável de cagada e esperava que eu me esquecesse de tudo, sempre tendo como desculpa aquilo de "já faz muito tempo, eu era imaturo!". E ele sempre fora imaturo, continuava sendo e seria para sempre, certeza.

Nossas personalidades não tinham absolutamente nada a ver com a outra e eu era muito mais sério quando estávamos juntos, ainda que eu tivesse só catorze anos e ele já uns vinte. Era um puta idiota, sério, pensa num cara trouxa. Nunca cometi erro maior, mas não me arrependo. Não havia feito nada errado naquele tempo, afinal. O errado era ele.

Lincoln era um tipo estranho de pessoa, daquelas que são as mais risonhas e zoeiras do mundo até você tocar em sua ferida — ou nas das pessoas de quem ele gostava. Não era tipo a Rebecca. Sério, ele zoava demais, extrapolava até, ofendia todo mundo. Adorava fazer umas piadinhas e brincadeiras estúpidas com os outros, mas, na hora de brincarem com ele, ficava todo putinho.

Revirando os olhos com aqueles pensamentos, pela milésima vez tentei lembrar-me do motivo principal de estar ali e deixar de lado as coisas chatas da minha vida linda. Eu olhei para o lado e Xin Qian ergueu-se para beijar o meu rosto, mas eu não fiz muita questão de retribuir, e a Rebecca correu de um grupo para um outro noutro canto da garagem.

Era uma panelinha cheia de gurias que eu não conhecia, todas de visuais tão mais "doces" que nem pareciam fazer parte da paisagem dali. Amigas da Rebecca, lógico. Sei lá aonde ela arrumava tanta gente parecida consigo, de qualquer forma. Quando eu e ela andávamos na rua, faltava sair menina até de dentro dos bueiros para falar com ela, mesmo as que não a conheciam. Vocês precisavam ver no shopping, então.

Saía nego de tudo quanto é canto para pedir foto, perguntar sobre o visual que ela usava ou dizer "nossa, nunca achei que encontraria alguém legal assim por aqui", como se usar algum tipo diferente de roupa fosse motivo para já julgar de forma positiva. O mundo seria um lugar bem melhorzinho se ninguém fizesse isso, sinceramente.

Se um dia alguém me abordasse do nada para falar alguma coisa assim, eu acharia que seria estuprado ou assaltado. Nunca entendera o motivo de as pessoas quererem tirar foto com alguém que nem conhecem, que nunca viram na vida, que sequer é alguém famoso ou coisa assim. Isso era meio louco. Eu não tirava foto direito nem com quem eu conhecia, mas enfim, não me envolvendo estava tudo bem.

No meio do povo da Rebecca no canto, tinha umas shiro lolitas e uma sweet que olhavam para tudo com cara de nojo — e isso dava uma puta vontade de rir, mas ninguém falava nada. Quer dizer, todo mundo tirando o Guilherme, irmão da Rebecca.

— Olha a cara daquelas gurias ali no canto — ele falou no meu ouvido, esticando-se um pouco enquanto o Lincoln falava sozinho lá na frente. — Parecem uns bolos de casamento.

Olhei incrédulo para ele, balançando negativamente a cabeça enquanto a Rebecca olhava absurdamente feio para nós dois. Xin Qian olhou para a gente e revirou os olhos. Era só o que ela sabia fazer além de xingar todo mundo sem motivos.

Guilherme, junto com o Anderson, devia ser a única pessoa física e psicologicamente dentro dos padrões de sociedade naquilo tudo. Tinha um cabelo castanho ondulado que ia até os ombros, uma barba rala e usava roupas como blusa xadrez, bermuda e chinelos o tempo inteiro. Ele era bem neutro, chamava pouca atenção — até menos que a Loe, já que ela tinha cabelo colorido. Ele não faria ninguém parar na rua para olhá-lo, só se fosse para confundi-lo com Jesus. Um Jesus mais com cara rechonchuda e corpo de fã de sertanejo universitário, mais ainda assim um Jesus.

Mas a Xin Qian... Ela era definitivamente outra história.

