Defeitos de Fábrica escrita por Lorena Luíza


Capítulo 16
XVI. Merecer!!


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo tá como privado no Wattpad, não entendi muito bem o porquê. Enfim, boa leitura, gente.



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۞

O banco do carro estava inclinado o máximo possível, as janelas estavam abertas e o ar-condicionado tentava, num fracasso visível, minimizar o calor do veículo e me deixar menos estressado. Nada me deixava mais puto do que calor, barulheira e a companhia de gente inconveniente ao meu lado, ainda mais quando a pessoa inconveniente usa perfume com cheiro de cabaré e esse cheiro se mistura ao fedor dos cigarros que ela fuma. O barulho do Anderson jogando Harvest Moon: Boy & Girl no banco de trás também não era legal. Daqui a pouco, eu viraria para trás e atiraria o PSP pela janela. Queria ver que galinha ou vaca sobreviveria àquilo.

Já fazia algumas horas que eu estava preso ali, e sentia um buraco no estômago que já parecia ultrapassar o tamanho da fenda no coração. Era um misto interminável de sensações e sentimentos ruins que não devia estar ali. A culpa parecia me atravessar de formas que eu não conhecia até então, quase como se fosse fraqueza.

Era uma droga pensar assim, mas eu estava fugindo, não é? Mesmo que ela mesma já tivesse deixado claro, naquele dia, que gostaria de nunca ter me conhecido e que preferia ficar sozinha. Eu não conseguia ter mais a opinião formada que sempre tivera. Eu me sentia certo e errado ao mesmo tempo. Fazia a coisa certa com o sentimento de que era a errada e não conseguia me sentir a mesma pessoa assim.

Eu não sabia se ficaria lá, em São Paulo, pelas férias todas, mas o sentimento de que eu a deixava para trás não desaparecia de jeito nenhum. Merda, eu definitivamente não mentira ao dizer que não pararia de me importar com ela tão cedo. Quantos dias já fazia, e por que diabos ela não podia ter deixado de ser estúpida e se lembrado do quanto eu frisara isso? Só isso poderia ter resolvido tudo. Eu sei que não teria aguentado continuar mentindo se ela insistisse apenas mais um pouco.

Cara, que raiva da Liana, mano do céu! Bem que ela disse que só escutava o que queria. A Lia era mesmo esse tipo de pessoa, que de um "você é uma chata, mas eu te amo", só escuta o "você é uma chata". Ela escutou eu quase me declarando, mas foi só falar umas bobeirinhas para nada mais ter relevância. Certo, eu peguei pesado, mas isso não a fazia menos tonta. "Em hipótese alguma", eu ainda disse várias vezes depois de beijá-la. E ela não prestou atenção em nenhuma.

Droga, era horrível ter opiniões e sentimentos divididos — na boa, não queira passar por isso. Minha sorte, ao menos, era que eu mudava de ideia, mas não mudava o que estava fazendo. Minha cabeça podia dizer "volte", "pare", "cale-se" ou até mesmo "fale", mas eu não me interrompia. Se fosse levar em conta o que eu já sentira realmente vontade de fazer, eu teria saído do carro e corrido feito um idiota no meio da pista, tentando voltar para Sorocaba mesmo sem ter prestado a menor atenção no caminho e sabendo que acabaria me perdendo. Aí eu tentaria lembrar aonde a Liana morava, iria lá e a xingaria demais, mas falaria também a verdade — a verdade de verdade mesmo — e então a encheria de beijo (o que, levando em conta o fato de ela não gostar de mim, seria uma coisa horrorosa e nojenta que eu jamais sequer pensaria em fazer, mas eu faria do mesmo jeito; já tinha feito beijando-a duas vezes, afinal).

Tá, vou resumir. Eu estava me tornando um babaca e boa parte da culpa era dela. Ninguém manda ter uma carinha sardenta tão beijável, afinal.

Minha cabeça estava jogada para trás e o cabelo amarrado porcamente num coque feito com uma pulseira, bem daquelas que parecem fio de telefone ou cabelo com babyliss mal feito. Elas já haviam saído de moda há muito tempo, mas eu continuava usando uma preta no braço direito sabe-se lá o porquê. Se eu fosse ver em mim o que estava na moda e o que não estava, eu provavelmente teria de andar por aí pelado, o que não parecia uma alternativa tão ruim no calor que fazia no meio de onde estávamos.

"Moda... Moda é o caralho", resmunguei mentalmente, cruzando os braços e fazendo bico. "É uma daquelas coisas que só existem para encher o saco e não servir para nada útil. Tipo Anderson, Samuel e suco de caju."

Virei a cara e revirei os olhos, irritando-me só de pensar naquilo.

Era incrível como, mesmo com as coisas talvez indo melhor do que eu esperava — como o fato de eu estar realmente conseguindo vazar de Sorocaba, por exemplo —, eu ainda continuava me irritando com tudo. Enquanto o mundo metralhava-me com motivos para ficar estressado e eu realmente ficava, ele fazia o mesmo com a Liana e ela respondia com florzinhas, corações, amor e positividade. Bom, antes ela respondia. Agora e depois de ver como ela agira com o Sam uns dias atrás, eu já não sabia de mais nada.

E, pensando nela, só me ficava mais claro que eu não esqueceria de uma hora para outra e mais eu me rendia. Só eu sei o quanto quis me arrepender e voltar correndo para Sorocaba, mas por sorte já estávamos bem longe de lá àquele momento. Ao menos fisicamente eu estava distante, afinal. Isso já devia ser o suficiente, eu acho. Era bom que fosse.

Eu olhava pela janela, mas não prestava atenção no que havia lá fora. Pay Money To My Pain soava alto nos meus ouvidos, tocando Home e sendo o único fator que não me incomodava naquele momento. A letra combinava com o que eu sentia. As letras sempre combinavam.

Às vezes, eu me perguntava qual era o sentido de tantas coincidências baterem na minha porta, já que até as letras das músicas que eu escutava no momento coincidiam com a situação de tudo. Certo, havia coincidências mais óbvias que isso, mas era um pouco estranho o fato de eu sempre precisar apenas tocar a opção aleatória do music player para uma música incrivelmente parecida com a minha vida começar a tocar.

