Defeitos de Fábrica escrita por Lorena Luíza


Capítulo 15
XV. Gravidade zero


Notas iniciais do capítulo

Não ouçam a música tema desse capítulo sem se prepararem antes. O screamo dela é horrível. Só a tradução é boa e combina.
Tá, eu sei que vocês NUNCA OUVEM, mas tô avisando ainda assim :((((((((
não me culpem depois!
Boa leitura, rssssssss
Vamos ver o que as doidas por teorias acharão desse cap.



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Para compensar um pouco o típico calor infernal de meio-dia, estava um pouco mais nublado na hora em que despiroquei e saí do apartamento. Bom, não que o ódio já houvesse passado quando eu desci do prédio para a rua. Para falar a verdade, depois de me lembrar de tantas coisas, a minha revolta só havia triplicado. Esse era o meu problema: eu só chorava quando o ódio não cabia no corpo, decidindo transbordar pelos olhos. Não me lembro de já ter chorado de tristeza, apenas de dor física ou de raiva — e isso ainda quando eu era bem pequeno. Ou novo, na verdade. Nunca fui lá muito alto.

Eu não sabia que horas eram naquele momento, mas também não estava muito a fim de saber. Lembrava-me de ter fechado os olhos na cama por uns minutos assim que saíra do banho, mas não devia ter dormido. Se houvesse realmente pregado os olhos, era óbvio que não acordaria muito em breve, e esse era outro problema: eu era péssimo para conseguir dormir, mas pior ainda para acordar. Minha alma parecia fugir do corpo quando acontecia isso.

Por causa dessa minha horrorosa dificuldade em acordar, eu só direito às aulas para poder ver a Polliana, já que as matérias eram bem atrasadas em comparação ao que eu já aprendera anteriormente. Não é como se eu devesse mentir para parecer humilde agora; escolas pagas realmente diferem muito das públicas no Brasil — ainda mais quando você se esforça nelas.

Talvez eu pudesse usar parte do dinheiro que a minha família paterna continuava sempre me dando para arrumar uma escola melhor para mim por Sorocaba, mas minha mãe o usava sempre para tentar dar uma cara de casa à lata de sardinhas aonde morávamos. É, não era à toa que eu estava há trinta anos sem ter dinheiro nem para trocar as cordas que estragavam do violão e guitarra, quem dirá para a caixinha de Nesquik de cada dia.

De qualquer forma, o fato de eu estar pobre não era uma das minhas maiores prioridades naquela hora. Para falar a verdade, eu não estava preocupado, eu estava puto e era apenas isso. Sentia falta de quando eu tinha a cabeça — e o coração — um pouco mais frios, assim como cem por cento da minha racionalidade. É, Liana definitivamente tinha levado muito de mim, mas me presenteara com o dobro disso. Com muita, muita coisa que eu não conhecia ainda. Coisas que eu nunca tivera de a oportunidade de ter, mas haviam me sido proporcionadas ao tê-la conhecido.

Quantas vezes ela já havia tentado me deixar melhor ou me fazer sorrir com coisas idiotas, também? Eu me assustava e me irritava com ela me agarrando, bagunçando os meus cabelos ou me fazendo cócegas do nada, mas sentia falta quando isso não acontecia. Certo, outras pessoas já faziam isso comigo, mas era preciso ao menos me conhecer por uns cinco anos até dar um pouco certo.

Tirando o otimismo e os risos constantes, havia uma coisa que ninguém além dela já havia me ensinado ou compartilhado comigo em toda a minha vida. Algo que eu nunca tivera, algo que eu nunca pudera ter. Algo que haviam tirado de mim antes mesmo de eu poder sequer pensar em haver.

A infantilidade.

A falta de receio em acabar agindo como um bobo, rindo de coisas ingênuas e me deixando levar pelas coisas que eu só vivia abolindo, ou então ignorando. A criancice dela que eu sempre vivi criticando, mas nunca quis verdadeiramente que desaparecesse por completo. Todas aquelas bobeiras que eu amava e odiava ao mesmo tempo.

A Liana era absurdamente criança, coisa que eu nunca pude — ou quis — ter sido. Com todas as suas besteiras, ela fora uma das pessoas que mais me irritara, mas também a única que me contagiara com isso. O teatrinho de noivado, os anéis de plástico e até o fato de ela me fazer jurar de mindinho, agindo como se isso fosse normal entre gente com mais de dez anos... Muitas vezes eu me pegava me sentindo um completo idiota por rir e às vezes me deixar levar pelas brincadeiras dela, mas eu ao mesmo tempo adorava isso. Era contraditório, sim, mas eu também era. E aprendera com ela.

Mas ótimo, agora eu teria de desaprender. Eu teria de esquecê-la, esquecer as coisas que ela me proporcionara e, do mesmo modo como eu queria que ela me visse, passar a odiá-la. Jogá-la no lixo da mesma forma como desejava jogar o meu passado e, quem sabe, a minha família. Sim, a de sangue. Porque eu sabia que a de coração nunca sairia de dentro de mim.

Esquecer e desapegar sempre era a pior parte de tudo. Eu não era o tipo de pessoa que continuava correndo atrás e se deixando ser pisado quando as coisas davam errado, mas eu ficava fodidamente irritado por dentro por algum tempo. E era isso o que me destruía. Às vezes, ficar puto acabava trazendo mais problemas do que ficar simplesmente triste e na minha.

E naquele momento eu estava puto por causa da minha mãe, do meu irmão e de mim, e meio bolado por causa da Liana. Andando no meio da rua com o braço na cara por estar chorando e escutando idiotas me falando bosta. Não virei um dedo do meio para o babaca que disse "por que a tristeza, princesa?" simplesmente por estar usando a mão para abrir a lista de contatos do meu celular.

