Amnésia escrita por G H Ephron


Capítulo 3
Capítulo 2




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Meu bip soou às dez para as cinco. Tive esperança de que fosse Chip desmarcando a consulta. Pisquei para o mostrador e o número do telefone da minha mãe piscou-me de volta. Engoli o pânico que sabia ser irracional. Fui para a sala de enfermagem e liguei para ela. Contive a respiração contando os toques. Um... dois... Atenderam.

— Mãe? — eu disse.

E ouvi a voz fina da minha mãe:

— Estou bem — tranquilizou-me ela.

Respirei fundo.

— Você bipou para mim?

— Petey, querido...

Eu me arrepiei. Minha mãe era a única pessoa no mundo que me chamava de Petey e não adiantava eu reclamar.

— Olhe, sobre esta noite...

— Esta noite?

Eu havia me esquecido. Minha mãe me convidara para jantar com ela. Uma boa ocasião para variar do sanduíche de atum que eu comia na lanchonete do instituto.

— Você se importa se transferirmos o jantar para amanhã, filho?

Minha mãe mora numa das duas casas vizinhas que Kate e eu compramos logo depois de nos casarmos. Ficam no centro de uma das regiões mais certinhas de Cambridge. Meus pais haviam se mudado para lá desde que meu pai ficara doente, há mais de cinco anos. Por isso, ir jantar com minha mãe significava abrir a porta da minha casa, dar dois passos no pórtico comum, abrir a porta da casa dela e entrar.

— Por quê? Você tem escolha melhor?

— Bem... — ela hesitou. — E que eu tenho... um encontro.

A voz fraquejou na última palavra.

— Um encontro?

Minha mãe tem sessenta e oito anos e desde que meu pai morreu, há quatro, nosso jantar semanal seguido do jogo de cartas tinha sido o ponto alto da vida dela.

— Por quê? Não posso ter um encontro?

— Com um homem?

— Não, querido, com um chimpanzé. Claro que é com um homem.

— Eu o conheço?

Esse era um jogo que jogávamos sempre, só que com os papéis invertidos.

— O senhor Kuppel — respondeu ela —, da videolocadora.

— Ah! — fiz eu.

Aquilo explicava como, incapaz diante de aparelhos eletrônicos como ela era, minha mãe aprendera tão rápido a lidar com o videocassete que eu lhe dera de presente há alguns meses. O senhor Kuppel era um simpático senhor de silhueta arredondada, com barba e bigode muito bem aparados e completamente careca. Ele consertava videocassetes e alugava filmes.

— Você não se importa, não é, meu filho?

Pena não ter me lembrado antes daquele jantar, teria sido uma desculpa perfeita para dispensar Chip. Minha mãe, sensível a todas as nuances das minhas reações, imediatamente virou a mesa:

— O que foi? Você tinha esquecido? Ou não está bem? Será que tinha outro compromisso?

A última possibilidade foi dita com uma inflexão esperançosa.

Múltipla escolha. Não me apressei a responder, saboreando o momento. Sentia-me bem voltando aos antigos papéis familiares: a confiante e resmungona mãe, o assediado filho. Cada resposta tinha um outro lado. Se eu tivesse esquecido, não ligava para ela. Se estivesse doente, precisava de uma boa canja de galinha e muita limonada. Se tivesse um encontro, teria que dar todos os detalhes.

Nenhuma das opções acima. Mas dizer a verdade estava fora de questão. Se ela soubesse que eu estava, mesmo que superficialmente, envolvido num caso de homicídio ficaria assustada a ponto até de desmarcar o encontro. Saí pela tangente:

— Tenho alguns pacientes muito agitados e toneladas de relatórios para entregar. Amanhã será melhor para mim, também.

Olhei pela janela. O céu estava coberto de nuvens e na claridade variável Chip e Annie encaminhavam-se para a entrada do prédio.

— Mãe — voltei a falar —, meu bip está tocando.

— Tem certeza de que está tudo bem?

Ela é que devia ser psicóloga, não eu.

— Tudo bem, muito bem. Tenho que correr.

— Então, corra! Faça o que tem que fazer. Não se esqueça de deixar a luz do pórtico acesa quando chegar, assim saberei que você está bem.

Clique.

Bem. Será que a palavra "bem" ainda servia para descrever como eu me sentia?