Talvez isso fosse só impressão, afinal eu tinha muitas músicas incríveis no meu celular, ou talvez só o fato de eu ser um babaca fazia eu achar que tudo se parecia com o que passava pela minha cabeça.

Soltei o ar do peito e fechei os olhos, virado para o lado contrário ao que minha mãe estava e encostando a testa no vidro. O instrumental atravessava os cantos do meu cérebro e acalmava os meus sentidos. Expirei novamente e o vidro logo na minha frente tornou-se embaçado por conta do meu ar quente. Inevitável foi murmurar no ritmo quando a parte cantada começou.

I feel something different
Eu sinto algo diferente
I don't know what it is
Eu não sei o que é
Something is really missing in my life
Algo está realmente faltando na minha vida
Now, I know what it is
Agora, eu sei o que é

My weakness calls out my name
Minha fraqueza chama meu nome
It takes me to the place where I used to live
E leva-me ao lugar onde eu costumava viver

Home...
Casa...

A música quase tinha o poder de erguer cada pelo do meu braço e fazer a vibração percorrer o corpo inteiro. Desde o dedão do pé ao fio de cabelo eriçando na nuca. Separava os meus lábios automaticamente e deixava a letra sair, fluindo mesmo sem o meu consentimento. Como eu amava sentir aquilo, e como eu amava saber que era capaz de fazer os outros, ainda que fossem uma pessoa ou outra, sentirem o mesmo.

Meu coração doeu de pensar que o dono da voz que começava a cantar, K, já não estava vivo fazia uns dois anos. Era uma droga pensar nisso, mas a voz dele ainda estava viva. Para mim e para quem a admirava, sempre estaria. Essa é uma das coisas lindas das músicas. Elas atravessam o tempo e até a vida.

Someone talks to me nicely; I can't trust them
Alguém fala gentilmente comigo; eu não posso confiar neles
Sometimes you make me feel better, feeling not alone
Às vezes você faz com que eu me sinta melhor, não me sinta sozinho
My weakness saying to me: "Let's go back home, now"
Minha fraqueza me dizendo: "Vamos para casa, agora"

Don't make me feel so (go back home)
Não faça-me sentir-me assim (volte para casa)
Never say you know me...
Nunca diga que me conhece...
Do you?
Você conhece?

Someone whispers to me: "Why not go back home?"
Alguém me sussurra: "Por que não voltar para casa?"
Sometimes I almost agree: "Yeah"
Às vezes, quase concordo: "Sim"
But I think is not that time...
Mas acho que não seja a hora...
My weakness staring at me
Minha fraqueza me encarando
As my loved one, my sweet place
Como a pessoa que amo, meu lugar querido
Where she used to sleep
Onde ela costumava dormir

With me...
Comigo...

Música era a coisa que eu mais amava no mundo inteiro. A única coisa que sempre estivera presente e que eu tinha certeza absoluta de que jamais deixaria de lado. O poder dos instrumentos, da voz e de toda a harmonia combinada perfeitamente fazia o meu corpo estremecer por inteiro. O estremecimento bom, que sabe acalmar tão bem quanto sabe atiçar.

O mesmo sentimento de ficar perto dela. O sentimento que, como sempre, eu usaria para repor a falta horrenda que aquela estúpida fazia.

I need more time to see, to think
Eu preciso de mais tempo para ver, para pensar
I need more time to see, to think of you
Eu preciso de mais tempo para te ver, para pensar em você

Think of you
Pensar em você

E o meu coração se preparou, outra vez, para o refrão que viria a se repetir. A sensação já era antiga de tantas vezes que eu já a sentira, mas nunca se desgastava ou perdia a emoção. Mais uma das coisas que eu mais amava nas músicas.

Don't make me feel so (go back home)
Não faça-me sentir-me assim (volte para casa)
Never say you know me...
Nunca diga que me conhece...
You never know, who I am
Você nunca sabe quem eu sou

Elas e o que elas queriam dizer nunca morriam. Você podia até enjoar delas depois de tanto ouvi-las, mas um dia sentiria falta e, ao ouvir, o seu coração dispararia e a adrenalina viria da mesma forma como foi na primeira vez em que você as escutou. O mundo pararia de girar e só existiriam você e elas. As vozes e os sons. O momento em que o seu corpo deixa de estar no lugar errado e tudo se conecta. Você praticamente flutua e não sente mais nada físico. É apenas você e a música. Você e a melhor coisa que podia existir no mundo.

E isso era incrível e fascinante. Eterno e lindo. Um ciclo vicioso e interminável.

Música era a droga que eu consumia e espalhava e, por sorte, não havia PROERD que me livrasse desse vício.

Don't wanna be like you
Não quero ser como você
I don't wanna be like you
Eu não quero ser como você
I don't wanna be like you
Eu não quero ser como você
I don't wanna be like you
Eu não quero ser como você

Who I used to be...?
Quem eu costumava ser...?

If no one ever hears me, or sees me
Se ninguém nunca me escutar, ou me ver
If no one listens to me, cares about me
Se ninguém me ouvir, se importar comigo
I will sing for you
Eu cantarei para você
I will sing for you
Eu cantarei para você
Like I use to do
Como eu sempre faço

I feel something different
Eu sinto algo diferente
I don't know what it is
Eu não sei o que é
Something's really missing in my life
Algo está realmente faltando na minha vida
Now I know what it is
E agora eu sei o que é

My weakness calls out my name
Minha fraqueza chama o meu nome
It takes me to the place... where I used to live.
Ela me chama para o lugar... aonde eu costumava viver.

E eu me deixei levar por essa droga naquele momento. Não existia mais trânsito, cheiro de perfume de cabaré da minha mãe ou o calor incômodo que colava os fios curtos do meu cabelo no meu rosto. Não existia mais nada, só eu e a música, às vezes sendo interrompidos por um pensamento inconveniente relacionado àquela garota. Não tão inconveniente. Eu não devia mais, mas ainda gostava de pensar nela.

Abri os olhos e olhei para o céu. O azul dele tinha um tom muito mais vívido que o dos olhos azul acinzentados da Liana, mas não tinha metade da graça que eles tinham. O tom claro dos olhos, da pele ou dos cabelos dela eram as únicas coisas de cores pálidas que me agradavam.