Não foi como se eu tivesse ficado melhor quando meu dedo deslizou direto para a letra P, abrindo a conversa com a Liana pelo costume. Cara, que ódio. Não era a primeira vez que eu fazia aquilo.

Prometendo a mim mesmo que seria a última vez que eu o faria, fiquei olhando para a conversa aberta como um idiota. As últimas mensagens haviam sido dela, de vários e vários dias atrás. Eu já não estava conversando com a Lia naquele tempo e ela enviava mensagens o dia inteiro, conversando sozinha e fingindo que eu estava respondendo-a. As últimas eram as piores, as que mais me traziam culpa. Era como se ela estivesse sempre tentando lembrar-me de me sentir um suco de caju quando eu já estava me esquecendo. E, sério, ninguém suporta suco de caju.

"Espero que esteja tudo bem e que nós possamos nos ver e conversar amanhã. Vê se não falta na escola, se não eu terei ainda menos motivos para ir até lá. Você é um chato e não me responde, mas eu ainda te amo muito mais do que eu amo esfirras."

E ela sempre dizia isso.

E ela gostava demais de esfirra.

E, com outras palavras, falava sempre a mesma coisa.

"Amo você mesmo sendo um filho da puta, porque eu sou trouxa. Fale comigo amanhã, pelo amor de Deus, porque o Sam não está sendo o suficiente."

E então eu lia, não respondia e queria mais do que nunca cometer suicídio pulando de cima do vaso sanitário mais próximo.

E então eu fechei a conversa pela milésima vez naquela semana, abrindo as opções e bloqueando-a antes de sequer ter tempo para mudar de ideia. Talvez já estivesse tarde para fazê-lo, mas ainda assim o fiz. Não era como se eu achasse que ela fosse ter coragem de me mandar algo depois de tudo. Talvez eu devesse não fazê-lo apenas para dar a impressão de que realmente não dava a mínima nem para isso, mas ainda assim o fiz. Talvez eu não devesse ter printado o status e baixado a foto dela, mas ainda assim o fiz. E só pra constar, não sei se consegui apagar depois.

Fiquei tão mais estranho depois de ler outra vez aquela mensagem que sequer falei com quem realmente devia falar. Somente saí do Whatsapp, apaguei a tela do celular e enfiei-o fundo no bolso da minha calça de moletom, passando a mão desde o rosto até os cabelos e depois sentindo um nojo e uma vontade de vomitar incríveis por ter espalhado sangue de nariz e lágrimas pela cara toda. Teria voltado para casa e repetido o banho se não estivesse ciente de que espancaria o Anderson se o visse novamente — e eu não estava a fim de quebrar o meu braço (ou o dele) pela milésima vez.

Em compensação, tirei a blusa que usava e a passei pelo rosto em busca de ao menos limpá-lo um pouco. Agora a minha felicidade estava completa, mesmo. Parecer doente não era o suficiente; eu tinha era de parecer um mendigo. Um mendigo atropelado.

Só fui fazer algo realmente produtivo depois de me sentar num banco aleatório numa rua, o de um ponto de ônibus, e pegar outra vez o celular. Deslizei os contatos quase fechando os olhos para não cruzar de novo com o da Liana, mas o "R" ficava logo ao lado do "P" na minha lista. E então eu apaguei o número dela, fiquei mais bravo ainda e abri a conversa com quem eu realmente queria e precisava falar. Não era, ao contrário do que é bem mais fácil de pensar, a única pessoa que restara para eu poder falar e desabafar. Era a única com quem eu podia fazer isso.

Sim, a chatinha irritante de quem eu já falei, que começara a me perseguir quando eu era bem novo e não desgrudara até então. Não que eu quisesse que ela desgrudasse, de qualquer modo, e a prova disso havia sido o quão puto eu fiquei com o Anderson querendo ir atrás dela. Não era nem nunca havia sido minha namorada — nem nenhuma outra garota —, mas isso não era motivo para eu entregá-la a um babaca como ele. E também não era como se, sabendo de tudo o que já acontecera entre eu e ele, eu achasse que ela lhe daria uma chance.

Era retardada, sim, mas nem tanto.

Eu sabia que ela não jogaria a confiança que nós tínhamos um no outro no lixo por causa de uma carinha inocente. Ela conhecia o Anderson tão bem quanto todas as outras pessoas com quem eu andava. Conhecia-o e era amiga dele sim, da mesma forma dos outros e levando em conta o fato de ele ter uma posição até importante no nosso grupo, mas eu não a via dar brechas ou retribuir quando ele dava em cima. Porque sim, ele dava em cima de tudo o que não tivesse pinto e gostasse de mim. Até em quem não gostava, também.

Ela não era bem uma amiga, mas também não era bem uma ficante. Quando era para agir como melhor amiga, ela agia. Quando era pra ficar comigo, também ficava. Era um relacionamento bizarro e interminável, só que sem os laços e a seriedade de um namoro de verdade, com a liberdade de um sempre poder conhecer outras pessoas e contar com o outro quando nada desse certo — amizade colorida, como ela gostava de chamar.

Não fazia sentido, mas não era mesmo para fazer. Ela em si não fazia sentido, no fim das contas, muito menos o fato de ela e eu sermos próximos. Chamavam-nos de Urubu & My Little Pony quando estudávamos juntos, o que já era mais do que claro quando se refere ao quão semelhantes nós éramos. Só o fato de eu ser um morto-vivo e ela ser a coisa mais saltitante, histérica e briguenta da face da Terra já era o suficiente, para falar a verdade.

"Cara", foi o que eu simplesmente disse na mensagem para Rebecca. "Aonde você está?"