Quando olhei de novo pela janela, Annie e Chip tinham desaparecido dentro do prédio. Não havia tempo de encontrá-los no hall de entrada, então corri para a escada. Estava no meio do primeiro lance quando percebi que na verdade eu queria largar tudo e fugir para outro lado. Continuei descendo, colocando um pé atrás do outro. Era eco ou havia outros passos soando atrás de mim? Parei. A escadaria ficou em silêncio. Quando, por fim, cheguei ao terceiro andar, encaminhei-me para o saguão do elevador. Tratei de respirar mais devagar e acalmar as batidas do meu coração. Com o dorso da mão, enxuguei o suor que me cobria a testa. Entrei no corredor. Precisava caminhar até o fim dele, pois meu consultório ficava depois da curva para a esquerda. O corredor parecia-me estreito demais e o fim ficava mais longe a cada passo quando deveria ficar perto, até que, de repente, fiz a curva e lá estavam eles.

— Peter!

Chip bateu amigavelmente nas minhas costas. Retribuí o cumprimento mas parei logo depois de dar a primeira batidinha amiga. Recuei. Parecia que ele se esquecera de tirar o papelão da camisa nova antes de vesti-la.

Chip ficou vermelho e embaraçado.

— Desculpe, eu devia ter avisado... Colete à prova de bala. Estou usando isto desde...

Ele pareceu-me mais forte e corpulento no costumeiro terno escuro.

— Não em minha honra?

— Uso este colete o tempo todo — confessou.

E isso o faz sentir-se seguro?, perguntei a mim mesmo. Bom saber que eu não era o único a me sentir como se o mundo houvesse desmoronado!

— Sobre o que aconteceu no funeral... — comecei, querendo esclarecer aquele ponto — sinto muito, mesmo. Você sabe que eu não quis dizer nada com aquilo e...

Minha voz sumiu.

— Compreendo — respondeu Chip e ajeitou a gravata, parecendo desconfortável. — Todo mundo sabe.

— Ei, Peter! — Annie saiu de trás de Chip. — Senti saudade, sabia?

Deu-me um leve beijo na face.

Aqueles dois não combinavam. Ele era evidentemente conservador e ela usava óculos escuros, calças jeans, botas e camisa de flanela por baixo do blusão de aviador, uma surrada pasta de couro pendurada num ombro.

Annie saiu da própria sombra e sorriu aquele sorriso atrás do qual a piedade tenta esconder-se.

Remexi nos bolsos à procura das chaves e abri a porta do consultório. Entramos na primeira sala, que tinha no fundo uma porta que dava para outra onde havia mais privacidade. Entrei depois deles, evitando o teto baixo com sótão, e só parei depois de chegar atrás da minha mesa e sentar-me.

Chip abriu sua pasta. Annie sentou-se na cadeira ao lado dele e observou a sala. Seus olhos se detiveram no desenho a crayon que fiz de um cérebro quando tinha oito anos. Minha mãe mandou emoldurá-lo como presente de formatura. Ela engoliu com dificuldade quando fitou a fotografia de Kate pendurada ao lado do desenho. Eu tirara aquela foto na galeria de Leather District, quando ela fizera sua primeira exposição de trabalhos de cerâmica.

Naquele dia meu consultório parecia-me mais esquálido do que de costume. Até mesmo a fita que prendia o carpete junto à parede, aqui e ali, estava se esfiapando. Livros pareciam prestes a despencar da estante. As paredes cor-de-rosa precisavam de uma boa mão de tinta. Meu pôster de Vinhos da Provence ainda continuava pendurado na parede, com uma rachadura atravessando o copo. Não sei quanto tempo fazia desde que eu passara o espanador nele pela última vez.

Antes nós sempre brincávamos, trocávamos novidades antes de falar de trabalho. Daquela vez Chip foi direto ao assunto.

— Trata-se de um assassinato que aconteceu não muito longe da sua casa, faz seis meses. Um homem foi morto, a namorada dele levou um tiro e foi deixada no Cemitério Mount Auburn para morrer. Talvez você tenha lido a notícia.

— Li, sim — admiti.