Eu era meio noturno demais, não somente por gostar de cores escuras. Ficar fora de casa durante o dia me sufocava, ainda mais quando estava um calor infernal como os que temos no Brasil — isso para você ver o sacrifício que era ficar na rua à tarde com a Liana. Eu era louco pela noite, pelas cores que o céu tomava ao entardecer e por como tudo parecia mais interessante e bonito naquele período. Mesmo as luzes se tornavam fascinantes e incríveis quando estavam no escuro, pois era assim que se destacavam de verdade.

Tipo eu e ela.

Eu era o lado escuro da história, mas a luz dela se tornava interessante para mim quando estávamos próximos — e eu me senti muito mais boiola do que de costume pensando nisso —, como se o quão opostos nós éramos fosse apenas mais alguma coisa divertida para me fazer gostar daquela garota. Não, não era como era com a Rebecca. Sei lá, eu gostava desse fato da Lia e pronto, mas as duas nem tinham nada a ver uma com a outra. Nem melhor, nem pior; só eram diferentes, mesmo. E no momento eu preferia o lado calmo, encantador, meio bobo e azul-claro da Liana ao caótico, empolgado, risonho e cor-de-rosa da Rebecca.

Acabei sorrindo para a rua enquanto pensava nisso, mesmo que isso fosse estupidez. Tch, olha o tipo de pensamento que eu estava prestes a ter. Eu não me perdoaria se ficasse comparando uma garota com a outra, e isso também com certeza acabaria piorando o que eu sentia. Droga, aboli-la da minha cabeça era mesmo uma droga e eu era um filho da puta bipolar. E aquilo estava mesmo sendo mais problemático do que eu esperava que seria.

"Logo, logo, eu esqueço", pensei pela milésima vez.

Eu sempre esquecia, não tinha que ser diferente com ela, tinha? E acho que não faria mal se eu demorasse só mais um pouquinho para começar a tentar fazer isso. Umas semanas com algumas pessoas diferentes tinha que me fazer ao menos um pouquinho de bem, mas até isso acontecer, eu não queria ficar me reprimindo taaanto. Já estava longe o suficiente para não fazer cagada, então ser um pouco trouxa não custaria nada.

۞

Tinha sido uma semana atrás, no último dia em que eu iria para a escola. Faltava algo como uma semana para as férias e não tinha muita gente indo, inclusive Liana. Eu não via o rosto dela havia dias e, depois daquele dia, não pretendia mais vir à escola até as férias acabarem. Não sabia direito com que intuito eu havia aparecido lá, levando em conta que iria para São Paulo em breve e já faltava havia uns bons dias.

Ela também não parecia saber.

Quando a vi, Liana não olhou para mim. Eu estava no meu lugar e ela simplesmente entrou na sala, surpreendendo-me um pouco por eu não achar que ela estava comparecendo às aulas. Odiei o fato de vê-la ainda ter mexido comigo, mas sabia que seria só sair da escola que eu amaria o sentimento outra vez. Grande babaca eu era.

Pouca coisa física na Liana havia mudado, e isso não havia a feito ficar menos bonita. O cabelo loiro escuro na raiz e claríssimo no restante estava com a mesma rebeldia de sempre. Ela vestia um daqueles moletons grandões GAP que sempre vestira e as pernas de sabre de luz eram as mesmas, enfiadas num jeans meio desbotado que, mesmo apertadíssimo, não mostrava curvas o suficiente para fazer suas pernas parecerem bastante com as de uma das outras garotas da sala.

Eu sinceramente tive um medo sufocante de me deparar com uma Liana diferente. Até então, eu não sabia de que forma ela interpretara tudo o que eu dissera. Ainda que eu não me lembrasse de ter dito algo sobre sua aparência, Polliana era tão louca e desequilibrada que o meu coração disparava apenas com esse pensamento. Em sã consciência, eu nunca diria algo tão ridículo como "mude sua aparência para te aceitarem", mas e se a cabeça estúpida dela interpretasse isso? Se eu já havia sido um puta hipócrita ao falar sobre sua personalidade, como eu teria cara para falar do restante também?

No fim das contas, o modo dela de se vestir, andar ou manter os cabelos era o mesmo, mas ela em si, não. Ela não estava igual. Ela não era a mesma.

Caso não houvesse mudado, provavelmente a Liana entraria cabisbaixa e tentaria, pela milésima vez, falar comigo ou com o Sam. Se fosse antes da treta, então, entraria saltitando, diria bom dia à nós dois, se apertaria comigo na minha cadeira e escutaríamos música até o professor entrar.

Mas não, ela não fez nada disso.

Atravessou a sala sem olhar para os lados e sentou-se no lugar de sempre. O rosto ovalado não parecia ter expressão alguma e estava sem o rubor com o qual eu já me acostumara. A única coisa que havia nele, além da quantidade absurda de sardas, eram olheiras. As olheiras mais profundas que eu já a havia visto ter. As olheiras que fizeram o meu coração disparar e eu desviar o olhar por um segundo, engolindo em seco e fechando a cara.

Eu achara minha aparência deplorável dias atrás, mas agora ela estava comparável à mim, com a diferença de que sempre fora super magra daquele jeito. O modo como empurrara as mangas da blusa até o cotovelo denunciava mesmo que estava estranha. Liana evitava camisetas com colo muito aberto ou mangas curtas por ter sardas no peito e braços, então se envergonhava disso e até evitava erguer as mangas do moletom quando estava calor. O que era uma bobeira, lógico, mas se ela não gostava estava tudo bem.

Mas ela tinha se esquecido e erguido, e isso não fazia o menor sentido, porque quando o Sam passou ela continuou do mesmo jeito.

Não arrumou a postura como sempre arrumava ou gesticulou para mim, perguntando-me se o cabelo estava bom. Sequer olhou para os lados quando ele foi se sentar e, visivelmente irritado e com o ego ferido, parou e ficou encarando-a com raiva. Pude sentir que ela percebera a minha presença do outro lado da sala, debruçado sobre a mesa e olhando-a pelo espaço entre os cabelos, e ela encarou-me por alguns segundos sem mudar a expressão do rosto.