"NA HORA DE ASSUMIR NOSSO FILHO VC N APARECE NÉ", ela respondeu poucos minutos depois. “O QUE VC QUER, HEIN?”

"Sem brincadeira, Rebecca...”

“N to brincando, eu to brava msm. O q vc quer cmg?”

“Você está ocupada agora?”

"Pq???”

"Porque eu preciso falar com você agora."

"Mas pq????? >:O"”

“Posso te ligar?”

"Bitch u all right?"

Impaciente, fechei os olhos e respirei fundo, tomando o devido cuidado para permanecer calmo e não jogar o celular no chão para pular em cima dele em seguida. Rebecca sabia ser séria tão bem quanto sabia usar vírgulas decentemente.

"Eu posso te ligar ou não, Rebecca?"

"Que aconteceu migs?"

"Eu posso ou não posso?"

Ela ficou um tempinho sem responder, provavelmente olhando a tela do celular enquanto seu cérebro lento lutava para raciocinar e achar uma resposta. Ela e Liana faziam isso o tempo todo, mas ao menos a Lia respondia com algo válido e bem escrito quando finalmente digitava.

"Liga princeso, pode ligar", ela disse. "Mas vc ta legal?"

Não a respondi, esfregando o olho com uma mão e ligando para ela com o outro. Rebecca não demorou para me atender, e logo eu escutei uma voz infantil e preocupada falando freneticamente na minha orelha. Receei em abrir a boca, já me questionando se havia sido ou não uma boa ideia ter ligado para ela.

— Meu Deus, menino, aonde você tá, que barulho é esse? — ela disse quase em desespero. — Tem carros em Sorocaba? O Lincoln disse que vocês, do interior, andam de charrete!

— Rebecca, na boa... — Minha voz saiu como se eu não falasse há milênios, misturada com a respiração pesada e o meu bom humor habitual. — Você já veio aqui vezes o suficiente para saber que não. Suas piadinhas com o interior de São Paulo não fazem o menor sentido.

Ela bufou, fazendo o celular chiar na minha orelha. Dava para imaginar quase perfeitamente a cara emburrada dela, meio queimadinha de sol e redonda como uma bolacha Trakinas. Fazia tanto tempo que eu não a via que não conseguia imaginar nem de que cor poderiam estar seus cabelos atualmente, já que ela trocava mais de tintura do que de calcinha.

Aí o cabelo ficava todo ressecado e fodido, e o que ela fazia? Tacava tinta castanha ou preta, dizendo que deixaria o cabelo respirar, e não aguentava um mês até descolorir pintar de colorido outra vez. Parecia eu com o corte de cabelo. Queria comprido, mas queria curto. Um par de criaturas bipolares.

— Afe, para, eu tava tentando quebrar o gelo — justificou-se. — Já tinha me esquecido do quão chato você era, criatura.

— Você pode esquecer outra vez caso queira. — Revirei impaciente os olhos, já perdendo a paciência. — Desligue o telefone e não reclame se eu não te chamar mais, tá bom? Não quero mais falar. Tchau.

— Não! — Ouvi o barulho de alguma coisa rangendo. Provavelmente estava deitada na cama e remexera-se nela. — Não, migo! Desculpa, o que aconteceu?

Foi a minha vez de bufar. Respirei fundo, vendo uma pessoa aleatória me olhar torto e se sentar na outra extremidade extrema do banco do ponto de ônibus, como se ficar a menos de um metro de mim fosse fazê-la pegar ebola. Certo, um asiático de moletom, chinelo e meia, tattoo choker, cara e orelhas cheias de metais pendurados, cabelo e cara sujos de sangue realmente não devia parecer transmissor de coisa boa.

— Quero ir embora — foi o que eu simplesmente disse, tirando um dos pés do chinelo e mexendo no outro com ele. A animação dela não me contagiara em nada. — Morar com a minha avó de novo... Não quero mais ficar aqui. Não tenho mais nada aqui.

— Como assim? — ela perguntou confusa. — Por que, bebê? Eu sabia que você não estava bem para ter sumido por esse tempo todo e aparecido desse jeito. Aconteceu alguma coisa, né?

Franzi as sobrancelhas, sentindo o nariz voltar a arder e cobrindo-o com a blusa que tirara pouco tempo atrás. Foda-se, quem lavava era eu, mesmo. Ela soltou um "awn" que foi mais para “que droga” do que para "ai, que fofo".

— Poxa vida, Lex — falou piedosamente. — Cê tá chorando?

— Não — falei seco —, agora, não.

— Chora não, cremoso. Eu te criei pra isso?

Fechei a cara mais do que já havia fechado antes.

— Cala a boca, Rebecca.

— Tá chorando pelo quê? Se for mulher, eu juro que eu te mato, tá bom? — E então complementou: — Ou por homem, sei lá. Sempre esqueço que você também curte piroca.

— E você considera a minha mãe uma mulher?

E então ela ficou quieta.

Excluindo o barulho do trânsito e das outras pessoas que tinham se acumulado na extrema extremidade do ponto, eu podia ouvir de leve o som da respiração constrangida dela e o ruído repetido de algo rangendo. Ignorei o "você também curte piroca" tanto quanto pouco me fodi para a velha no banco, que olhava para a minha cara e balançava a cabeça enquanto dizia que o mundo estava mesmo perdido.

— Vocês brigaram, Lex? — ela perguntou receosa quando finalmente disse algo.

Dei de ombros como se Rebecca estivesse podendo me ver, respirando fundo e torcendo os lábios.

