Defeitos de Fábrica escrita por Lorena Luíza


Capítulo 13
XIII. Doppelgänger


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente! Para compensar a demora do outro capítulo, fiz esse bem rapidinho e postei mais rapidinho ainda.
ADIVINHEM DE QUEM É O PONTO DE VISTA?
Boa leitura! HEHE



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/621071/chapter/13

 

Alex

Eu não demonstrara pena ou compaixão em momento algum. Não parecia ser como se a tristeza ou dor dela fizessem alguma diferença no que eu sentia, se é que alguém pensava que eu conseguia sentir algo, ou no que estava dizendo. Não era como se os meus sorrisos ou a ironia absurda que eu usava demonstrassem que existia em mim algo além de frieza e indiferença e, antigamente, não existia nada relevante além disso, mesmo. Mas agora existia — e por culpa dela.

Apenas a acompanhava com o olhar quando, já esvaziando o que sobrara em sua caixa d'água, ela empurrou-me contra o muro e correu em direção à sabe-se lá onde. Não virei o rosto para segui-la ainda mais, muito menos dei um passo sequer para ir atrás dela — fosse para pedir desculpas ou para recitar as falas ensaiadas que não tive tempo suficiente para falar. Descontei o ódio no lábio inferior, sentindo uma dor absurda por causa daquela porra de piercing e desfazendo o sorriso filho da puta que já não aguentava mais manter na cara.

Olhei para a rua ao meu lado e respirei fundo, trocando o murmúrio de segundos atrás por um suspiro irritado. Esperei uma hora propícia para atravessar a rua e andar mais um pouco antes de subir para casa, ainda que soubesse que o interior agora pudesse me fazer tão mal quanto o exterior.

Estava calor e eu estava com raiva de tudo. Só ficaria mais feliz caso, como acontecera tantas vezes em São Paulo, algum grupo de desconhecidos resolvesse me espancar no meio da rua. Bom, não era como se naquele momento eu não merecesse e não houvesse pedido ainda por isso. Liana era mesmo boa demais para não ter metido uma bicuda no meu saco.

Não me foi uma novidade não encontrar ninguém no apartamento quando subi. Uma mãe que só aparecia para comer e dormir e um irmão que só sabia jogar videogame, bater punheta pra desenho japonês e atrapalhar de todas as formas possíveis a minha vida: essa era a minha família, ou o que eu tinha para chamar assim. E eu preferia não tê-la em casa, principalmente quando não estava com paciência para gente berrando o meu nome, perguntando se eu vi suas malditas meias ou se ainda há algo congelado para comerem no almoço.

Entrei batendo a porta e desviei da quantidade absurda de porcarias que Anderson havia deixado em cima da mesa de centro, indo para o corredor e ignorando os trilhões de gatos que já começavam a me perseguir, já que estava com paciência para tê-los enchendo minhas roupas de pelos.

Talvez devesse ter entrado na última porta à direita, agarrado um travesseiro e começado a escrever um monte de bosta no caderno de músicas — como seria a alternativa mais inteligente para quando se está com os sentimentos transbordando —, mas continuei andando em linha reta e empurrei a porta do banheiro para entrar.

Já dei os primeiros passos arrancando a camiseta, fazendo uma bola e a jogando no cesto como se, de repente, todas as minhas manias de organização houvessem simplesmente desaparecido. De qualquer forma, essas manias não eram a única coisa que começou a sumir em mim depois da Liana. Aquela garota tinha me feito contrariar tantos princípios meus e fazer tanta coisa que eu não faria por pessoa alguma, mas tanta coisa, que uma porra de uma mania de arrumação era a minha última preocupação no momento.

Porque sim, eu contrariei coisa pra caralho por causa dela, e sim, eu gostava de verdade dela — e puta merda, eu gostava pra caralho dela. Por causa dela, eu havia mentido num dia só mais do que já mentira na minha vida inteira, e eu odiava poucas coisas mais do que mentiras. Depois de tantas vezes em que eu fora obrigado a mentir para "proteger" os outros, eu havia prometido para mim mesmo que nunca mais repetiria esse ato. E então ela aparecia e me forçava a isso.

E eu não conseguia odiá-la ainda assim.