Os olhos dela ficaram em mim por um período tão pequeno que eu sequer pude disfarçar. Ela não sorriu, mas não corou ou fechou a cara. Ela simplesmente me olhou como olharia um tijolo entre dezenas de outros na parede, mas então franziu as sobrancelhas e as feições fraquejaram. Sem ter tempo para reagir, eu apenas vi os olhos dela brilharem de longe e ela olhou para baixo.

Chorando.

Eu virei o rosto no mesmo instante e só voltei a olhá-la depois de ter certeza de que não infartaria. Ela olhou para o chão antes de virar-se para a frente e deitar a cara em cima da mesa e ficar assim pelo resto da aula. Pelo resto das aulas. Pelo intervalo também.

Cutucaram-na o tempo inteiro, muito mais do que faziam normalmente comigo. Liana sempre emprestava as coisas e fazia favores para todo mundo — "é coisa de amigo!", ela dizia, mesmo que ninguém nem olhasse para a cara dela direito quando não havia interesse —, desde emprestar materiais escolares normais até colocar nomes em trabalhos ou pagar lanches para o vadio do Samuel. Ela nem percebia que era passada na bunda e dizia que sempre faria isso, porque não era certo ajudar os outros esperando retorno, mas naquele dia não ajudou pessoa alguma.

Não ajudou nem a si mesma.

Liana não respondeu aluno algum, muito menos os professores que a mandaram para a enfermaria por não parecer estar bem. Sequer tirou os materiais da mochila ou olhou para a lousa. E então, quando era intervalo e Samuel passou perto dela outra vez, ele falou com ela e então a realidade chutou a minha cara da forma mais bruta possível.

— Você está sozinha agora — eu apenas o ouvi dizer secamente. — Era isso o que queria?

Só havia nós três na sala e eu pretendia sair no exato momento em que ele disse aquilo, mas algo me fez permanecer sentado. Sam abaixou-se um pouco, curvando as costas e colocando as mãos na mesa dela. Ela não reagiu. Sequer ergueu-se para vê-lo.

— Ei, Lia. — A voz grave dele soou pela sala enquanto ele a encarava. Eu não devia, mas alguma coisa nele me fez sentir que estava preocupado. E isso me preocupou. Talvez, depois de conviver com tanta gente falsa, eu começasse a parar de entender suas reais intenções. — Você está feliz agora?

E então ela ergueu a cabeça para vê-lo.

Era dona de uma expressão tão desolada que não seria difícil julgá-la uma morta-viva. Estava horrível. Mais horrível do que antes de me ver e chorar. O fato de ter passado metade da manhã com a cabeça nos braços fizera seu cabelo parecer um ninho de pássaros. Mais ainda.

Eu mal podia encará-la sem me envergonhar ou sentir o coração sair do peito, rolar pelo chão e ir até o outro lado da sala. Alguma coisa na minha cabeça gritava o tempo inteiro que eu era um filho da puta. Se eu não houvesse feito tudo aquilo, eu não teria que vê-la assim! Era certo que o acontecimento com o Sam acabaria com ela por um tempo, mas não seria para sempre, seria?

— Eu avisei você que não daria certo — ele insistiu. — É culpa dele.

Ela parecia não entender, então Sam prosseguiu.

— Tudo desandou quando ele apareceu, você não reparou nisso, caramba? Você se afastou de mim, você parou de gostar de mim. E eu era o único que ligava para você, e então eu fui trocado. Foi com isso que você pagou o que eu vim te dando esse tempo inteiro.

Foi inevitável não olhar os dois naquela hora. Samuel encarou-me com o canto dos olhos, quase como se quisesse matar-me apenas assim. Eu retribuí o olhar na mesma altura.

Ele queria colocar a culpa em mim, agora.

O quão ridículo aquele cara ainda podia ser fez meu estômago revirar e eu continuei olhando-o o tempo todo. Meus punhos se contorciam com força dentro dos bolsos da blusa e eu já estava de pé quando dei por mim.

Mas não, eu não avançaria nele ou demonstraria o tamanho da minha vontade de espancá-lo até fazê-lo tossir sangue. Eu ficaria só ali. Querendo ver que expressão falsa ele podia usar e quantas fezes ele ainda seria capaz de soltar pela saída errada.

E ele me olhava da mesma forma quando ela respondeu.

— Só... me deixa em paz. — A voz puramente feminina e gentil dela falhava e suas feições estremeceram. A voz, ao menos, era a mesma de sempre. Mas ela não. Ela nunca, nunca mais seria. — Eu não quero mais você perto de mim, Sam.

— Não dá! — ele exclamou em resposta, já se exaltando e andando de um lado para o outro com as mãos na cabeça. — O que você quer? Eu tô preocupado, caralho, eu gosto de você, mas ficar com aquele cara te deixou uma idiota! Você tem ideia do quão puto eu ainda tô por causa daquilo com o Kevin? Você não teria agido assim se aquele traveco escroto não tivesse aparecido e virado a sua cabeça, teria?

E então ela se ergueu da cadeira. Com as mãos em cima da mesa e o lábio inferior tremendo. Encarando-o do modo mais próximo que eu já vira em toda a minha vida. Como se, caso fosse preciso iniciarem uma discussão, ela estivesse mais do que pronta.

Sem o menor resquício de timidez ou vergonha.

Era só raiva. Apenas isso. Nada mais.

Aquela expressão... não era dela.

— Pra você... eu ainda sou apenas um palhaço, não sou? — E então a voz apareceu. Como se estivesse adormecida por tempos e tempos e finalmente nascesse de uma vez só. Como se, mesmo embargada pelo choro que vinha, ela estivesse gritando para todo o mundo. — Já acabou, Samuel, chega! Me deixa em paz, não me importa mais se você se importa ou não comigo!

— Me escuta! — Samuel se aproximou ainda mais. — Se você der o braço a torcer e pedir desculpas, então vai tudo voltar a ser como era antes, e sem ele para estragar tudo!

— Estragar o que, Samuel? — ela revidou na mesma hora. — Já existiu alguma coisa para o Alexander estragar?

Os olhos dele se estreitaram e eu levei outra bicuda psicológica. Aquilo havia saído da boca dela. Sem gaguejar, corar ou abaixar o olhar. Sem olhar para mim como se pedisse ajuda. Sem sequer deixar uma única lágrima escapar.