— Pra variar, ela meteu a mão na minha cara — respondi suspirando. — Eu falei pra mim mesmo que fingiria que ela e o Anderson não existem depois de vir para cá, mas não tem como. O cara quer te comer e ela defende isso. Ele veio todo tipo "oi, irmãozinho, quero pegar a Becca, mas te perguntei antes pra ficar tudo bem", velho. Que vontade de matar que isso me deu. — Lembrar-me daquilo já me deixava tão puto que até desandei no que falava. — Eu fiquei tipo, mano, ah, não deu pra ficar lá. Vem me buscar, Rebecca, puta que pariu.

— Uh... eita. Cara, espera. O Andy? Querendo ficar comigo?

Encarei incrédulo o céu que já escurecia, fingindo que era a cara dela. Tanto Rebecca quanto a Lia detestavam que eu as olhasse assim.

— Você não prestou atenção? — perguntei irritado.

— Prestei, né! Mas é sério? Tipo, mesmo?

— Por quê? — falei entre dentes. — Você está querendo?

— Não, besta! Quero saber se é sério. Depois de todas as vezes, ele ainda quer mesmo fazer uma coisa dessas? Mesmo sabendo que isso só faz você gostar menos dele?

Entortei os olhos.

— É, né.

— E a Érica, ela achou certo?

— Ela provavelmente disse isso só para ele calar a boca, mas eu não sei. Eu não sei mais o que pensar de ninguém que eu "conheço".

Ela ficou quieta por alguns segundos e eu escutei uns sons aleatórios no fundo. Devia estar ouvindo k-pop ou qualquer outra coisa que eu não suportava.

— Você já pensou que ele pode estar tentando fazer isso só pra te atingir? Sei lá, chamar a atenção... — Imaginei-a percorrendo os olhos verde amarelados pelo teto enquanto falava, da mesma forma como fazia quando nós conversávamos cara a cara. — Você sabe que o Andy gosta de ti. Desde pequeno, ele tá sempre tentando te imitar, sei lá... Não imitar mesmo, mas ele quer te agradar! Vai ver ele quer ter o mesmo que você.

Soltei o primeiro riso daquela hora, mas foi de pura ironia. Não que os do restante do dia não houvessem sido, de qualquer maneira.

— Não seja doente. Você faria isso para demonstrar que gosta de uma pessoa, então?

— Não, Lex. Pare de me ouvir com quatro pedras na mão, ok? Vai ver o Andy tá tentando chegar a outro lugar...

— Só se for ao hospital.

Escutei o chiado dela rindo no telefone e acabei sorrindo com o canto da boca.

— Qual é, tadinho do menino! — Rebecca riu piedosa. — Ele sempre age como se se apaixonasse mesmo, né? E eu sou apaixonante de verdade, sou irresistível. Não o culpe, ok? Já fiz isso com você também.

— Claro que ele se apaixona — respondi sarcástico. — Uma vez por semana.

— Ah, Alex, eu sou assim também! Tá, não uma vez por semana. Uma por mês, quem sabe! — disse rindo. — Mas tocando nesse assunto, e você? Tá apaixonado?

Empurrei o cabelo para trás da orelha e puxei a pontinha da meia de um pé com os dedos do outro. O tecido passava de branco para marrom. Não sei o que eu tinha na cabeça para sair na rua de chinelos, mas ultimamente era mesmo raro eu ter algo dentro dela.

Não estava me sentindo muito a fim de falar sobre aquilo com a Rebecca. Eu sabia muito bem que ela não tinha ciúmes ou saía reclamando das pessoas de quem eu gostava, quase da mesma forma que eu, mas ainda assim não queria falar nada — ao menos não por enquanto, e não por telefone.

— Eu... tô de boa — falei desconfortável. — Depois a gente conversa disso. Não quero agora.

Ela soltou um “hm” de dúvida com a voz fininha, soltando uma risada curta em seguida.

— Tá gostando de mim de novo? — Rebecca perguntou com naturalidade. — Parece que tá tímido! Deve ser por isso que me ligou, né?

— Eu não sou tímido nem com quem eu gosto. — Ergui as sobrancelhas, soltando um riso de escárnio. — E eu não gosto de você, Rebecca, se toca.

— Ah, você tá me zoando.

— Claro que não estou.

— Você ainda me ama que eu sei, cremoso.

— Sim, te amo, mas não estou disposto a te dar uns pegas.

Ela soltou um "own", dessa vez no sentido de “que fofo”, mas logo se calou. E então eu dei risada.

— Nossa, isso foi rude, seu pastel de flango dos infernos.

— Não foi rude, eu só disse que não estou gostando sexualmente de você.

— Pare de ferir meus sentimentos!

Revirei os olhos, repetindo a risada. A velha continuava olhando para a minha cara e a mão de mostrar o dedo do meio chegava a tremer.

Eu até queria gostar — falei simplesmente. — É sempre assim, daqui a pouco eu gosto de novo, eu acho. Eu tô sempre gostando e desgostando de você. Meu coração é absurdamente bipolar quando se trata de Rebeccas, sabia?

— Eu também gosto e desgosto de você, princeso — ela respondeu com uma voz macia, fazendo-me tentar imaginar o sorriso bobão com falhinha entre os dentes dela a quilômetros e quilômetros de onde eu estava. — Tô querendo gostar de novo também. Serião, a gente anda precisando se beijar. Vou te sugar até você desidratar quando a gente se encontrar, tá bom?

Comecei a rir de novo, encolhendo os ombros.

— Cara, isso é nojento. Eu não ando com a menor vontade de beijar ninguém.