E eu não devia estar me odiando tanto assim também, já que o que eu havia feito tinha sido o mais racional e certo possível. Eu sei disso. Eu não mentiria para mim mesmo, voltaria atrás e pediria desculpas por estar fazendo o correto. Passar a mão na cabeça dela, dizer que estava tudo bem e que eu a protegeria não era o certo e não a faria crescer, faria? E eu preferia sinceramente vê-la apanhar de uma vez só a assisti-la apanhar pouco a pouco e ao decorrer dos anos, sofrendo trinta vezes mais e não mudando nem um pouco.

A Liana burra, infantil, tosca e acima de tudo ingênua, bondosa e doce de quem eu gostava não existiria mais, mas eu preferia isso. Eu preferia matá-la ao invés de vê-la sofrendo pelo resto da vida inteira. Talvez não deva estar parecendo racional, mas sim, é. Ao menos para mim.

Talvez isso fosse, na verdade, ser egoísta, mas egoísmo e orgulho eram as coisas que eu mais tinha. Liana levou embora uns cinquenta por cento disso. E eu, ficando longe dela, esperava recuperar todo o resto de Alexander que fugira de mim e voltar a ser o que sempre fora.

Acabar com a minha cópia e voltar a ser o meu eu obscuro, o eu que a Liana achava que eu era e o eu que eu devia ser, o eu que vinha destruindo cada vez mais. O filho da puta quase insensível que sempre fora, que não dava a mínima para nada e não se fodia tanto pelos outros. Ao menos não pelas pessoas que não a obrigavam a isso.

Apoiei as mãos na minha pia manchada de violeta genciana e tinta azul no banheiro, já encarando a minha face e peito pálidos no reflexo do espelho. Estava mais horroroso, doente, deplorável e cadavérico do que de costume. O meu cabelo, que já passara havia tempos dos ombros, praticamente gritava para eu pegar a tesoura mais próxima e começar a picotá-lo como fazia sempre. Ao mesmo tempo em que eu queria um cabelo enorme, aquela visão me incomodava de alguma forma. Idiota.

Cansado, com dor e raiva, pensava em começar a minha jornada de tirar as gargantilhas do pescoço e as pulseiras dos braços quando olhei para a minha pia roxa e azul e vi vermelho se misturar nas manchas também. Ótimo, agora a porra do meu nariz estava sangrando — e olha que eu nem tinha apanhado na rua. Ficar doente quando você já tem cara de doente é uma bosta.

Repeti pela milésima vez o grunhido antes de abrir a torneira e deixar a água lavar o sangue, em seguida começando a soltar os cacarecos do braço antes de passar pelo pescoço e reparando que, com o líquido vermelho passando por cima dos meus lábios e escorrendo pelo pescoço, eu parecia uma versão asiática e afeminada de Jeff, The Killer. Sim, mais afeminada do que ele já é.

Tossi algumas vezes em frente ao espelho enquanto passava papel higiênico no rosto. Muitas coisas dividiam espaço em uma cabeça só. Muitas coisas com as quais eu não devia mais me preocupar, mas ainda me preocupava. Queria forçar-me a pensar "já não é mais problema meu" e "está tudo resolvido e acabado agora", mas a única coisa que passava pela minha mente era "quero voltar e dizer a verdade verdadeira, e não a verdade falsificada que inventei para me afastar".

Só que eu sabia que não resolveria nada agir por impulso, e sabia que esse pensamento ainda voltaria vezes demais para eu desistir tão rápido de me manter firme.

Tentando não continuar pensando tanto naquilo, eu ia deixar no lugar as pulseiras de plástico que não estragavam — ao menos não tão rápido — com água quente para ir tomar banho, mas aí cruzei com a pulseira da Liana. A pulseira e o anel da Liana, para falar a verdade. Aquele maldito e importante para caralho anel de plástico de pobre que me fez ficar ainda mais puto comigo mesmo.

Respirei fundo, fazendo cara de cu por não ter tirado aquelas coisas de mim antes. Eu poderia tê-la magoado e traumatizado ainda mais se os tivesse arrancado da mão momentos atrás e jogado no chão, falando que aquilo também era só mais uma coisa para fazê-la de trouxa e coisa assim, mas agora já era um pouco tarde demais. E eu também já havia feito coisa demais, para falar a verdade. Eu não conseguia parar de me perguntar o que diabos aquela cabeça-fraca da Liana estava fazendo agora, muito menos de querer sair pelado do banheiro e ir atrás dela logo. Mas é claro que eu não fiz isso.