Sinceramente, Lincoln devia chamar ela de Yumi Yoshimura, não eu — e não só por conta do roxo de seus cabelos. Eles eram super desfiados, azuis na frente, com metade da franja reta e parte dos fios das mechas frontais tingidos de roxo, com alguns fios da nuca totalmente roxos também. Era uma confusão de cor, sim. Ela estava de camiseta branca, gravata masculina xadrez e uma saia que ia até os joelhos das pernas grossas, que era de pregas e também tinha tecido xadrez vermelho e preto. Os sapatos eram de cores diferentes um do outro e ela usava meias de colegial com uma tattoo choker.

Na perna.

Sim, a tattoo choker na perna.

Ela era tipo o contrário da Rebecca, se você parar para pensar. E não é necessário que eu mencione algo sobre sua personalidade, pois é só imaginar alguém igualzinho a mim, mas com um toque a mais — é, isso é possível — de mau humor e gosto por sangue, tretas e bandas visual kei.

E não!, eu não tinha quedinha por ela. Xin Qian se parecia tanto comigo e com os estilos que me agradavam que seria super sem graça ter algo com ela. Namorar consigo mesmo? Não, isso definitivamente não se parece com uma boa ideia.

Tirando boa parte das porcarias que aquele povo disse depois daquilo, eu escutei mais umas coisas sobre Sorocaba, outras brincadeiras estúpidas do Lincoln e a mesma guria ficava enchendo o saco para a gente tocar alguma coisa — mas, provavelmente para contrariá-la, ninguém fez porra nenhuma, até porque nem havia sinal de Anderson ou bateria para ele por ali. Lincoln não gostava de fazer nada com gente faltando e, bom, aquele filho da puta era quem mandava por ali.

Além de eu não estar nem um pouco a fim de abrir a boca para aqueles caras, eu parecia não ser o único alguém que não fora muito com a cara dela ou de seus amigos. Um deles perguntou se os dreads da Analu fediam e ela ficou puta pelo resto do tempo, e outro ficava toda hora fazendo uns comentários idiotas sobre ter vindo para escutar música, não conversinhas.

Antes de fazer algo, eu perguntei a Rebecca o que eles haviam conversando antes de ela trazê-los para ver a mim, Lincoln, Xin, Gui e os outros. Segundo ela, ela não lhes disseram em momento algum que teriam showzinho particular ou qualquer coisa assim, só que, se quisessem nos ver, tudo bem, e que seria melhor ainda por eu ter aparecido lá justamente naquele dia. Sei lá, foi chato. Se eles não tivessem enchido tanto, dava até para o Lincoln ter feito alguma coisa — ele adorava se mostrar —, mas no fim nem ele quis.

Já sabendo daquilo, eu joguei os meus fones em cima do segundo cara, falei "toma, escuta música no teu celular aí então se quer tanto" e ele ficou bem puto. Isso foi ótimo, porque depois disso não demorou muito para irem embora. Ninguém deu a mínima e o povo caiu em cima da Rebecca quando os caras sumiram, dizendo que ela só arrumava problema e fazendo o resto das amigas dela entortarem o rosto.

De qualquer forma, depois do povo sumir tudo ficou definitivamente melhor.Todo mundo conversou e eu até ri um pouco das bostas que estavam falando. As meninas da Rebecca não se pareciam em nada com as outras pessoas e eram bem agradáveis, para falar a verdade. Ainda que eu tenha dito "todo mundo conversou", eu não era muito de conversar com eles, então apenas escutava e ria. Eu sempre fora assim, para dizer a verdade. Às vezes, soltava um comentário ou outro, mas nada demais.

Estava divertido. Lincoln estava menos insuportável do que antes e eu não dei bola às estupidezes que ele disse para tentar chamar a minha atenção, então foi bem bom. Quem mais falava eram ele, Mickey, Loe e a Rebecca, claro. Ela não calou a boca um minuto sequer, nem quando a Xin Qian ficou brava com uma indireta e as duas discutiram. Normal. Elas sempre discutiam.