— Eu não sou nojenta, eu sou ousada! E sei que você não vai resistir quando me ver. — O rangido se repetiu e ela deu risada, provavelmente rolando para o lado na cama. — Mas agora falando sério. Só tomo no cu ultimamente, preciso xonar por alguém tipo você outra vez, Lexy. Só daria certo contigo. Você já percebeu que a gente tá sempre tentando com outras pessoas e sempre acaba dando merda, e aí a gente vai e fica junto de novo e tudo fica bem lindo e colorido e cheiroso?

Soltei um riso nasal curto, dessa vez sem ironia. Eu estava melhor. Tipo, de verdade. O suficiente para não sentir mais vontade de enfiar o dedo do meio na cara de ninguém.

— Você que está dizendo — falei sorrindo.

— Minha vida tá uma loucura, tipo, uma loucura mesmo — ela repetiu, como se quisesse que eu perguntasse sobre. — Tô descobrindo cada loucura que cê nem imagina, Lexandre.

Eu já imaginava o que teria acontecido, mas não falei nada ao perguntar. A Rebecca não costumava ficar com pessoas muito diferentes umas das outras, e nem sempre as tretas em que ela se envolvia nunca diferiam muito também. Era sempre ela gostando de alguém, ele fazendo merda e ela indo defendê-lo e os dois tomando no brioco. Nunca mudava, tipo, nunca mesmo.

O fato de ela sempre errar o meu nome e o dos outros também nunca mudava. Sim, mesmo com uns dois milênios de amizade. Ela sabia que era Alexander, mas vivia falando Alexandre e Alexandro pra me irritar. No começo, ela achava que era Alexandre mesmo — e ainda com a pronúncia errada do "x", "chandre" mesmo ao invés de "csandre" —, mas agora tava na cara que não dava para ser tão estúpida.

— Me conte — falei. — Qualquer coisa que não seja a minha mãe e o Anderson falando merda para mim está ótimo.

— Ei, não precisa menosprezar — ela resmungou. — Mas sério... Eu não vou te contar por telefone. Você vai ficar curioso e eu só vou te contar quando vier para cá, porque aí você também me conta direito tudinho o que aconteceu aí no fim do mundo para você estar tão zoado. E nós dois ficaremos surpresos!

— Tch. Ficar curioso e surpreso? Não tô ficando surpreso com mais coisa alguma ultimamente.

— Mas dessa vez eu juro que você vai ficar. Eu também fiquei — ela disse, e então soltou um longo suspiro.

Abri a boca para responder, mas fechei-a no mesmo instante e franzi o cenho, parando de coçar um pé com o outro. Era só o que me faltava. Entortei os olhos e ri, encolhendo os ombros mais uma vez. Aquilo não fazia o menor sentido.

— Você ficou surpresa consigo mesma?

— Ééé! — Ela fez um som impróprio com a boca, provavelmente mostrando a língua. — Mas eu não vou te dar mais spoiler. Você vai ter que vir aqui se quiser saber!

Recostei-me direito ao encosto e ri.

— Se você me buscar, eu vou aí agora.

— Sim! — Ela riu. — Eu te buscaria se pudesse, tô sentindo falta de um baixinho trevoso na minha vida. Sério, foi muito chato você ter ido embora! A gente te acha um babaca, mas tá todo mundo sentindo sua falta.

Soltei um suspiro forçado o suficiente para ela escutar, sorrindo desconfiado com o canto da boca.

— Lincoln deve ter feito uma festa que durou três dias quando fui embora.

— Ah, nem fez! Ele fala bastante mal de você ainda, mas ele sempre falou, né? É um grande reclamão, mas não vive sem ti. Não existe nem a banda sem você, e ela é a coisa mais importante pro Linky.

Ergui as sobrancelhas e rolei os olhos pela rua, torcendo os lábios. “Não existe banda sem você”, ah, claro. Se realmente não existisse, então ele não jogaria na minha cara o tempo todo que acharia um cara com voz de macho de verdade para colocar no meu lugar quando eu não cantava bem o suficiente.

Lincoln era uma criatura tão insuportável, mas tão insuportável que eu já não acreditava que um dia pudera namorar com ele. Eu não achava isso simplesmente por ele não me encher de elogios, mas sim por ele ser absurdamente orgulhoso, mandão e nojento. Sentia-se algum tipo de astro tendo meia dúzia de gatos pingados correndo atrás dele. Meu estômago revirava só de lembrar daquela cara de putinha dele.

— Não me ignore, ok? Você sabe que estou dizendo a verdade. Lincoln é tipo o Andy! Ele só te enche por querer um pouquinho de atenção. Você verá quando vier para cá.

— Eu não sei se vou aí — respondi. — Eu quero ir e eu vou tentar da forma que posso dar um jeito de conseguir, mas não sei se vai dar. Depois do tanto de bosta que eu falei, eu duvido que minha mãe vá querer me escutar e me levar de boa vontade.

— Ah, poxa... Mas pede desculpas, Alex! Você não pode ficar sem ela pra sempre! Ainda está bravo por isso?

— É claro que eu tô. Você queria que eu não estivesse? Eu esperava que as coisas pudessem ter mudado, mas todo mundo continua a mesma merda, ou então piora. Eu tô piorando junto com eles, cara. Eu fiz uma quantidade absurda de cagada ultimamente. Tive meus motivos, mas eu não me sinto menos ruim.

— Pelo jeito, você tem coisa pacas pra me contar... — Ela soltou uma risada meio engasgadinha. — Queria tanto que estivesse aqui, Alex. Eu vi uma maquiagem linda na internet e tô louca pra fazer na cara de alguém... Sabia?

— Você não vai maquiar a minha cara, Rebecca. Maquie a sua.

— Não posso maquiar a minha! É maquiagem pra asiáticas!

Soltei um grunhido horroroso que fez o ponto de ônibus todo olhar para a minha cara.