Tirei as coisas do pescoço, amarrei o cabelo com uma presilha de borboleta que achei presa no box e fui tomar banho logo. Deixei a água o mais quente possível e entrei quase deixando de ser ateu, pedindo para Deus não fazer a vaca da Liana cometer suicídio ou fazer mais merda do que ela já fazia normalmente.

Desisti de não molhar o cabelo e realizei o ritual de morrer de raiva com o azul da minha nuca desbotando ao esfregá-lo, manchando ainda mais o chão e fazendo parecer que eu abortava Smurfs ali toda semana. Foda-se, eu não retocaria aquela bosta tão cedo.

O tempo que fiquei debaixo do chuveiro não deu para limpar e levar embora de mim a tamanha culpa que eu sentia, mas foi o suficiente para a minha mãe, que provavelmente fugira do salão de cabeleireiro por um minuto para vir procurar almoço, esmurrar a porta e perguntar aos berros se eu não me importava "com a porra da água do planeta e com a conta d'água". Respondi com um "já vou, caralho", já acostumado com o amor e carinho que recebia, e saí na hora em que me deu vontade.

A verdade é que eu mais fiquei parado pensando do que tomei banho de verdade debaixo da água quente. Cara, eu estava muito, mas muito puto comigo mesmo, mas não conseguia parar de pensar na Liana e no rosto dela enquanto eu vomitava um monte de bosta para fazê-la me odiar e se afastar de mim. Era impossível lutar contra isso.

Sei lá. Ao mesmo tempo em que não era aquela coisa clichê de "a fulana foi o meu primeiro amor", também não era como se eu já tivesse sentido por outra pessoa o que eu sentira pela Liana — mas isso é tão óbvio. Nós nunca nos sentimos da mesma forma sobre cada um pelo qual nos apaixonamos, não chega nem a ser relativo. Cada pessoa é muito diferente uma da outra, eu sei, acontece que a Liana era absurdamente diferente de todo mundo.

Eu já tinha me relacionado com uma montanha de gente — sim, eu sou rodado e admito —, e nenhuma das pessoas tinha metade do que ela tinha. Pergunto-me se dependeu do modo como ela foi criada, com quem se envolveu e coisas do tipo, ou se era simplesmente a índole dela que a fazia assim. Mas uma coisa é certeza: não foi de primeira que eu a achei encantadora.

A Liana sempre me foi uma chata, mesmo depois de eu começar a gostar dela. Sério, ela era chata e irritante, não dá pra negar, mas o problema é que eu achava que ela era forçada quando a conheci. Eu só pensava que não era possível uma pessoa daquela idade — e também uma pessoa tão sujeita à escutar e passar por coisas "adultas" — pudesse pensar de uma maneira tão alegre, ingênua e infantil como ela pensava. Com tantas coisas podres ao redor dela, era muito inacreditável pensar que aquele modo de agir não era fingimento. De verdade, cara.

Sério, a Liana não era nem um pouco normal, tipo, nem um pouquinho mesmo. Às vezes ela puxava assunto e comentava umas coisas tão bobinhas que eu ficava meia hora pensando se escutara realmente aquilo antes de respondê-la. Ela também ficava feliz com qualquer coisa. Era por isso que eu achava que fosse tudo fingimento e tal, porque o que tem de gente se fingindo de puro e bonzinho por aí é inacreditável. Eu sou meio ruim, mas admito. Agora ser filho da puta e ficar se fingindo? Prefiro ser mais ou menos bom e me fingir de filho da puta.

De qualquer forma, demorou um pouco para eu perceber que ela era besta assim mesmo, e demorou um pouco mais para eu perceber que gostava dessa bestagem dela. Sim, gostava, e gostava mesmo que ela não tivesse nada a ver comigo — nada meeesmo. Para falar a verdade, eu nunca tive todo aquele complexo de inferioridade e o pensamento de "fulano nunca vai ficar comigo" que ela tinha, então eu teria agarrado a Lia rapidinho se ela não fosse tão bobona e fácil de impressionar.

Se ela já ficou toda paranoica quando falei que gostava dela, imagina se eu a tivesse agarrado e dado uns beijos — beijos de verdade, não o selinho de nada que dei para ela ficar de boa — bem antes disso? Mano, acho que eu matava a menina. O Sam só não matou porque, pelo que a Lia tinha dito, ela já estava de fogo no rabo atrás dele. Agora imagina se não?