Era engraçado pensar nisso, mas nós éramos todos bem diferentes uns dos outros, ainda que cada um fosse bem estranho de sua própria maneira. Geralmente é comum ver bandas ou grupos compostos apenas por gente com o mesmo estilo ou gosto musical, mas nem era bem assim conosco. Bem óbvio que o povo que tocava junto ouvia quase o mesmo gênero, mas o resto, como Loe, Analu, Rebecca, Pietra e outros que nem tinham aparecido naquele dia, não tinha absolutamente nada a ver com o que escutávamos. Não falando apenas de música, ninguém ali tinha um estilo exatamente igual.

Falamos sobre tanta coisa que eu definitivamente não me lembraria de tudo para listar aqui, mas os assuntos envolveram, principalmente, eu mesmo. Eles falavam muito de como foi sem a minha presença por lá e coisa assim, contaram umas coisas irrelevantes que tinham acontecido enquanto isso e perguntaram mais vezes sobre tudo. Rebecca, na maioria das vezes, respondia por mim. Ela, mesmo sem minha permissão, falou de como os meus avós e minha mãe haviam brigado e como eu tomara no brioco por isso.

Não me irritei com esse fato. Deles, eu não tinha praticamente nada a esconder, ainda mais uma coisa tão besta assim. Todo mundo por lá tinha problemas familiares, por maiores ou menores que fossem. Alguns zoavam uns aos outros, mas ninguém levava muito lá muito a sério ou se ofendia.

Lincoln, por exemplo, era filho de gente rica, mas não prestava nem um pouco e isso virava cada vez uma bola de neve maior em sua vida. Vivia sob ameaça de perder herança e coisa assim, já que se envolvia com tudo o que não era lá muito correto ao ver dos pais dele. Você sabe, droga, bebida, modificações corporais e coisas assim, além dos amigos que ele tinha. Não estou falando do grupo que eu participava, estou falando de gente problemática meeesmo, mesmo. A gente fazia e falava muita bosta, mas os outros amigos dele...

Por saber que absolutamente todo mundo não tinha uma família perfeita, eu com certeza não dava a mínima para que falassem da minha — mas só eu tinha o maior direito de ofendê-la, de qualquer maneira. Eles me conheciam bem o suficiente para saber disso também. Menos o Lincoln. É, sempre essa de "menos o Lincoln", mas é que o cara não tinha mesmo noção nenhuma.

— Falando nisso — ele me disse em certo momento do assunto —, por que não trouxe o Jake Long contigo, filhote?

Eu franzi as sobrancelhas diante da pergunta. Realmente estava demorando demais para perguntarem do Anderson.

— Não importa. Nós não tocaremos nada, afinal.

— Lógico que não tocaremos, Docinho. — O lado cu dele se manifestou e Lincoln ergueu uma sobrancelha, cruzando os braços. — A não ser que você deixe de só cantar como uma garotinha e aprenda a pegar em duas baquetas, mas não tem um raciocínio rápido o suficiente para isso, não é?

Rebecca se entreolhou com o irmão, Xin Qian soltou um longo "vai começar" e as meninas desconhecidas — já não tão desconhecidas, pois agora já sabíamos seus nomes — ficaram visivelmente meio desconfortáveis.

Eu dei de ombros e não o respondi de imediato. Eu aparecera lá não para me estressar ainda mais, mas apenas para me livrar do estresse acumulado em Sorocaba. Eu imaginara que lá, não estando mais sozinho e tendo coisas para me ocupar, não faria cagada tão facilmente e também poderia me divertir.

E estava dando bem certo até aquele filho da puta vir encher o saco.

— Se está sentindo tanta falta dele assim — eu respondi —, então simplesmente lhe telefone e o chame para vir, mas me avise antes para que eu possa ir embora.

— Vocês não sabem simplesmente ficar de boa, não é? — A Xin Qian disse. — Pelo amor, hein.

— Vão se foder, que veadagem. — Pietra parou de roer o esmalte das unhas só para olhar torto para nós. — Você não aprende, não é, Lincoln? Para de querer a atenção do moleque desse jeito escroto.