— Eu não sou uma asiática — respondi —, e maquiagem é pra quem tem rosto. Que eu saiba, você tem um, não tem? Então faça em si mesma ou nas suas amigas.

— Ah, não. Eu quero te fazer um delineado bem lindo, um gradient lips, um esfu—

— Não vai fazer nada! — interrompi, mudando de assunto em seguida. — Mas sério, eu vou aí. Eu vou dar um jeito, tô falando.

— Não vai fugir de casa, né? Eu já fiz isso e deu merda, lembra?

— Não, idiota. Você acha que eu vivo numa novelinha ou num livrinho pra adolescentes? Fugir de casa à essa altura só seria dar alegrias para a minha mãe, e ela não vai se livrar de mim tão fácil assim. Tenho dinheiro pra pegar com ela todo mês e meus gatos, CDs, livros e tudo estão lá. Não sou louco, não.

— Mas então o que vai fazeeer?

Respirei fundo e torci os lábios.

— Vou abaixar a crista de verdade, como você disse, e pedir para ela me levar pra aí. Minha avó não vai me expulsar da casa dela se eu aparecer dizendo um "surprise, motherfucker" quando começarem as férias, então é só eu dar um jeito de fazer a minha mãe dirigir até aí ou então me dar grana para eu ir de ônibus. Sei lá, eu acho que ela me leva daqui uns dias. Não é como se ela não fosse ficar feliz de se livrar de mim, Rebecca, e não é como se eu estivesse contente vivendo aqui e convivendo com o que tá acontecendo. Eu vou embora dessa bosta e não faço questão de voltar.

Onze e quarenta e cinco da noite.

Foi nessa hora em que eu apareci em casa, mas não pense que eu fiquei conversando com a Rebecca até então. Eu simplesmente enfiei os fones nos ouvidos e andei, andei e andei enquanto ouvia música até a bateria do celular acabar. E então eu fui para casa, varado de fome e sentindo que poderia desmaiar e desencarnar a qualquer momento.

Para a Liana, eu ouvia apenas uma única banda. Talvez fosse influência de ela ter escutado ONE OK ROCK logo nas primeiras vezes em que nos falamos, mas ela seriamente achava que essa banda era a minha favorita acima de todas, que eu já escutara todas as músicas e que eu decorara a letra de cada uma delas. O que não eram lá grandes mentiras, mas eu não ouvia apenas isso.

Havia a incrível HEY-SMITH. Havia the GazettE. E MY FIRST STORY, Sid, Ellegarden, BLUE ENCOUNT, Pay Money To My Pain, COUNTRY YARD, UVERworld, EGG BRAIN, Coldrain, Flumpool, SECRET 7 LINE, Yui, SPYAIR, Porno Graffitti, Hello Sleepwalkers, Nightmare, SiM, Galileo Galilei, Toe, Against The Current...

E a Lia podia ler todos esses nomes e mais muitos outros na playlist, mas era só algo começar a tocar para ela se sobressaltar e soltar um: "Essa eu sei! É ONE OK ROCK, né?". E se fosse uma banda com alguma vocalista feminina, então ela ainda adicionava: "Só que tem uma mocinha cantando junto.”

Polliana devia ser sinônimo de "criatura burra" e "cu".

Pollianta.

Polliânus.

E "a garota com cabelo de tsunami amarelo de quem eu gosto".

No começo, ela prestava atenção e perguntava só sobre as músicas em japonês, mas então percebeu que ONE OK ROCK era fodástica em inglês também e a confusão começou. Liana ouvia todas as coisas comigo e perguntava: "É ONE OK ROCK?" Então eu ria e dizia se era ou não. Se era, ela ficava quieta. Se não era, ela dizia: "Bem, eu realmente estava achando ruim e esganiçado demais para ser ela. Por sinal, amei a sua camiseta, Alex."

E ela amava todas as minhas camisetas, o que às vezes fazia eu me perguntar se ela ficava elogiando tudo só para me fazer ficar com menos cara de emburrado, ou então para mudar de assunto mesmo por as músicas serem chatas — porque, sério, nada do que eu escutava tinha muito a cara dela. E eu podia estar com uma camiseta do Mickey dando dedo do meio ou com um palavrão aleatório em inglês na estampa, e ela iria rir e dizer que achara legal. Ou era mesmo tudo legal para ela, ou então Liana realmente queria tocar em qualquer assunto para poder prestar menos atenção na música que estava ouvindo comigo.

Ela sempre ficava mexendo na minha mão, enrolando os dedos no meu cabelo ou tentando passá-los por dentro das minhas pulseiras — e isso me deixava puto no começo. No começo.

"Amei isso no seu braço", a Lia dizia, olhava para mim e sorria com as sobrancelhas douradas erguidas. E ela tinha um sorriso tão bonito e uns olhos tão puros que, já pensando no que eu acabaria fazendo uma hora ou outra, eu mal conseguia encará-la direito. E isso não fazia o menor sentido, porque houveram horas em que eu fora um exímio mentiroso.

Às vezes, eu não entendia a mim mesmo, mas às vezes eu era a única pessoa que compreendia o meu jeito de pensar. Tinha horas em que só tê-la olhando para mim era o suficiente para me deixar constrangido ou nervoso, mas também havia momentos em que eu podia simplesmente agarrá-la sem sequer hesitar ou ficar vermelho. Talvez fosse porque, de certa forma, às vezes a pureza dela fizesse eu me envergonhar um pouquinho do bicho podre que eu era por dentro. Só às vezes.

Vamos voltar à Liana elogiando tudo o que via pela frente. Quando não era o braço, ela então procurava outra coisa para não ser repetitiva e olhava para, sei lá, os meus pés e soltava um "amei os seus coturnos". Claro, a Lia tinha mesmo muito jeito de quem adorava coturnos. Os All Stars e Vans dela sempre deixavam isso claro.