Depois de sair do banho, fui sair do banheiro e esbarrei no anel minúsculo que havia deixado no canto da pia quando ia pegar as minhas coisas. Gelei no mesmo momento, vendo a rodelinha roxa dando várias voltas ao redor do ralo e colocando desesperadamente a mão nos cantos para tentar impedi-la de cair ali.

Meu coração não devia de forma alguma ter disparado tanto por causa de uma coisa dessas, levando em conta o fato de eu querer esquecer logo tudo o que fosse relacionado a Lia, fazê-la me detestar e não pretender vê-la tão cedo, mas ainda assim fiquei puto quando vi o borrão roxo descer pelo ralo e desaparecer.

Aí eu arranquei a pulseira de plástico, taquei pelo vitrô, fiquei com raiva e fui embora.

Meu quarto, minha cama, meus cobertores, meu computador com música no volume máximo e uma caixa de lenços de papel para enfiar dentro do nariz caso ele sangrasse outra vez. Não era o suficiente para me deixar bem, mas era o suficiente para me deixar menos pior — ao menos enquanto eu não tinha ânimo para sair de casa, comprar um litro de sorvete para tomar sozinho e chorar as pitangas.

Eu não dormia ou comia direito há dias, o que fazia a Liana ter razão em me encher o saco perguntando se eu estava doente ou não. E eu estava, mas não importava. Não era como se a minha mãe fosse largar um dos coroas babacas que arrastava pra balada para olhar para a minha cara e ver se eu estava bem, e também não era como se eu quisesse o Anderson me enchendo ainda mais o saco e perguntando freneticamente "tá tudo bem, irmãozinho? Hein, hein, heeein?".

Minha mãe era exatamente o tipo que queria tudo na mão, não dava uma foda para os filhos e cuidava melhor do Pou do celular dela que da cria. Não era como se eu não conseguisse me virar sozinho e me importasse com isso, mas o Anderson não era como eu e dava para ver que ele sentia uma falta do caralho de alguém para aguentar ele.

Eu já o aguentara anos demais da minha vida para ainda tê-lo pendurado em mim e não julgava que, depois de tudo o que já tinha feito, ele merecesse isso, mas minha mãe não morreria se falasse com ele mais de uma vez por dia.

Eu não sei quanto tempo fiquei ali até o dito cujo do Anderson bater na porta e começar a encher. Fingi que não estava escutando e cobri a cabeça, ficando numa escuridão maior do que a que já estava no quarto de janelas fechadas. Aí o idiota, mesmo com a altura da música que eu escutava, perguntou se eu estava dormindo (como se um ser humano que não estivesse desmaiado pudesse dormir com um berreiro daqueles). E depois eu chamo o menino de animal e eu é que sou o malvado da história.

Eu teria gritado algo perguntando se ele era surdo se o garoto não fosse, mas ele era. Não totalmente, mas era. Fui e ignorei de novo.

— Abre, por favor, vai! — ele berrou choroso mais uma vez, parecendo ter uns dez anos a menos do que realmente tinha. — Alex! Por favor! É importante!

Descobri a cabeça só para aumentar o volume de One By One, me enfiando debaixo dos edredons que roubara do quarto da minha mãe outra vez. Taka berrava o refrão e eu já esperava que daqui a pouco um vizinho viesse encher linguiça quando Anderson berrou mais uma vez.

— É sério, Alex, tem a ver com amigos seus! É uma amiga sua! Eu preciso falar sobre ela!

Abri os olhos que mantinha fechados com força até então e descobri de novo o rosto, vendo a silhueta meio escura de Yuuki Ozaki me olhando com aquela cara de Mona Lisa num dos pôsteres do teto. Não desliguei a música, mas esperei desconfiado Anderson repetir a frase antes de fazer alguma coisa.

— É sério! Verdade mesmo! Preciso falar com você! — O fato de ele ter três anos a menos que eu, mas crescer bigode, ser alto e ter uma voz mais grossa que a minha me dava vontade de chutá-lo para fora da minha casa, ainda mais com ele sendo infantil e eu não. Mas era a genética diferente, no fim das contas. Não dava para cobrá-lo por envelhecer antes de mim, e também não era como se a vida já não o castigasse por si só. — O-olha, eu vou esperar você na cozinha, tá bom? N-não fica bravo! É que... eu já estava pensando nisso há um tempinho, mas queria falar agora, tá?