— Sua estúpida — ele disse, quase rosnando. — Eu era o seu melhor amigo, idiota.

— S-sim, você era! — Polliana gritou. — Porque eu não tinha escolha melhor!

E então ele recuou com a cara mais incrédula do mundo, quase rindo de descrença. E essa foi a brecha para ela continuar.

— Para falar a verdade, qualquer escolha, qualquer uma, seria melhor do que você! — Ela empurrou a mesa para a frente, fazendo-a encurralar o Samuel entre a carteira e a mesa do professor. — Mas a minha visão era limitada demais para ver isso, e então eu te escolhi. Você foi o primeiro que teve isso e você não deu a mínima, você nunca sequer olhou na minha cara quando não foi para aumentar o seu ego ou me pedir alguma coisa!

O rosto dele esculpiu-se numa carranca irritada. Absurdamente irritada. Samuel parecia tão incrédulo que mal podia escolher o que diria.

— Q-que porra você está falando, sua idiota?

— Eu, o traveco escroto aqui — Ela deu a volta na mesa e chegou perto do rosto dele —, estou dizendo que estou cansada de você!

— Ah, você está me menosprezando, agora? — Ele franziu as sobrancelhas e deu uma risada trêmula, parando de recuar. — Então me diga! Quem é que esteve com você o tempo todo, sua doente? Durante um ano inteiro, aguentando gente me enchendo o saco ou tirando com a minha cara por eu andar contigo? Por acaso você acha que é fácil andar com gente torta e sofrer por elas?

E eu senti o meu corpo inteiro enrijecer quando escutei aquilo. Ser chamado de traveco escroto não me deixara tão puto quanto saber daquilo.

Então era ele, quem ficava condenando homofobia e batendo nos outros por isso, mas também quem tinha coragem de falar uma porra daquelas para a própria "amiga" de quem viera correr atrás? Ele tivera mesmo coragem de dizer aquilo, e naquela situação? De exigir desculpas da parte dela quando, além de estar errado, vinha lhe dizer algo tão nojento quanto isso?

Minhas unhas já se fincavam na carne, tamanha a força que eu usava para apertar os punhos nos bolsos, e senti suor escorrendo pela minha testa. Fechei os olhos de tontura, tentando me situar, encostando de leve a cintura na lateral da minha carteira e escutando a minha cabeça repetir "pare de se importar, ela já não é mais cem por cento quem você gosta".

E, talvez por isso, eu tinha de sair dali.

Mas eu também tinha de ficar ali.

Ficar era a única forma de ter certeza absoluta de que ela havia mudado e o meu objetivo estava completo. Sair era o único jeito de não deixar na cara que eu me importava e que o que eu havia dito naquele dia era baboseira. Só de ficar ali, já estava claro, afinal.

Eu devia rir dos dois e me fazer de insensível. Quem sabe, bater palmas e dizer que estava feliz por ter semeado a discórdia entre os dois babacas. Falar que tudo sempre tinha sido um plano. Que eu era um enviado de Satã para acabar com a amizadezinha linda dos dois.

Mas não, eu não poderia. Eu jamais riria daquela situação, quem dirá conseguiria não me importar com tudo. Bater palmas, ficar feliz, dizer que era tudo planejado? E, na minha opinião, Satanás existia tanto quanto Deus, tanto quanto a heterossexualidade do Kevin. Ou seja, não existia.

Polliana pareceu tão incrédula com o que o Samuel dissera quanto eu.

— Eu... não acredito que você disse isso, Sam.

E ela recuou. A força, a raiva e a coragem repentinas dela recuaram. Todo o "ela" que eu sentira que se esvaíra voltou no mesmo momento. E eu sabia disso, uma hora ou outra ela apareceria. Não era possível uma pessoa mudar tanto de um momento para outro.

Eu não devia, eu definitivamente não devia, mas eu senti o meu coração se acalmar com aquilo.

E isso provou o quão infantil e egoísta eu ainda era.

Ser aquela pessoa, a pessoa de quem eu gostava... Aquilo só a faria ser ainda mais pisada por ele. Um lado meu ansiava por vê-la colocando tudo para fora e dando uns belos tapas na cara de bunda daquele poste patético, mas o outro queria vê-la quieta, dizendo que era tudo injusto, chorando e sendo quem ela sempre era. Mesmo que fosse irritante, incômodo ou partisse o meu coração. Eu gostava dela daquela forma.

E eu não entendia mais nada quando a Polliana chorou de novo e o meu coração voltou a se dividir.

Mas algo estava errado. Era claro o quanto ela sofria ao saber que, naquele tempo todo, ele se envergonhara dela, mas não era o choro de puro sofrimento ou vontade de morrer.

Era como se ela estivesse ficando livre daquilo. Daquele cara e do que ele fazia. Do que ele parecia exercer sobre ela.

Era e foi.

Isso provou-se possível assim que a Polliana logo engoliu o choro e voltou a encará-lo. A respiração estava instável e ela fungava, com os olhos não parando de lacrimejar e o nariz ficando vermelho. O peito se erguia e abaixava de raiva. Ela engolia em seco e esfregava os olhos.

Queria privar-se de chorar.

A personalidade dela e a personalidade que eu a forçara a ter oscilavam, como se ela mesma não soubesse que atitude tomar. E ficava assim, visivelmente confusa consigo mesma e confundindo-me ainda mais. Achava-me incompreensível até conhecê-la.

— Eu... nunca achei que você fosse assim.

— Eu nunca achei que você fosse assim — Samuel retrucou. — Eu nunca achei que você não prestasse, Polliana. Você nunca deixou isso claro.

— Por que é que eu não presto? — ela perguntou rapidamente e num tom alto, com os ombros e as mãos trêmulas. — É porque eu não concordo mais com tudo o que você diz, não é? P-porque eu não sou tão covarde mais? Porque eu não sou mais o saco de pancadas para quando nada dá certo na sua vida, porque eu não sou mais o estoque de elogios para quando você está se sentindo para baixo?

Ele agarrou o braço dela no mesmo instante e eu me sobressaltei aonde estava. Sam olhou para a direção aonde eu estava, mas ela não. Os olhos dele passaram por mim, mas não ficaram ali. Ele olhava para fora. Para ver se alguém escutara o que ela dissera. Estava importando-se mais com a sua faminha na escola do que com o que a "amiga" sentia.