Bom, era isso até ela ir subindo e subindo o olhar. "Amei isso no seu pescoço." Passava para o meu rosto. "Amei isso preso na sua orelha." E então para a minha cabeça. "Amei o jeito como você não penteou o seu cabelo."

E a onda de elogios não dava certo, porque eu só dizia "obrigado" e não falava mais nada. Mas eu gostava de ouvir aquilo. Sinceramente, eu gostava de ouvi-la dizer qualquer coisa que não fosse relacionada ao quão lindo e radiante o Samuel estava hoje.

Enfim, ONE OK ROCK era mesmo a minha banda favorita. Não dá para mentir, era sim. Para ela, eu gostava de ONE OK ROCK o suficiente até para sair tatuando mais coisas sobre a banda em alguma parte do corpo — o que não era mentira, porque eu só não o fazia por estar sem dinheiro nem para comprar um copinho de café. Sério, eu já estaria parecendo um caderno de rascunhos se não fosse isso. É, é a realidade.

Ter vindo para Sorocaba vinha me deixando cada vez mais pobre, afinal. Bom era saber que meu aniversário estava chegando e talvez eu pudesse pedir algo para os meus avós, já que era para isso que servia ter gente rica na família — já que eles eram todos grudentos e chatos. Pedir algo para a minha avó materna não adiantaria nada. Se ela já era pão dura antes de o meu avô morrer, a mão fechou ainda mais depois disso. Meu aniversário com ela se resumia a ser entupido de macarrão chinês com ovo, escutar um "palabéns" mal-humorado e ser entupido de suco de uva industrializado e fora da validade.

— Você sabe que eu detesto o macarrão que você faz, vó — eu sempre dizia no dia, logo depois de escutar a quantidade habitual de reclamações sobre o meu cabelo, os meus piercings e todo o resto. — Tem gosto de vômito.

Chang Shou Mian — a criatura baixinha e atarracada respondia. — Macalão da longa vida, o fio é bem complido. Como a vida que Alê tem que viver, pla me dar muita dor na cabeça ainda.

Aí eu ria, comia tudo e ia vomitar no banheiro depois.

A primeira coisa que eu gostaria de ter feito ao chegar em casa seria ficar uma hora debaixo do chuveiro, e eu realmente teria o feito se não houvesse uma baranga sentada no sofá olhando para a minha cara. Estava deixando os chinelos ao lado da porta quando a percebi. Deu vontade de enfiar os chinelos no pé outra vez e ir dormir na rua, porque com cara de mendigo eu definitivamente já estava.

Ela estava sentada de pernas cruzadas e pijama. Não, não era uma camiseta velha e uma calça larga e comprida, e sim uma regata que massacrava os peitos e um short que só faltava deixar o útero à mostra. Bebia leite com chocolate, mexendo no celular e enrolando uma mecha do cabelo preto no dedo.

Olhou para a minha cara por alguns segundos, mas não falou nada. Estranhei o fato de não estar maquiada. Entrei sem dizer uma palavra e já arrancava a roupa no meio do corredor quando ela resolveu abrir a boca para soltar alguma coisa.

— Você está horroroso, Alexander.

Hesitei, fazendo um bolo com a minha camiseta e blusa sujos e depois o desfazendo para dobrar as peças antes de por no cesto. Ao contrário de mais cedo, senti agonia ao ver aquela coisa horrorosa e me perguntei como eu aguentara a tarde inteira sem ter dobrado as roupas antes de colocá-las ali.

Estava ignorando minha mãe com exímio sucesso até ela falar novamente.

— Quer dizer que você ainda gosta de ser mocinha por aí? — disse lá da sala. — Se gosta tanto de apanhar, então arrume um namorado sadomasoquista. Não é uma ideia melhor?

Fechei com força os punhos e respirei fundo para não respondê-la. Sentia os músculos dos braços se enrijecendo de vontade de espancar alguma coisa. Alguma coisa preferencialmente chamada Anderson.

— Por que você não me manda embora logo? — eu falei entre dentes. — Para a casa dos meus avós. Você não precisa me buscar mais caso me leve. Eu arrumo as coisas e posso até deixar os móveis para o Anderson, você só precisa me transferir para outra escola e resolver as coisas. Eu não vou perturbar mais.

A figura baixa e encorpada dela surgiu no corredor, encostando-se à parede e olhando séria para mim. Havia uma mancha enorme de chocolate no peito agora.

— Você não perturba, Alexander. — Passou a língua pelo interior da bochecha e os olhos pelo chão como se estivesse entediada. — E você não vai embora, tá bom? Só para você saber e não ficar se iludindo.

— Está com medo de ficar sem uma babá para olhar o seu filho? — retruquei simplesmente. — Ou sem um escravo para cozinhar comida para o seu namorado, limpar a sua casa e arrumar a sua cama?

— Anderson está crescido. Já foi embora há muito tempo a época em que eu precisava de você para olhar ele — ela disse inóspita. — E quanto à sua escravidão, querido... Você faz porque quer, não é?

— Como se alguém fosse fazer caso eu não fizesse.

Ela colocou a mão na cintura e curvou-se um pouco, estreitando os olhos.

— Eu faço as coisas quando você não faz.

— Você não faz nada direito. — Imitei o gesto, fechando a cara. — Nem da sua vida você cuida direito. Nem seus filhos você criou direito.

— Não, não criei. Você não seria uma mocinha covarde se eu houvesse feito um bom trabalho.