Eu olhei as duas de lado e revirei os olhos. Não havia necessidade alguma para quererem me defender. Olhando sério para Lincoln e deixando claro que aquilo não me ofendera, eu conseguiria fazê-lo por o rabo entre as pernas mais do que rapidamente. Eu o conhecia há tempo o suficiente para saber disso.

— Ah, sério isso? — Lincoln deu risada, arrumando as pernas no chão e jogando a cabeça para arrumar o cabelo. — Para que eu iria querer atenção dele? Só perguntei do garoto, fica na sua.

Foi a vez da Pietra rir, colocando a mão no rosto e olhando ironicamente para a cara dele. O rosto dela era muito fino e seu nariz, um pouco comprido. Os cabelos eram todos retos e ela os descoloria sempre, apesar de já ser loira, e não tinha nem franja. Estava de regata curta, calças largas de estampa militar e os pés todos pretos por gostar de andar descalça. Era absurdamente magra, mas não muito alta. Tinha espirais em ambas as orelhas.

— Todo mundo sabe para quê — ela disse sorrindo e eu ergui uma sobrancelha. — Da fruta que você rejeita, chupa até o caroço quando ninguém está olhando.

Pior que não era mentira.

Lincoln adorava querer me menosprezar, mas eu já perdera as contas de quantas vezes ele tentava me agarrar e, se arrependendo por ter dito alguma merda, pedia desculpas. Era tipo uma versão do Anderson, repito, porém uma versão que queria fazer coisas impróprias comigo e depois desmenti-las.

Sério, que nojo daquele cara. Eu não conseguia suportar gente que não aceitava nem a si mesma.

Eu fiz pouco caso do assunto, rindo por dentro ao vê-lo ficar irritado com o que ouvira.

— Vou lá na sua casa — ele disse para Pietra, tentando rir mesmo estando visivelmente irritado —, deixa eu te mostrar de que fruta eu gosto.

Ela riu de lado e as amigas da Rebecca deram risada baixinho. Continuei só olhando.

— Ei, nem rola — Pietra respondeu. — Não tem banana para você lá.

Guilherme jogou a cabeça para trás, tamanha a risada que deu diante daquilo, mas eu não ri. As garotas da Rebecca e ela riram também. Xin Qian, ao contrário, deu só uma risadinha. Ela só ria quando era de ironia ou dos outros se fodendo.

O Lincoln tentou fazer mais umas gracinhas e revidar depois daquilo. Agora com a Xin ajudando, Pietra e ele discutiram brincando por mais algum tempo até o assunto mudar e ninguém dizer mais nada sobre.

Mickey começou a contar alguma coisa sobre ele ter sido obrigado a sentar-se no último banco da igreja por causa do cabelo atrapalhando a visão dos outros e eu fiquei meio viajando, nem prestando atenção no assunto até a Pietra me dar uma cotovelada e sussurrar:

— Ei, cara. Liga para esse cuzão do Lincoln não, você é foda, tá bom? Ele quer atenção, não parou de falar sobre ti quando tu não tava. Reclamava, lógico, mas dá para ver que sentiu falta.

Olhei sério para ela e bufei.

— Eu não preciso de você para me dizer para não me importar com o Lincoln, Pietra. Eu não tô nem aí se ele liga ou não, então não precisa nem responder quando ele falar alguma merda. Você sabe o que ofende os idiotas, não sabe?

Ela tinha um sorriso grande e irônico, tanto que parecia poder me engolir inteiro, sem mastigar, ao abrir a boca para rir.

— Indiferença?

— Aham — afirmei, pensando no quanto eu já tinha me ofendido com isso também. Da minha mãe, por exemplo. — Exatamente.

Ela deu de ombros.

— Andar tanto com a tua prima tá me fazendo gostar de tretar com os outros. Não consigo mais ficar quieta diante de gente cagando pela boca, mano. — Pietra deu de ombros. — Mas, sério, Alex, tu é foda. Não se intimide com o Lincoln fazendo teus ouvidos de penico.

Daquela vez, eu ri de verdade.

— Eu não me intimido, mas tudo bem, obrigado.

Pietra ia dar um tapinha na minha cabeça, mas desistiu quando olhei torto para ela e trocou o gesto por fazer dois joias com a mão.