— Que porra você tá falando, sua ridícula? — ele perguntou grosseiro quando encarou-a outra vez. — Você não se envergonha?

— Eu devia me envergonhar de ter sentimentos, Samuel? Me diga se eu devia!

— Você devia se envergonhar de ser tão falsa! — A mão enorme dele poderia agarrar mais dois pulsos finos do dela de uma vez só. — O que aconteceu com você? Por acaso, antes de brigar com sua namoradinha, você a deixou fazer uma lavagem cerebral em ti?

Ela franziu as sobrancelhas e mostrou os dentes. Puxou o braço, mas não teve força o suficiente para soltá-lo da mão dele, o que somente o fez usar a outra para agarrar seu outro pulso também. Eu o acharia um covarde filho da puta se, no momento, eu fosse alguém melhor e conseguisse tomar uma atitude.

— Eu não quero você falando assim do Alexander — foi o que ela disse. — Nem dele, nem de mim, nem de ninguém. V-você é ridículo, Sam.

Ele abriu um sorriso que poderia ser visto de costas e olhou para mim. O modo como os olhos dele brilhavam atrás dos óculos o fazia parecer mais insano e ridículo do que já era.

— Vê? Ela está te defendendo, já que você não é homem para fazer isso por si mesmo. Está gostando?

Eu estreitei os olhos, não dizendo nada e erguendo uma sobrancelha. A Liana aproveitou-se da distração e puxou de uma vez só os dois braços, recuando outra vez e olhando para baixo. Ficou em silêncio por alguns segundos, respirando pesadamente.

— Eu já te defendi demais — Liana disse a ele, erguendo os olhos azuis para encará-lo. — Você também quer ser exclusivo nisso?

— Você não me defendeu nunca. — As narinas dele se enlargueceram. — O modo como mudou de ideia rapidamente sobre mim e me trocou pelo Kevin e esse garoto novo prova isso, não prova? E depois você ainda veio querer mandar cartinha pra pedir desculpas. Esperava que eu fosse ler e dizer que estava tudo bem, quando eu estava certo?

Ela arregalou os olhos, abrindo a boca e não dizendo nada. O animal havia sido estúpido o suficiente para achar que a cartinha tosca de declaração dela fora, na verdade, um pedido de desculpas pelo dia com o Kevin. Não, isso não era nem o principal para ele ser idiota. Ele fora burro por achar que ela pediria desculpas por isso, puta merda.

Se ela houvesse pedido, eu a mataria e me mataria em seguida.

Liana abaixou os olhos de novo, corando como um pimentão vermelho.

— E-eu não troquei ninguém, eu só não achei que, por mais que eu mais precisasse de você, você precisasse de mim o tempo inteiro.

Samuel respirou fundo, cruzando os braços e desviando o olhar.

— Sorte minha que não — ele disse. — Eu me sinto bem por nunca ter realmente precisado. De gente como você, eu quero distância agora.

— Eu é quem quero ficar longe de você! — exclamou ela. — De vocês, para falar a verdade! Eu prefiro ficar sozinha, eu preferia nunca ter conhecido nenhum de vocês!

Deu para ver no rosto dele que o "vocês" o havia confundido. Eu soube na hora que era de mim que ela estava falando, mas eu não reagi. Eu não havia reagido até então, para falar a verdade. Era só mais um chute num cachorro morto.

O "você é muito legal, por que não te conheci antes, Alex?" que ela me dissera meses atrás se transformara naquilo.

Num "eu preferia nunca ter te conhecido".

"Eu prefiro ficar sozinha."

Vocês? — Ele deu risada, exibindo o conjunto de dentes perfeitos, e encolheu os ombros. Apontou para si mesmo. — Eu? — E apontou para mim. — E o seu ex-namoradinho?

Meu... namoradinho? — E ela ergueu os olhos outra vez, olhando para ele. — V-você realmente pensa isso de nós dois?

— O que você acha? — O sorriso dele alargou-se mais ainda de satisfação. — Ficando com ele o tempo inteiro e defendendo-o assim, imagina que se possa pensar algo além disso? Você gosta dessa coisa. Você deixou o seu próprio amigo de lado por causa disso. Você é o pior tipo de pessoa, sem falar que vocês ficam se agarrando pelos cantos. Todo mundo já viu, tá? Não sabia que você era vadia desse jeito.

Ela franziu assustada as sobrancelhas e eu senti meu estômago rolar outra vez. Não por timidez, vergonha ou coisa assim. Estava pouco me fodendo se haviam nos visto fazendo qualquer coisa, eu não tinha nada a esconder sobre isso. Mas agora ele chamá-la de vadia por isso... Não dava para aquele ser escroto piorar. Não tinha como.

— Dá para ver na sua cara que você gosta dele, que porra, você vai continuar se fingindo de timidazinha e se fazendo de santa? — o Samuel continuou. — Não adianta mais, tá bom? Você gosta dele e pronto. Se era isso, era só me falar. Você não precisava me por de lado e começar a ir atrás de outr—

— Como... ela gaguejou, erguendo o olhar para ele. — Como eu poderia ser capaz de gostar de alguém que eu nunca conheci?

E a minha cara caiu no chão.

Minhas pernas simplesmente moveram-se até a porta e eu não olhei para o rosto de nenhum dos dois, compensando o tempo em que ficara paralisado diante da discussão. Sequer tirei as mãos dos bolsos ou mudei a expressão. Eu continuava da mesma forma de sempre. Com cara e andar de quem não se importa, não se atinge e não sente. Jeito de quem não existe nem nunca quis existir.

E eu corri assim que virei a curva do corredor. Não estava chorando, gritando ou simplesmente tentando falar sem ter voz suficiente para isso. Eu só honrei e oficializei a minha covardia e fugi como o idiota que já vinha sendo há um bom tempo.

E quando eu entrei no banheiro, a única coisa que percebi era que passara do meu amarelo natural para o branco e que ofegava como um cachorro brincando de pegar bolinha. Eu senti mais do que nunca que infartaria em poucos minutos.