Não podia evitar. Eu lia sobre todas as notícias de assassinatos que caíam em minhas mãos e aquele me impressionara mais porque a mulher sobrevivera e fora cometido tão perto de onde eu morava. Ela havia sido encontrada perto da torre de pedra do cemitério, vitoriana e com vinte e três metros. Eu costumava subir naquela torre todas as primaveras para me concentrar para a regata de canoagem que Kwan e eu tínhamos denominado "Dedão do pé de Charles" zombando do seu aristocrático nome, "Cabeça de Charles". Lá de cima via a maior parte do rio, que tinha mais de três mil quilômetros. Fazíamos a corrida de smoking e cartola, discutindo até o último instante sobre quem iria ganhar.

— Annie, quer dar os detalhes ao Peter? — pediu Chip.

— Claro... — concordou Annie, os sérios olhos cinzentos fixos em mim.

Inclinei-me para trás, cobri a boca com a mão e me mantive firme.

— Ao amanhecer de 9 de março deste ano — começou ela —, um indivíduo que passeava no cemitério encontrou uma mulher caída. Pensou que estivesse morta, saiu correndo, ligou para o 911 e quando eles chegaram viram que estava viva. Sylvia Jackson, quarenta anos, corretora de seguros de automóveis, tinha levado um tiro na cabeça.

Annie fez uma pausa. Eu estava processando o que ela dissera e me mantinha impassível. Graças a Deus treinara todos aqueles anos ouvindo histórias horríveis contadas pelos pacientes sem ser emocionalmente atingido por elas. Fiz sinal para que continuasse.

— Levaram-na para um hospital e enquanto isso a polícia foi à casa dela, que fica cerca de um quilômetro do local. Estava um caos.

Annie calou-se de novo e apertou os lábios. Fechei os olhos e ela prosseguiu:

— Havia sangue por todo lado, dentro, fora. Vidros quebrados. Tinham feito um bom serviço. Encontraram o corpo de um homem na cozinha. Ele não tivera tanta sorte. Fora aparentemente morto a tiros, mas sofrera outras injúrias. Descobriram que o morto era Tony Ruggiero, namorado da mulher.

Depois de tomar fôlego, Annie voltou a falar.

— Sylvia Jackson permaneceu em coma durante semanas. Quando voltou ao normal não conseguia andar, falava com dificuldade e não se lembrava de coisa alguma sobre o assassinato. Interrogaram outros namorados dela, que aliás tem montes deles. Interrogaram o ex-marido, Stuart Jackson. Ela estivera na casa dele no dia anterior e lhe levara um envelope cheio de borboletas de papel que fizera para o seu aniversário.

Abri os olhos. Creio que pareci surpreendido, pois Annie explicou:

— Nenhuma das evidências percebidas até aquele momento ligava os namorados ou o ex-marido com o crime. Só que os namorados têm álibi e Jackson, não. Ele disse que estava sozinho em casa naquela noite, dormitando por causa de uma gripe. Examinaram o apartamento dele e nada conseguiram.

Chip pegou o fio da narrativa.

— Então, alguns meses depois, ela ainda estava no hospital e de repente tudo veio à tona. "Eu me lembrei", disse Sylvia à polícia, "foi Stuart". Com base na declaração revistaram o apartamento de Stuart Jackson e desta vez encontraram num armário um chapéu igualzinho ao que ela disse que o ex-marido usava quando atirara nela.

Não pude conter a pergunta:

— Um chapéu?

— Um chapéu do exército, de uniforme de camuflagem — explicou Annie, — Stuart afirma que jamais o viu.

— Manchado de sangue?

Eu já havia entrado no jogo. Annie sacudiu a cabeça.

— Limpo. Encontraram alguns fios de cabelo no chapéu. São de Stuart. Mas o surpreendente é que encontraram também outros fios, que são da vítima. Até agora ninguém foi capaz de explicar isso.

— É o que acontece quando a gente se envolve — comentou Chip. — Com base no chapéu e nas lembranças de Sylvia Jackson, prenderam Stuart Jackson. Ele insiste em afirmar que é inocente. Ainda não encontraram o revólver. Dois dias depois de ter sido preso, ele tentou suicídio. Quase conseguiu.

— Então, foi internado em Bridgewater para avaliação? — perguntei.

— Isso mesmo.

Tirei os óculos e esfreguei a ponte do nariz.

— O que vocês estão me dizendo é que a única evidência que a polícia tem é um chapéu encontrado num armário do acusado, meses depois do assassinato, e as lembranças de uma mulher que foi baleada na cabeça? Nada que tenha vindo da cena do crime?

— Absolutamente nada. Mas temos um promotor que considera o caso incontestável. — Quem? — eu quis saber.