Respirei fundo e estreitei os olhos de raiva só de já imaginar do que se tratava. Joguei os cobertores de lado já bufando de ódio, saindo da cama de meias e destrancando a porta para sair. Já escutei a miadeira dos gatos assim que coloquei o pé no corredor, mas tranquei outra vez a porta para não encherem a minha cama de pelo e fui irritado para a cozinha.

Dava para sentir o fedor de cigarro vindo da varanda dali mesmo. Eu não detestava cigarros tanto pelo mal que eles faziam para o pulmão da minha mãe, mas também por deixarem a minha cozinha fedendo para caralho e sujarem todo o chão da minha varanda com cinzas irritantes de limpar. Nossa, que vontade de morrer que isso dá. Não sei por que diabos que a minha mãe tinha que ir fumar justamente na porra da varanda; que fumasse no banheiro com o chuveiro ligado, que droga!

Anderson estava sentado na mesa com cara de cachorro que levou um pé na bunda. Estreitei os olhos para ele e fechei a cara, indo para o outro lado mas não me sentando.

A possibilidade de simplesmente falar com ele era o suficiente para me deixar irritado. Eu não suportava olhar para a cara dele sem ficar com raiva. E não, não era frescurinha de irmão. Se você imagina que eu sou um filho da puta, então não conseguirá nem mesmo imaginar o quão pior que eu ele era.

— Anderson — falei entre dentes. — O que você quer?

— Você... não pode se sentar? — Cabisbaixo, ele ergueu os olhos castanho-escuros e olhou hesitante para mim. — Vamos almoçar juntos. A mãe está em casa hoje.

Olhei-o sem mudar a expressão.

— O que você quer? — falei outra vez, ignorando o convite falso e continuando a encará-lo.

Anderson encolheu os ombros, coçando nervoso o pescoço e olhando para um canto.

— S-seria útil se você pegasse os pratos no escorredor, por favor.

Respirando fundo, virei o corpo para ir à pia que ficava logo atrás de mim. O espaço do cômodo era tão ridiculamente apertado que, na maioria das vezes, esticar o braço era o suficiente para tocar todos os móveis. Não que tivéssemos muitos.

Tirei dois pratos brancos, não pegando um para mim, do escorredor de plástico e fiquei com eles nas mãos. Olhei Anderson com o mesmo rosto de segundos atrás e ele parecia estar com as palavras na garganta.

— E agora? — perguntei.

— A-ah, é... Não seria melhor se nós comêssemos primeiro?

Franzi as sobrancelhas, demonstrando impaciência. Não sei o que eu faria caso ele continuasse a agir assim, ainda mais no dia ótimo que eu estava tendo. Provavelmente descontaria a raiva que tinha de mim mesmo e de tudo o que estava acontecendo enfiando uma colher de pau no rabo daquele cara.

— Não seria — respondi inóspito. — Fale o que você quer.

Ele abaixou ainda mais a cabeça, encarando a mesa com um rosto arrependido.

— Mas você promete que não briga comigo? — deixando ainda mais claro o quão medroso, cara de pau e babaca era, ele teve coragem de perguntar. — Eu sei que você vai ficar, mas... Eu falei com a mamãe e ela acha melhor que a gente converse.

Mudei o foco do olhar para a direção da varanda. Dava para ver pelo vidro da porta a minha mãe fumando, sentada no chão e com um copo de algo transparente que definitivamente não era água na mão.

A cara sempre maquiada para disfarçar os traços chineses que ela detestava, o cabelo sempre liso e comprido, os pés sempre com saltos muito altos e com estampa de onça para não parecer baixinha.

Ela deu uma risadinha para mim e encolheu os ombros, mas eu não retribuí. Eu nunca retribuía, para falar a verdade. Perguntei-me se ainda voltaria para o salão trabalhar, levando em conta que estava bebendo, mas não abri a boca para nada. Fuzilei-a como pude com o olhar e fiz três vezes pior com o Anderson, que continuava quieto e com cara de idiota.

Cara, corpo e mente de idiota. Cem por cento idiota.

— Anderson, fala.

— Não me chama assim, que droga, quantas vezes eu tenho de falar? — Ele ergueu a cabeça, fechando a cara. — É Andy, não Anderson! Você sabe que eu detesto!