Tranquei-me num dos banheiros separados, dei descarga e abaixei a tampa do vaso para me sentar em cima. Enfiei os fones nos ouvidos no volume máximo, como se a música pudesse penetrar o meu cérebro a ponto de tirar os pensamentos dali. Não podia. Não poderia.

Encostei a cabeça na porta — bem aonde estava escrito "piroca" e "anal giratório" — e fiquei olhando para baixo, vendo sangue escorrer do meu nariz e deixar manchas vermelhas no piso branco amarelado. Seria anormal se não fosse assim a minha vida inteira. Sei lá se era pressão alta, uso absurdo de descongestionante nasal ou qualquer outra porcaria. Não importava.

Dei um murro na porta e soltei um grunhido. Meu punho doeu na hora e eu deixei a mão escorrer pela superfície de madeira, encostando minha cabeça lá outra vez e soltando todos os palavrões de que me recordava na hora.

Fechei os olhos, respirando o mais fundo que pude e tentando pensar no quão horríveis eram os gritos do Hiro, da MY FIRST STORY, ao invés de no tamanho da vontade de chorar que eu estava.

Eu já sabia desde sempre, mesmo. Ainda que ela "me conhecesse" — sendo que já conhecia —, ela não gostaria de mim. Eu nunca me deixei ficar magoado por isso ou coisa assim, mesmo quando era com outras pessoas. Ou eu tentava fazê-las gostarem de mim, ou pronto, acabou. Não tinha essa de nunca desistir ou desistir e sofrer por isso pelo resto da vida.

Era só isso.

Mas agora estava doendo e eu estava me sentindo mais do que nunca o tipo de pessoa que eu detestava, que ficava se sentindo um bosta por não agradar os outros.

Eu não tinha tentado fazê-la se apaixonar por mim, então não era nem como se eu pudesse ter desistido.

Já passara da hora de aquilo parar de vez. Eu estava cansado de verdade de cada vez pensar isso mais vezes e não fazer nada de verdade. Sabia que não devia ter aparecido na escola naquele dia, que tê-la visto e presenciado todas aquelas coisas não melhoraria em nada a situação em que eu estava.

"Merda, eu só queria vê-la mais uma vez", pensei, ignorando todo o berreiro nos meus tímpanos. "Só ver como estava. Agora, só depois das férias, não é...? E isso se eu tiver de voltar. Se não, vai ser o melhor para nós dois se tudo isso acabar logo."

Outra vez, na situação crítica, eu peguei o meu celular para poder ligar para alguém que pudesse me escutar. Minhas mãos tremiam tanto que eu mal podia ver o que estava escrito na tela, mas então eu percebi que o que deixava as letras embaçadas não era a minha tremedeira. Era o fato de eu chorar já sem nem perceber isso.

E eu não liguei para a Rebecca, eu liguei para a minha mãe.

Inventei que estavam ameaçando me bater e que eu precisava que ela me buscasse o mais rápido possível. Ela estava no salão, mas não questionou e veio. Por mais que eu nunca tivesse apanhado em Sorocaba, talvez para ela já fosse de se esperar que, uma hora ou outra, isso aconteceria. Desde o dia em que eu chegara meia-noite em casa, ela já estava achando, afinal.

Esperei o intervalo acabar antes de sair dos banheiros. Estavam me procurando do lado de fora, os inspetores e até a coordenadora. Tentaram conversar comigo numa sala e quiseram ir falar também com os alunos da minha classe sobre bullying e coisas assim, mas eu não quis. Não faria sentido, afinal. Inventei que me cortava, que Samuel me ameaçava constantemente e que não aguentava mais aquela vida. Fiz o maior drama que pude, fui embora e, no carro, minha mãe disse que eu devia fazer teatro.

Haviam buscado as minhas coisas para mim na sala, mas no fim eu esqueci a mochila pendurada num banco do pátio em que me sentara. Depois daquele dia, eu não fui mais para a escola e a minha mãe disse que eu poderia ir para a casa da minha avó, mesmo que eu não nem mesmo falado com ela sobre isso.

E o porteiro do prédio me entregou à tarde a minha mochila, que tinha um bilhete rabiscado dentro do meu caderno. E o bilhete era meu. A letra de imprensa era minha. A primeira palavra, "obrigado", estava riscada e havia sido substituída por outras, que eram em letra de mão e escritas em caneta azul clara.

"De nada", era o que estava escrito no lugar.

E então eu li o verso. A letra ainda era a minha ali, mas certa parte havia sido riscada e substituída e outra, acrescentada.

"PS: isso não significa que eu um dia irei com a sua cara, até porque eu ainda não entendi e não sei ao certo qual é a face real que você tem."

Eu gostaria de ter apanhado de verdade, ido pro hospital de verdade e morrido de verdade.

Estava tudo acontecendo rápido demais para eu processar direito.

۞

Minha mãe sequer foi dizer "olá" à minha avó quando nós chegamos, mas Anderson entrou correndo, talvez estando com mais saudade da bateria que não pudera levar ao apartamento do que da família. Seria um inferno tê-lo ali enquanto eu estivesse lá, mas saber que ele ficaria menos tempo que eu me deixava melhor. Certo, ainda assim seria incômodo. Quem sabe por milagre ele não ficasse atrás de mim, ao menos. Minha mãe já conversara com ele para que não me importunasse, mas eu duvidava muito que isso fosse resolver alguma coisa.

Foi estranho ela ter me dado dinheiro antes de ir e nos deixar lá. Eu não recebia um centavo já havia dias, mas ela quis beijar a minha cara e pediu desculpas. Eu peguei o dinheiro e agradeci, mas não respondi às desculpas. Sim, eu fui grosso. Eu sempre era.

Escutei-a dizer para eu ter juízo e a vi entrar no carro outra vez.

— Juízo — ela repetiu já dentro dele, abaixando o vidro e me olhando de esguelha. — Cuide do teu irmão. Use camisinha, e não drogas. Não coloque fogo na casa das vizinhas se elas jogarem sal grosso na sua janela outra vez.

Eu encolhi os ombros e franzi as sobrancelhas.

— Nunca coloquei fogo na casa de ninguém.

E então ela deu risada e foi embora. Esperei vê-la sumir antes de rir também, e então eu me virei e abri o portão pintado de verde para entrar, passando a bolsa com as minhas coisas em seguida e com a blusa amarrada na cintura.