— É isso aí, então — disse. — Tamo junto.

Soltei uma risada nasal, sentado nos mesmos pneus até então. Estava ali há tanto tempo que minha bunda — ou o quase nada que eu tinha para chamar assim — ficaria quadrada. As costas estavam curvadas e eu tinha os cotovelos nas pernas, apoiando o rosto nas mãos enquanto calculava as dores na coluna que sentia depois e a minha vontade de ir embora para dormir até o segundo sol chegar.

Lincoln dava palpite na vida religiosa do Michael naquela hora, exibindo seus argumentos ridículos de ateu que quer se mostrar. Cara, o que diabos o fato do Mickey acreditar em Deus tinha a ver com a vida dele? Puta merda, não dava para ser mais escroto. E eu ainda reclamava do Sam.

Guilherme falava tudo o que eu queria dizer e um pouco mais quando a Pietra me cutucou de novo.

— Becca disse que cê tá mal — ela falou e a Loe, que estava um pouco à frente e sentada no chão, pareceu ter escutado. — Que aconteceu, japa?

Eu torci a cara e dei de ombros, dizendo que não era importante.

— Não importa. E não me chama de japa, puta merda, Pietra.

— É por causa da sua mãe? — a Loe disse, entrando num assunto à parte do das outras pessoas dali e empurrando uma mecha meio rebelde e violeta para trás da orelha. — Ou não conseguiu se acostumar com a outra cidade? Tipo, eu sei, mudanças assim são difíceis... Demora pra gente se sentir em casa, né? E se acostumar com gente e rotina novas, também.

Dei um pouco de risada de mim mesmo naquela hora.

— Por causa de tudo isso e um pouco mais, mas de boa. Não tô mal, não, a Rebecca exagera. Eu só senti um pouco de falta daqui, de qualquer forma, e quis aparecer para me distrair.

— Válido — eu nem reparara que Analu estava escutando, mas foi o que pareceu quando ela falou. Estranho dizer isso, mas ela parecia ser a única garota dali além da Xin que não fazia cagada nas sobrancelhas. — E o que pretende fazer, jovem? Beber um copinho de bebida tentando esquecer os "pobrema" e vomitar até as tampas como já aconteceu com você?

Cocei o couro cabeludo e sorri de lado.

— Eu tenho lembranças ruins o suficiente para não fazer isso de novo e, sério, não existe bebida alcoólica que não seja ruim.

— Você é que é fresco, na sua idade eu já virava tudo. Com quantos anos tu tá, garoto?

Antes de dizer, tentei já me acostumar com a ideia de que a ouviria dizer pela milésima vez que me daria, no máximo, catorze.

— Dezesseis. Analu, você tem alzheimer?

— Dezesseis! — ela exclamou, colocando a mão nos dreads loiros e olhando incrédula para a Loe. — Você ouviu, Heloísa? Dezesseis!

— Eu sei! — a amiga disse rindo.

— Ele é muito pequeno! Isso não pode! — Ela olhou para mim outra vez. — E como você não bebe? Tipo, aqui não é uma conversa entre família, a gente admite todas as cagadas. A vida não é um livro de ficção adolescente, a gente não tem como ficar fingindo que faz tudo certo, né? Então, eu com dezesseis já bebia tudo, não entendo como você não go—

— Falando em bebida — repentinamente, Pietra parou de roer as unhas e interrompeu —, vocês não querem ir para um bar semana que vem, não? Tô com um monte de russo para chegar e preciso entreter eles. Também vai ser uma boa saída para o pivete aí se distrair, ele não disse que quer?

Eu estreitei os olhos e cruzei os braços, esticando a coluna de novo.

— Eu não bebo, que caralhos você quer que eu vá fazer num bar?

— A gente leva leitinho pra você — Loe debochou. — Quem sabe um travesseirinho também.

Olhei diretamente nos olhos dela, ficando sério.

— Não é engraçado, Heloísa. — Mudei o foco para Pietra. — Eu não vou, tá bom? Não gosto de ficar entrando nesses cantos. Eu sou menor, além disso.