— Anderson — frisei —, fala.

Ele olhou para fora, como se esperasse que a mãe fosse berrar comigo e defendê-lo. Ela deu de ombros outra vez e ergueu uma sobrancelha num exemplar "não tenho nada a ver com isso". Decepcionado, Anderson olhou de volta para mim.

— Você... — ele sussurrou. — Eu vi você beijando um menino loiro lá fora uns dias atrás. U-uma menina, quer dizer. Eu a vi outra vez depois.

Não mudei a expressão, mas senti uma ponta de desconfiança me cutucando. Não era possível que eu estava achando que ele falaria da pessoa errada...? Ele havia visto eu e a Liana? Puta merda, se ele tivesse ido atrás dela também, eu juro qu—

— B-bom, já que você está com outra pessoa — prosseguiu —, eu estava me perguntando se estaria t-tudo bem caso eu pudesse me aproximar da Be—

Soltei os pratos sobre a mesa, interrompendo-o com o barulho da porcelana contra o mármore e fazendo ele se sobressaltar na cadeira. Eu não o olhava com tanta raiva havia meses, e ficou absurdamente claro em seus olhos arregalados que ele vira que eu não gostara nem um pouco do que estava escutando.

— Anderson — rosnei —, você não vai chegar perto dela.

— M-mas Alex, você está com outra pessoa! Não tem problema nenhum se eu tentar, você sabe que ela é uma boa garota...!

— Eu não estou com ninguém! — respondi irritado, vendo a minha mãe soltar a fumaça do cigarro e nos assistir como se o fato de podermos sair no tapa a qualquer hora não a interessasse. — Eu não me importo com isso, eu não vou deixar você ir atrás dela!

— Mas eu prometo que dessa vez eu não te trarei problemas! Eu estou até perguntando se posso, Alex, por favor! Eu gosto muito dela!

Escutar aquilo fez o meu coração disparar e a cabeça doer de ódio. Ele não se cansava. Ele não tinha vergonha na cara o suficiente para poder me dizer uma coisa dessas, ainda por cima depois de tudo o que já tinha feito.

— Eu estou cansado de você — grunhi entre dentes, respirando fundo e apoiando-me na mesa. Eu sentia meu estômago virar e estava começando a ficar zonzo. Ótima hora para isso. — Você... não gosta de ninguém.

— Gosto sim, por favor, Alex! — Ele se levantou, colocando as mãos na mesa da mesma forma que eu fiz e me encarando nos olhos. — Confia em mim, só dessa vez! Eu prometo que cuido dela!

— Você não vai fazer isso, eu já falei. — Ergui os olhos para encará-lo. — Não me irrita.

— Alexander...! — Ele franziu as sobrancelhas sob os óculos como se fosse chorar. — Se você não confiar em mim, então quem é que vai? Eu... Você é meu irmão!

Soltei um bufar alto e irritado, olhando para as minhas mãos e vendo as dele tremendo na outra extremidade da mesa minúscula. Estava incrédulo de ódio. Eu não conseguia acreditar que, depois de tanta coisa, ele ainda continuava com coragem o suficiente para dizer aquilo.

Era sempre assim. Eu tinha a impressão de que vivera a minha vida inteira em meio à um ninho de cobras. E mesmo percebendo que eu tinha veneno como elas, eu ainda não conseguia me sentir tão podre quanto.

Eu nunca faria o que o Anderson havia feito comigo.

Nunca.

Eu, que já havia abdicado de tantas coisas da minha vida por causa dele, recebia sempre aquilo em troca. Sempre traição. Sempre a prova de que ele era melhor do que eu, que os outros o preferiam ao invés de mim.

— Você ter nascido não foi escolha minha. — Desencostei as mãos da mesa, repetindo o bufar irritado e olhando-o com asco, sem sentir o menor arrependimento pelo que havia acabado de dizer. — Você nasceu para estragar a minha vida. Eu nunca gostaria de ter alguém podre como você como meu irmão.

Minha mãe se levantou e atirou o cigarro para fora do andar. Anderson franziu mais as sobrancelhas e tirou os óculos, começando a soluçar e escondendo os olhos com o braço, e ela veio até mim. Agarrou o meu pulso e me encarou com os olhos repletos de sombra escura e olheiras.