A casa não mudara nada desde a última vez em que eu a vira. O tom verde claro era o mesmo do portão, e até a feiura continuava a mesma. Era um sobrado enorme, com um monte de plantas na frente e ao menos umas cinco árvores diferentes que já estavam lá desde que eu nascera. Tinha sapo para todo lado quando chovia. Passei do lado do poço decorativo feito de tijolos e cheio de musgo e vi a tartaruguinha de pedra pensando nos sapos.

Vi a parte descascada da parede onde o Anderson batera com a bicicleta quando era pequeno e comecei a rir engasgando daquilo. Ele perdera uns três dentes de uma vez naquilo e eu não entendia até hoje de onde ele tirara a grande ideia de andar de bicicleta no meio de um lugar irregular daqueles, cheio de obstáculos — lê-se "porcarias da sua avó que você morre se encostar" — e com aquelas placas de cimento para você pisar em cima. Ele nunca tivera cérebro.

A casa ainda tinha o mesmo cheiro quando eu entrei, e eu já ouvia a barulheira do Anderson no andar de cima. Cheiro de remédio, naftalina e coisas velhas. Passei pela sala enorme e branca, notando a televisão nova, o sofá de canto azul escuro e a árvore de Natal que ainda não tivera sido desmontada. Isso porque já era julho.

Minha avó estava na cozinha, mas apenas por ser domingo e por saber que nós viríamos. Não que ela estivesse cozinhando alguma coisa especial para nós dois ou algo assim. Ela estava só esperando. Logo voltaria para a loja para berrar com os meus primos.

A cozinha era revestida de azulejos de um verde meio azulado e tinha só o necessário, quase do mesmo jeito que era a casa toda. O quarto de Anderson e eu era tipo a concentração de tudo quando eu era criança e, à essa altura, já deve ter dado para perceber que a minha avó era pão dura demais para decorar direito o resto da casa. Não era como se faltasse dinheiro, não. A loja era enorme a ponto de você poder se perder no meio do tanto de porcaria made in China que tinha lá dentro.

Quando estava entrando na cozinha, recuei e voltei para a sala, prendendo o cabelo de novo e colocando a blusa. Arrumei bem os fios na frente das orelhas para escondê-las, mas não tirei o piercing da boca. Puxei as mangas o máximo que pude para a frente das mãos cheias de pulseiras, escondi os pingentes dos colares dentro da blusa e entrei.

"Dentlo da minha casa, não vai andar que nem capeta, não."

Eu me perguntava o porquê de, mesmo depois de bem mais de duas décadas no Brasil, ela ainda falava daquele jeito. Tipo, só os parentes que haviam vindo há pouco tempo ainda tinham aquele sotaque. Era engraçado, mas sei lá, fazia você se perguntar isso, mesmo.

Eu entrei e abracei aquele duende minúsculo por trás, fazendo-a perder a paciência e já me xingar antes de dizer "oi". Levei uns tabefes, escutei que estava magro e que eu e a Xin Qian ficávamos mais ridículos cada vez que ela nos via.

Xin Qian era minha prima. Sim, ela também fazia merda no cabelo e na cara e tirava a paciência de todo mundo — para falar a verdade, ela era muito mais exótica do que eu, para não dizer "estranha". Morava por perto e me ajudava a perturbar as vizinhas quando éramos crianças, mas diferentemente de Anderson, a minha mãe e eu, ela trabalhava na loja com o resto do povo também.

Em todo aquele lado da minha família, eu, minha mãe, um tio e o Anderson éramos os únicos que não tinham nomes chineses e tudo mais. O nome do meu tio era Eric e ele era o pai da Xin Qian. É, só pelo "Alexander" e "Anderson" já deve ter ficado claro que ninguém nessa família tinha lá muita criatividade. Mas eu era quem tinha o nome mais legal.

Escutei minha avó reclamar mais um pouco e depois subi, só tomando banho e me sentindo tentado à entrar no meu quarto e ver tudo o que eu não pudera levar para Sorocaba. Não o fiz por enquanto, pois tinha coisas naquele bairro que me distrairiam bem mais do que fuçar um cômodo cheio de coisas minhas.

Tipo ir atrás dos vagabundos que eu chamava de amigos. Aqueles mesmos pirralhos com quem os pais das crianças do bairro não queriam que seus filhos brincassem. Lincoln, Rebecca, a Xin Qian e mais um monte de gente. Um monte mesmo. Nem todos eram meus amigos, mas era todo o povo que escrevia "Satanás é vida", colocava frangos, vinho barato, velas pretas, rosas e cigarro na frente da casa das vizinhas que queriam nos exorcizar. Era divertido quando eu só ficava olhando.

E, só de pensar nisso, eu já sentia que estava esquecendo um pouco de tudo o que me preocupava, afinal. Ficaria tudo bem.

۞

Você só sente o que você pode sentir
Mantenha-se de pé por si mesmo
Você finalmente acordou, simplesmente para provar isso!

Tenha a sensação de que nem tudo deu errado
Embora ferido
Grite agora!

Antes de enfrentar o futuro distante
Dentro das limitações impostas
Sim, você é, sim, eu sou
Só temos uma vida para viver
Faça o seu próprio caminho antes de sua vida terminar!

Eu me pergunto...
O que é que tenho a perder
Acorde por si mesmo!
Talvez você vá encontrar
Um lugar melhor para ficar

Palavras sem significado indo embora
Não houve tempo para se lamentar!
Grite agora!

Antes de enfrentar o futuro distante
Dentro das limitações impostas
Sim, você é, sim, eu sou
Só temos uma vida para viver
Faça o seu próprio caminho antes de sua vida terminar!

Enfrentar a realidade na frente dos olhos
É a prova de se distanciar do meu passado!
Uma escuridão infinita está à frente
E a única solução é não desistir!
O meu atual futuro, só eu farei isso!
Faça o seu caminho antes de sua vida terminar!
(Deserve!!, MY FIRST STORY)


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Notas finais do capítulo

Obrigada pela leitura, gente! Eu pareço meio seca nas notas da história, mas é porque eu fico tímida por aqui, hehe. Beijos!