— Monty Sherman.

Eu não conhecia esse nome.

— É o astro atual do Departamento de Promotoria — esclareceu Chip — e está para ser nomeado promotor-geral. Com este caso, ele poderá levar seu nome para as primeiras páginas dos jornais. Está com um caso que tem todos os ingredientes para tornar-se espetacular: uma mulher arrasada, um morto e o marido ciumento que achou que podia resolver tudo com um crime. Clichês suficientes para a imprensa fazer estardalhaço. Se ele conseguir fazer com que o réu seja condenado...

Ele calou-se, parou no meio da frase e desviou os olhos. Deslizara com facilidade para a velha opinião de que os julgamentos de assassinatos são jogos de cena.

Se eu fosse o mesmo de antes, jamais teria feito a pergunta que fiz,

— Vocês acham que ele matou?

Olhei de Annie para Chip. Até mesmo uma única consulta era mais do que eu pretendia dedicar a um assassino. Chip olhou para Annie e ela inclinou-se sobre a mesa, na minha direção.

— Falei com ele pelo menos umas doze vezes. Se Stuart é assassino, eu sou o coelhinho da Páscoa.

O que Annie havia dito, dois anos atrás, sobre Ralston Bridges? "Esse aí é um cara perigoso." E com tais palavras definira perfeitamente o homem. Se eu a tivesse escutado...

— Estou dizendo, Stuart Jackson não é assassino — prosseguiu ela. — Esteve no hospital todos os dias durante o tempo em que Sylvia ficou em coma. Ela acordou e os tiras começaram a interrogá-la. Proibiram-no de continuar a visitá-la. Ele ficava pelos corredores como um cãozinho perdido. Ela acusou-o de assassinato, eles o prenderam e Stuart tentou matar-se.

— Pode ter sido pelo peso da culpa e desespero. É deprimente ficar num presídio.

— Pode, mas eu duvido.

Mandar Stuart Jackson para Bridgewater poderia ter sido o jeito que Sherman encontrara para ter certeza que ele ficasse bom logo. Depois de uma semana entre loucos a cadeia parece um balneário de férias.

— Por quanto tempo ela ficou em coma? — perguntei.

— Mais de um mês e meio.

Assobiei. É raro alguém ficar inconsciente por tanto tempo e recuperar imediatamente a memória dos acontecimentos que provocaram seus ferimentos.

— Ele passou por exame de Ressonância Magnética?

Ao fazer essa pergunta, compreendi que havia cruzado o limite e estava quase completamente fisgado.

— Vários — respondeu Chip. — Ainda não analisei nenhum deles.

— Stuart está em condições de suportar um julgamento? — insisti.

Chip sacudiu os ombros e eu ergui as mãos;

— Não olhe para mim...

Eu não voltara mais a Bridgewater desde... Bem, desde então. Também jamais teria me imaginado voltando à prisão, no entanto descobri que era o que eu estava fazendo. Imaginava-me dirigindo até lá, entrando, falando com Stuart Jackson numa pequena sala de exames. Ele de um lado da mesa e eu do outro, com um aparelho de botão de pânico preso no meu cinto. E se Stuart Jackson tivesse matado a ex-esposa? E se ele fosse um excelente ator representando um papel? Ralston Bridges fora talentoso o bastante para enganar o júri. Mas eu sabia. E Annie também.

Chip tirou da pasta um envelope de papel pardo, uma caneta e começou a fazer uma anotação nele. Annie pegou sua agenda e folheou-a. Eram espertos. Tinham esperado até que o meu exército de combate interior despertasse. Stuart Jackson era um homem inocente acusado de tentar matar a esposa, levado a tentar suicídio e trancado em um lugar pior do que a prisão. Esses dados poderiam me influenciar facilmente.

— Vocês estão procurando alguém para avaliá-lo? — indaguei.

— Estamos tentando encontrar a pessoa certa — respondeu Chip, massageando o queixo com o polegar e o indicador —, alguém que tenha experiência. Alguém que possa compreender o que o acusado está passando. Alguém em quem ele possa confiar.

Suspirei. "Vou vê-lo uma vez só", pensei comigo mesmo.

— Acho que eu poderia...

— Eu sei, eu sei... — assentiu Chip. — Se, pelo menos, as coisas não fossem como são... você seria perfeito.