— Chega, Alexander. — O formato dos olhos e a forma dela de me encarar fazia parecer que eu me olhava no espelho. — Você não vai falar assim com o seu irmão.

— Você não tem que falar nada sobre isso! — respondi irritado e com a cabeça latejando, puxando o braço para ela me soltar e encarando-a incrédulo. — Que moral você tem para dar palpite no que acontece entre nós dois? Você nem fica em casa! Você não sabe nada sobre a nossa vida!

Ela agarrou meu braço outra vez e me puxou para perto, semicerrando os olhos e tornando quase impossível ver a cor da íris deles. As unhas falsas e compridas apertaram com força a pele do meu pulso. A expressão irritada se intensificou quando ela me respondeu, fazendo eu ficar ainda mais coberto de ódio.

— Você não tem o direito de falar assim comigo.

— Eu tenho o direito, sim! — Puxei novamente o braço, dessa vez com mais força. — E você sabe do que eu tenho o direito também? De contar para ele tudo o que você fez! Ou você acha que vai esconder os seus podres para sem—

Os olhos dela faiscaram e eu não fui capaz de terminar o que diria. Ela me deu um tapa. Um tapa forte o suficiente para me fazer virar o rosto e sentir a pele da face ardendo com o golpe.

— Você não vai falar nada. — Ela pegou novamente no meu braço e usou a outra mão para segurar meu queixo, virando meu rosto para o dela e fincando as unhas ali. — Você não sabe do que está dizendo. Peça desculpas para o seu irmão.

Soltei um grunhido de ódio e empurrei com força a mão dela para tirá-la de mim. Eu não conseguia sentir nada além de nojo daquela mulher e daquele garoto do outro lado da mesa. Por todos esses anos, eu pagava pelos erros dos outros sem poder fazer nada além de ficar calado. Eu não sabia como ainda não havia ficado louco.

Eu sabia que a forma como a olhei naquela hora transmitia todo o ódio de uma vida inteira que eu não tivera por culpa dela. Dezesseis anos, quase dezessete, que podiam ter sido totalmente diferentes se ela não houvesse sido egoísta e pensado apenas em si mesma naquela época.

— Isso é culpa sua — praticamente cuspi as palavras, passando o olhar para Anderson e então saindo da cozinha. — As coisas não ficarão assim para sempre.

Não ouvi um ruído sequer na casa enquanto ia para a sala e enfiava nos pés os primeiros calçados que encontrava. Eu não seria capaz de ficar mais um único segundo ali, me deixando ser ainda mais contagiado pelo veneno daquelas duas víboras e não podendo fazer nada para me desintoxicar.

Eu estava com raiva, dor e queria simplesmente sumir. Ir embora daquele inferno de cidade, voltar para a minha real casa e encontrar quem se importava comigo de verdade. Aproveitar que tudo estava conspirando a favor de eu sumir e agarrar a oportunidade com unhas e dentes.

Nada mais devia importar para mim e eu estava cansado. Ao mesmo tempo em que eu queria voltar a ser quem era antes e voltar a não ligar para porra nenhuma, eu sabia que eu já ligava. Eu sempre ligara. Havia mesmo uma imensidão de coisas para as quais eu não dava uma mísera foda, mas não dava para fingir que aqueles dois não me incomodavam e não transformavam a minha vida numa tortura ainda maior.

Sempre havia sido assim e, sempre que eu achava que poderia estar melhorando, tudo sempre piorava. Eu nunca me deixava mudar ou me privava das coisas por causa de todo o meu passado e as coisas que me atormentavam até hoje, mas seria uma mentira absurdamente grande se eu dissesse que não ligava para elas. Eu ligava, sim. Não deixava nada me influenciar demais ou me impedir de fazer as coisas, mas como qualquer pessoa eu me importo. Eu escolhi tanto ser humano quanto escolhi ter nascido naquela família.

Mas independentemente das consequências, eu não me manteria calado para sempre. As outras pessoas podiam se conformar com uma vida de mentira e com o ninho de cobras em que viviam, mas eu não. Eu não me manteria assim para sempre.

O meu caminho era eu quem formava, eu e mais ninguém. Nenhuma pessoa me forçaria para sempre a seguir a trilha dela. Nenhuma mentira me atrapalharia para sempre.