— Nem tem problema — Pietra respondeu. — Os donos são meus amigos. E você e os outros que não tem dezoito não vão beber, vão? Então é de boa. Só quero que você conheça os meus amigos, sei lá, se distraia. Eles são briguentos e falam dessa forrrma, mas dá pra se distrair com as tretas deles. Na boa, Alexander, vai ser bom. Prometo que não vai dar merda, se der você pode me trancar num quarto com o Lincoln por uma semana.

Eu balancei negativamente a cabeça, arqueando a sobrancelha e dando um sorriso torto e pequeno.

— Eu não vou fazer isso, cara.

— Vai ser legal.

— Não importa, eu não quero ficar num lugar em que nada me interessa.

Pietra fez bico.

— Os meus russos são altos, fortes e lindos. Você, seu asiático anêmico, não ouse chamá-los de desinteressantes.

— Russos? — Analu fez uma cara engraçada. — Russos mesmo? Ou paraguaios feito você?

A Pietra deu risada, olhando bem para mim. Eu acabei por rir também.

— Alex que é paraguaio, ele não é nem japonês, nem chinês. — Ela mudou de assunto quando fechei a cara e mostrei o dedo do meio. — Sério, eles são russos, não nasceram aqui, não. Estão passeando, são de uma academia de luta e não sei o que lá mais. Uma comédia, cês precisam ver.

— Academia de luta? — A Loe pareceu interessada na ideia. — Vai ser bom isso. Se o Lincoln fizer gracinha com eles, vai levar umas porradas bem dadas.

Analu e a Pietra riram, mas eu continuei na minha. Estava interessado, também. Em ver o Lincoln quebrando a cara.

— E então? — Pietra insistiu tranquila. — Você vai, né? Nem que a gente precise te drogar e te levar arrastado.

— Eu não quero ir! Vocês são terríveis.

— Não, nós não somos horríveis! — a Loe disse. — A gente só vai te arrastar para um lugar porque queremos te ver feliz, ok?

Analu franziu as sobrancelhas.

— Falando em estar feliz — ela disse baixo —, você tá diferente.

Imitei o ato dela, não entendendo que diabos estava falando.

— Eu?

— É, você. — Ela me encarou firme. — Você tá diferente.

— Por que você diz isso?

— Porque você tá muito risonho e imaturo para o Alexander que todo mundo aqui conhece.

Eu admito que fiquei constrangido naquela hora, ainda que tenha soltado um riso curto no primeiro momento. Logo eu parei de rir, olhando para um canto , apertando o pneu de cima com os dedos e me dando um pouco mais de conta do que ela tinha me falado.

"Imaturo."

Não fode, Analu.

O que ela queria jogar na minha cara, que agora eu ria toda hora e parecia uma criança? Parecia até que ela sabia que eu não devia estar rindo diante de tudo o que eu já tinha feito, mas quis dizer aquilo apenas para fazer a bad bater outra vez. A maconha estava alterando alguma parte de seu cérebro, aquela responsável por fazer os seus amigos se sentirem uns bostas.

— Não fica com essa cara — ela disse um pouco depois. — Eu não quis dizer na forma ruim. Nós gostaremos de você mesmo que mude um pouco e, para falar a verdade, foi divertido conversar contigo assim. Sempre foi muito difícil te fazer rir de coisa besta, mas agora você voltou mais gentilzinho, sabia?

Eu disse que ia pensar no que a Pietra havia dito e, depois disso, não falei mais nada. Ficar com aqueles olhões esverdeados da Analu em cima de mim o tempo todo, como se ela realmente soubesse de tudo, me deixou tão paranoico que eu até acabei dando um coice nela depois.

Ela ficou meio puta e não falou direito comigo pelo resto do tempo, e eu também não falei com ela. Analu, a Loe e também Pietra não eram grandes amigas minhas como Rebecca era. Nós nunca tínhamos nos falado bastante assim, eu acho, para dizer a verdade. E agora, quando nos falamos, Analu vinha dizer aquilo e fazer eu me sentir um puta babaca de novo.