— Não é isso. Posso ir vê-lo, pelo menos para dar uma opinião.

Não percebi se um olhar de triunfo foi trocado por Chip e Annie. Tudo que vi foi o ar aturdido dele, sua boca abrindo-se. E engoli o anzol.

— Tem certeza disso? — perguntou ele, parecendo sinceramente surpreso.

Fiz que sim e empurrei o telefone na sua direção. Um minuto depois as engrenagens se haviam posto em movimento. Eu iria ver Stuart Jackson na manhã seguinte.

Chip pegou um gordo envelope da pasta e colocou-o na minha mesa.

— Relatório da detenção. Relatórios policiais. Seria bom você dar uma boa espiada antes de falar com o acusado. Olhei o envelope como se fosse uma cobra venenosa. "Seu bastardo sorrateiro!", pensei. "Apenas uma consulta, hein? Por que trouxe todo esse material se achava que eu não iria concordar em fazer a avaliação?"

Em tom de desculpa, ele disse:

— Tínhamos esperança que você aceitasse.

Então, consultou seu relógio. Não ia me dar tempo para desistir. Fechou a pasta, fazendo o fecho de metal estalar, ergueu- se e estendeu-me a mão. Foi automático. Eu queria recuar e interrompi o aperto, retirando a minha mão. A realidade se impunha, eu não iria ter forças para aguentar. O braço dele descaiu junto ao corpo.

— Precisamos de você, Peter. Stuart Jackson precisa de você. Vai ver que essa é a coisa certa a fazer.

Fiquei olhando os dois saírem. Apaguei as luzes e permaneci no consultório às escuras, olhando pela janela, ainda não acreditando que havia concordado em avaliar mais um assassino. Já não tivera emoções e fama para o resto da vida? Fui abrir a gaveta de baixo da minha escrivaninha e peguei uma garrafa de Jameson's. Estava vazia. Tirei a rolha e cheirei.

Depois de uma hora, fechei tudo e tomei o caminho de casa. Sabia que não havia muita coisa na geladeira, que não conseguiria encarar as cinco ou seis horas sozinho até ficar exausto o bastante para adormecer. E de repente me descobri fazendo uma volta e indo para o Stavros Diner. Kate e eu costumávamos comer nesse pequeno restaurante pelo menos uma vez por semana.

Jimmy dirigia o Stavros desde que comecei a ir lá, dez anos atrás. Naquela época eu era mais um dos jovens internos do Pearce que iam atrás de um prato rápido, salgado e engordurado, depois do plantão no turno. Jimmy estava na chapa quando me viu entrar. Enxugou as mãos na enorme toalha de mesa que usava como avental e acenou. Encarei seu gesto como profunda consideração, já que agia como se minha volta não fosse surpreendente.

Sentei-me ao balcão. De repente, sentia-me faminto.

— Ainda tem mussaca?1 — perguntei.

Ele fez que não com a cabeça.

— Acabou.

— Tudo? — Relancei os olhos ao redor, notando então que o pequeno restaurante estava cheio. — Nesse caso, o que tem de bom? — Que tal um pasticcio? 2 — perguntou Jimmy.

Colocou um pratinho com suas azeitonas de primeira classe diante do meu nariz. Concordei e enfiei uma azeitona na boca. Pelo gosto que senti foi a mesma coisa que estar comendo serragem.

— Então, pasticcio e uns charutos de folhas de uva. E salada. E uma Sam Adams.

Três horas depois eu ainda estava lá. Há muito tempo que Jimmy fechara a porta, colocando o aviso de "FECHADO". Eu estava na terceira cerveja. Como nos velhos tempos, ele se queixava das vinte horas de trabalho por dia e do cunhado que só aparecia para acender as luzes.

Virou-me as costas para raspar a chapa.

— É bom ver você por aqui de novo — disse.

Sacudi os ombros e tomei o resto da cerveja.

— É verdade — insistiu Jimmy, ainda de costas. — Você está sozinho. Está aqui. Não é algo fácil de fazer. O mais difícil é voltar aos velhos hábitos.

Resmunguei alguma coisa para o meu copo vazio e ergui-me a fim de ir para casa. Ir para casa era o mais difícil dos hábitos para os quais voltar.


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Notas finais do capítulo

1. Mussaca — prato da cozinha grega.
2. Pasticcio — prato da cozinha grega, provavelmente inspirado na cozinha italiana.



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