Saí do prédio com os olhos, a cabeça e o nariz latejando e ardendo. Estava tonto e com o rosto quente. Ao esfregar o rosto com o braço, eu gostaria de ter encontrado apenas sangue, mas havia algo com o que eu não me deparava já havia muitos anos e não gostaria de ver outra vez.

Lágrimas.

E lágrimas de puro ódio.

Mas nada mudaria com apenas um chororô e algum chilique e tristeza. Minha vida não desapareceria, eu não mudaria e as pessoas ao meu redor não sumiriam num passe de mágica.

O meu passado e o da minha família, que eram os causadores de tudo isso, nada disso desapareceria.

Eu gostaria de poder me livrar de tudo isso antes de seguir em frente.

É como se minha sombra que está saindo estivesse sendo guiada por algo
E o significado das correntes presas não foi definido até agora
Será que é porque lidei friamente... Ou então apenas de forma simples
Você se cansou de mim?
Não vou entender, mas...

Mesmo que a luz brilhe, a minha casca vazia apenas, apenas existe

Eu quero ser, quero ser
O meu eu obscuro que fugiu, como posso?
Estou tentando, estou tentando
Dando várias voltas em lugares sem fim
É o momento para eu retornar para mim mesmo
Já é tempo!
Agora estou aqui, em pé, quando estou me jogando no meu palco

Fofoca e lucro, eles estão grudados juntos à minha condição
O corpo em que vivo já perdeu as cores e está corroendo aos poucos na minha frente
Pouco a pouco, eles dissolvem e apodrecem
Como se "desde o começo estivesse dentro de você"
Com uma expressão como aquela, deixará que esta situação passe, não é?

Se eu continuar desta maneira
Eu também vou dissolver e desaparecer

Eu quero ir, quero ir
Para um lugar que não tenha nem mesmo alguma pessoa(você é um estranho)
Estou sozinho, estou sozinho
Além disso acredito que eu mesmo seja só um borrão
Há apenas uma força que faz isso
Não há uma exceção disso
O que eu escuto e o que eu faço, eles são tudo no meu coração
Você não é capaz de ver isto?

Mesmo se eu for preso à aquelas correntes
Não pretendo aceitar suas regras!

Eu quero ir, quero ir
Para um lugar que não tenha nem mesmo um momento em que se pare (você é um estranho)
Estou sozinho, estou sozinho
Além disso acredito que eu mesmo seja só um borrão
Há apenas uma força que faz isso
Não há uma exceção disso
O que eu escuto e o que eu faço, eles são tudo no meu coração
Você não é capaz de ver isto?
(Doppelgänger, ONE OK ROCK)

Eu tenho uma dúvida na minha decisão
Está presa aqui dentro, está me afundando
Eu agia como se fosse outra pessoa, mas sem motivo
O impostor
Perdeu o seu juízo!
Eu destruí o meu orgulho!

O orgulho que eu guardava dentro do meu coração
Eu não percebi que esse orgulho não me servia para nada
Tenho medo de ser eu mesmo, mas sem o orgulho que tinha
Eu estou parado aqui
Agora, o que restou em minhas mãos?
Você não consegue ver?

Eu estou perdendo minha direção na vida
Não há mais jeito de desaparecer agora!
Eu estava agindo como outra pessoa, mas sem razão
O impostor
Perdeu o seu juízo!
Eu parti o meu orgulho!

Me diga, quando o meu coração estiver preso outra vez
O que eu poderia fazer para ser livre agora? Nesse momento!
Tenho medo de ser eu mesmo, sem o orgulho que tinha
Mas eu estou parado aqui
E eu me sinto tão vivo!
Eu existo!
(Lose Your Mind, MY FIRST STORY)


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Oi, gente!
Eu já estava querendo fazer isso e colocar esse aviso aqui há algum tempo, mas só agora o fiz.
Aí vai!
Bom, gente, eu criei um grupo para Defeitos de Fábrica no Facebook. Lá, vocês encontrarão as notícias das atualizações, extras sobre os personagens e histórias e até mesmo spoilers! Vocês não vão querer perder isso, né?
Quem quiser entrar no grupo, me adiciona no Facebook. Digitem o facebook.com normalmente e coloquem /profile.php?id=100009289594184&fref=ts na frente, aí xablau! Aí está um perfil bem retardado de alguém mais retardado ainda. Aí vocês me mandam uma mensagem falando que querem entrar e eu coloco! Simples assim, né?