Eu sabia que era o meu primeiro dia ali e que eu não deixaria o meu lado bobão adquirido com a Liana de uma hora para outra, sabendo também que não devia cobrar tanto de mim mesmo, mas na hora de ficar mal você nem pensa nessas coisas. Senti-me realmente como ela, ouvindo "você está imaturo e risonho demais" e escutando "pelo amor, Alexander, você já não é mais a mesma pessoa e nunca mais vai ser, desiste dessa porra e vai logo beber até virar um fracassado".

Eu sinceramente não tinha a menor ideia do que faria para dormir sem pensar naquilo.⁠⁠⁠⁠

Depois daquele domingo, a minha semana se resumiu em uma chatice ainda pior do que a que era antes de eu ter morado em Sorocaba. Fiz umas coisas produtivas, até, como sair com o povo, mas nada disso me distraiu muito. Analu não estava cem por cento certa em dizer que eu estava risonho, pois passei quase a semana toda da forma mais rabugenta possível. Motivos? Aí vão.

Bom, o Anderson fazia o barulho simplesmente o dia inteiro, e à noite jogava videogame com o volume altíssimo, ficava no Skype rindo feito um retardado com um povo dele ou vendo desenho japonês — e ele não gostava de usar fones, então eu não tinha sossego até ir lá berrar com ele ou minha avó fazer isso por mim.

Como se já não estivesse bom, alguém passou meu número para algum filho da puta que não parava de me enviar mensagem de texto. Com certeza tinha sido a Rebecca, pois ela sempre fazia isso. Eu nem lia mais as mensagens, deixava acumulando lá. Na quinta-feira, já tinha umas trinta.

Meu pai me encheu muito o saco no meu Facebook, também. Ele sempre tinha mania de ficar me marcando em fotos que ele tirava de árvores, shows, comida japa em restaurantes e coisa assim, que não me interessava de jeito nenhum. Meus amigos adoravam e diziam que com certeza iriam querer um pai daqueles, mas eu duvido que gostariam dele caso realmente o tivessem. Nem de comida japonesa eu gosto, pra que iria querer ficar vendo? Ficaria com mais fome se me marcasse na foto de uma tapioca com leite condensado.

Não saindo do assunto do meu pai, ele também perguntou no privado se eu queria que ele me enviasse alguma coisa em agosto ou coisa assim, já que eu faria aniversário. Vi a mensagem, mas não respondi. Meus avós também fizeram o mesmo e eu "respondi" da mesma forma.

Acho que todo mundo que eu conhecia via as minhas redes sociais como um depósito de encheção de saco. Eu entrava no meu Facebook às vezes, mas nem abria as notificações ou as mensagens por não ter nem paciência pra gente postando merda na minha linha do tempo, comentando ou marcando bobagens nas minhas coisas como se fosse engraçado. Por detrás de uma tela de PC, celular ou whatever, ninguém tem vergonha na cara, mesmo.

De mais coisas chatas, eu também fui arrastado várias vezes pela Rebecca para a casa dela ou outros lugares, mas nada de legal aconteceu por lá. Ela ficava dando indiretas para nós ficarmos e tentava ficar me agarrando o tempo inteiro, mas eu não dava nem bola — pelo contrário, às vezes ficava até meio bravo. Eu detestava ficar com os outros quando não estava sentindo nada pela pessoa e a Rebecca sabia disso. Não era nada legal ficar passando a mão na minha bunda mesmo assim.

Parando um pouco de reclamar, houve coisas boas na semana, também. Usei parte do dinheiro da minha mãe e Lincoln furou o outro canto dos meus lábios, colocando uma argola igual a outra. Ficou bom e nem dói tanto, mas eu preferiria ter ido sem a Rebecca para ficar dizendo "ai", "ui, "que agonia" enquanto olhava.

Fora isso, minha avó esteve bem de boas comigo e sempre ficava me trazendo umas coisas melhorzinhas para me agradar. Dizendo que eu ficaria com diabetes se continuasse me entupindo só de sonho de padaria, mas trazia. E eu ficava bem feliz, de qualquer forma.