Estreitei ainda mais os olhos, respirando com certa dificuldade. Eu sabia que uma hora ou outra rasgaria com ela, mas tentei não acabar elevando demais a voz. Não evitaria dizer o que realmente queria, mas ao menos falaria baixo. Eu sabia muito bem que gritar era a chave para fazê-la se irritar de verdade.

— Me leve para São Paulo — eu disse.

— Você não vai — ela insistiu. — Sua avó não nos quer lá.

— Minha avó não te quer lá.

— Você não é um orgulho para ela. Ela não tem que te sustentar.

— Como se você já tivesse me sustentado alguma vez.

Ela fechou a cara de vez e eu senti-me outra vez na frente do espelho. Ela tinha os olhos tão idênticos aos meus que eu sentia um pouco de raiva disso.

— Eu não estou fazendo isso?

— Você está fazendo isso só agora, porque a vó não te quer lá. Ela não quer você, não Anderson e eu. Foi com você que ela brigou. Nós só viemos por termos sido obrigados.

— Eu não obrigo vocês a nada. Vocês são meus filhos e vocês têm de ficar comigo, não com a minha mãe.

— Mas nós não temos nada a ver com as bostas que você faz.

Ela ergueu uma sobrancelha.

— Mas eu tenho a ver com as bostas que vocês fazem. Eu sou a responsável aqui. Vocês são as crianças.

— Eu tenho mais juízo que você.

— É uma pena — ela disse e sorriu, vindo para perto —, pois você ainda não é maior de idade e está debaixo do meu teto. É o bastante, nenê?

Eu senti vontade de simplesmente morrer quando ela começou a acariciar o meu cabelo. Cara, eu não suportava aquela mulher. Do fundo do meu coração, a coisa que eu mais queria naquele momento era mesmo ir embora dali para nunca mais voltar. Eu não entendia como a mãe de quem eu gostava tanto anos atrás se tornara aquela coisa fria e sarcástica de agora.

— Não é o bastante — respondi entre dentes, empurrando o braço dela de lado. — Eu não queria estar falando com você agora. Eu só quero pedir para arrumar um jeito de me mandar embora desse inferno e pronto, você não precisa mais olhar para mim nunca mais na vida! Você vai poder viver uma vida livre e contente com o sr. Perfeição aí do lado, então simplesmente faça isso. Vai ser melhor para você, para ele e principalmente para mim.

— Você não vai embora, Alexander, desista. Você mora comigo.

Meu corpo doía por inteiro e eu só conseguia pensar em sumir dali o mais rápido possível antes de acabar berrando. Ao contrário do que queria, respirei fundo e apenas encarei-a. Não chegaria a lugar algum se me deixasse levar pelo que realmente queria fazer.

Se eu já mentira e já contrariara tantas vezes as minhas reais vontades, então fazer isso apenas mais algumas vezes não me mataria.

Engoli em seco e mexi a mandíbula. Minha mãe não se moveu um centímetro de onde estava, erguendo ainda mais a sobrancelha. Do mesmo jeito que eu fazia.

— Então me deixe ao menos passar as férias lá — propus —, ou o sr. Razão acabará com um braço quebrado de novo e chorará no seu pé por uma semana.

Ela franziu as sobrancelhas, dessa vez da forma confusa ao invés da irônica, e me encarou por uns segundos antes de dizer alguma coisa.

— Você realmente quer uma chance de ir falar mal de mim para a minha mãe, não é?

— Eu não vou nem ficar direito na casa dela. Só quero ficar longe daqui, dessa casa, de você e do Anderson, dessa porra de cidade. Eu não aguento mais esse lugar. Não... Não tem mais coisa alguma que me interesse aqui.

Ela soltou uma risada nasal e ergueu o queixo, me olhando por cima.

— Você está estranho. — Desencostou-se da parede, começando a andar rebolando até o quarto dela para depois entrar. — Com o seu irmão atrás dela, percebeu que ainda quer a Rebecca e terminou com a tal garota daqui. É isso o que aconteceu.

Franzi as sobrancelhas da forma mais séria que pude, quase sorrindo por vê-la estando tão errada.

— Você nem sabe de nada.

— Eu sei, sim. — Ela entrou no quarto e, antes de fechar a porta, espiou-me pelo espaço entre ela e o batente. — E eu vou pensar no seu caso.

E então eu olhei torto para ela, tomei banho e não saí do quarto até as três horas da tarde do dia seguinte.

Talvez, se eu tivesse sorte, aquela fosse a última vez em que eu dormia ali.

Talvez não.

Aonde é o lugar ao qual eu deveria pertencer...?
Não é aqui, por enquanto...
Leve-me para o lugar onde eu pertenço!
Eu não quero mais ficar neste lugar onde estou!

Quando eu me livrar do que tenho em mãos e do que a vida era para mim
Será que conseguirei algo em troca que valha o que perdi?
Eu ainda não sei qual é a melhor decisão
Não tenho certeza do que é certo
O momento virá quando eu tiver que me convencer de verdade!

Seguir em frente é a melhor escolha que farei
Eu decidirei por mim mesmo!
Eu não vou perder tudo
Não todo o tempo que até agora foi desperdiçado

Eu continuo caindo (caindo!)
Não sei o quão fundo dentro de mim
Sem tempo para esperar (esperar!)
O limite de tempo não foi determinado

Quando eu me livrar do que tenho em mãos e do que a vida era para mim
Será que conseguirei algo em troca que valha o que perdi?
Eu ainda não sei qual é a melhor decisão
Não tenho certeza do que é certo
O momento virá quando eu tiver que me convencer de verdade!
(ZERO GRAVITY, MY FIRST STORY)


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Notas finais do capítulo

SIMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMM
ELE CONHECE A REBECCAAAAAAAAAA
BJS