No fim das contas, eu realmente disse para a Pietra que ia ao bar com ela no domingo. Não custaria nada e eu já não dormia cedo normalmente, então talvez fosse legal ir até lá. Eu a vira umas duas vezes na semana, quase da mesma forma como fora no primeiro domingo, porém com a diferença de que mais gente que eu conhecia apareceu naquelas vezes.

Quando chegou o dia, eu estava tão animado para isso que até me esqueci de ir, pois dormi das duas até umas nove da noite e só acordei com eles me ligando. Quando saí de casa, ainda estava com sono e me sentia um NPC na vida, de tão automaticamente que estava vivendo. Foi um milagre não ter sido assaltado ou atropelado enquanto andava cambaleando por aí.

A gente se encontrou numa certa rua e todo mundo foi a pé mesmo, todos juntos. Legal que eu nem sabia aonde era, mas estava indo do mesmo jeito, e eu acho que ir assim provavelmente seria mais divertido do que ficar no tal do bar.

Eu admito que ri deles tentando me animar e da Analu me erguendo no ar quando a gente se encontrou. Ela era maior que eu e sabia que eu não gostava disso, mas acabei rindo feito uma besta com ela pegando-me de surpresa. Também ri com o Lincoln imitando a minha voz enquanto eu brigava com eles me tirando, por mais estranho que pareça. E agora todo mundo tinha aparecido.

Eles eram todos uns idiotas, mas eram meus amigos. Eu tinha certeza de que poderia me divertir ao menos um pouco, nem que fosse só olhando eles sendo estúpidos e desperdiçando o meu tempo ali. Eu me sentia, realmente, com menos receio em ser ou rir de imbecilidade.

"Obrigado, Liana", pensei no meio da rua à noite, com quase uma dezena de adolescentes, quase-adultos e até adultos bobões rindo ao meu redor. Estava meio frio, mas ninguém estava de casaco. Mesmo estando de blusa de moletom, eu sentia o vento batendo nas minhas pernas pelos rasgos da calça e minhas bochechas deviam estar geladas. "Eu acho que não vou parar com isso em breve, por mais incômodo que devia estar me sendo."

Eu olhei para aquele cenário urbano, noturno e cheio de luzes pensando no tamanho da falta que eu sentira daquilo e daquelas pessoas. Em certos momentos, eles eram super incômodos, mas eu não os trocaria por muitas coisas — menos o Lincoln, eu trocaria um sorvete de flocos por ele.

Pensei que, ainda que não fosse muito, eu teria alguma diversão ao chegar no tal bar, mas isso provou-se totalmente o contrário quando nós chegamos lá.

Uma vez, eu vi aquela luz, era muito linda
Mas, pensando agora era sujo, aquilo pode ser chamado de "sonhos de um dia ruim"
A luz era tão deslumbrante que não conseguia ver ao redor, então apenas simplesmente
Desperdiçava os dias naquela época, mas passou e agora posso rir disso

Uma vez eu abri aquela cortina, era muito pesada
Sob pressão e para ganhar do sarcasmo, virei apenas um imbecil
Quando percebi, estava sozinho numa sala totalmente escura
Acabou... não vou conseguir voltar... por isso... parei até mesmo de andar...

Mas eu não estou sozinho, não estou sozinho
Não estamos, não estamos, não estamos sozinhos
Conquiste o que o dinheiro não pode comprar

Banhe-se de luz mais uma vez, e desta vez sem ser enganado
Vamos alcançar agora, um grupo de jovens cheios de ambição
Alguém disse certas palavras, até isso deixamos passar naquele momento
Percebi apenas agora, um grupo de meninos que sucumbiram à ambição

Então, eu sei que você sabe? Você sabe que eu sei?
Nós temos, nós temos, temos crescido
Para não ficar preso, ande olhando para cima

Banhe-se de luz mais uma vez, e desta vez sem ser enganado
Vamos alcançar agora, um grupo de jovens cheios de ambição
Alguém disse certas palavras, até isso deixamos passar naquele momento
Percebi apenas agora, um grupo de meninos que sucumbiram à ambição
(Yokubou Ni Michita Seinendan, ONE OK ROCK)


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado!