O curioso caso de Antônio escrita por The Escapist


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Well, well, essa história é diferente da maiorias das coisas que eu já postei no Nyah! A maneira como a escrevi é diferente, se vocês reparem, dei uma puxada pro regionalismo e tá cheio de referências ao estilo potiguar de viver. A Ribeira é um bairro, um dos primeiros bairros da cidade de Natal, onde eu trabalho ♥ e onde fica a casa do Câmara Cascudo, pra situar um pouco no tempo-espaço da história.

Espero que gostem, e mesmo que não, se ler, diga a sua opinião no final.



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Antônio era um garoto normal. Aos onze anos de idade, fazia praticamente tudo que os meninos nessa idade geralmente fazem. Ninguém lhe dava muita importância, para falar a verdade, às vezes parecia que as pessoas nem sequer lembravam que ele existia. Isso até o dia que ele desapareceu. Então começaram a lembrar.

No dia em que Antônio desapareceu, ele havia acordado na mesma hora que normalmente acordava todos os dias. Às seis e meia estava de pé, vestindo o uniforme surrado da escola pública. Tomou o café da manhã que sua mãe havia preparado e depois saiu junto com André — que era um dos três irmãos mais velhos de Antônio.

— Não fiquem vadiando na rua depois da escola — dona Sônia, a mãe, recomendou quando os dois meninos estavam no portão.

Apesar da recomendação da mãe, Antônio ficou na rua depois da escola. Ele não costumava gostar das aulas, não ia bem em Português e já tinha sido reprovado em Matemática várias vezes. Com Geografia e História as coisas não eram diferentes. Na verdade, a única coisa realmente boa na escola, na opinião de Antônio, era a merenda — não que fosse a comida mais maravilhosa do mundo, ele pensava, mas ao menos havia comida. Às vezes não havia comida em casa, e isso era uma das coisas que faziam com que o garoto preferisse ficar vagando pela rua durante a tarde. Pedia uma moeda aqui, outra ali, e daqui a pouco comprava um pastel com suco.

Outra razão para que ele não gostasse de voltar para casa, era que às vezes seu pai estava bêbado. Havia gritos, e era sempre possível que alguém saísse um pouco machucado. Dona Sônia às vezes chorava, e de todas as coisas de que Antônio não gostava, ouvir a mãe chorar era a pior.

Como era de costume que o garoto só voltasse para casa à noite, a ausência dele não foi notada durante o dia inteiro. Ou talvez fosse porque João, o pai de Antônio, estivesse apagado no sofá da sala depois de passar a manhã inteira no botequim do Seu Elias tomando pinga, e dona Sônia estivesse preocupada pensando no que iria acontecer quando ele acordasse. Não dava para saber exatamente.

À noite, quando ela colocou a comida na mesa e chamou os meninos para jantar, nenhum apareceu imediatamente. Mas isso também já era uma coisa corriqueira naquela casa. Dona Sônia não esquentou a cabeça. Parou um instante na sala e ficou espiando uma parte da novela das seis. João felizmente tinha acordado calmo, mas continuava esparramado no sofá, como se aquela fosse uma extensão do próprio corpo.

— Vá comer, João, a comida tá na mesa — disse ela, sem desgrudar os olhos da televisão. Geralmente era assim que conseguia ver a novela, um tiquinho por vez, entre uma tarefa e outra. Quando a música indicou o fim de uma parte, ela chamou os filhos novamente. Sabia Deus onde as pestes estavam, mas certamente ouviriam o grito da mãe. — André, Antônio, Fernando, Gabriela, e André, venham comer agora! — Ela normalmente repetia um dos nomes, sempre achava que tinha esquecido alguém, em todo caso.

André foi o primeiro a aparecer — na verdade, ele estivera o tempo todo sentado num canto da parede lendo um livro. Gabriela e Fernando, que já eram mais velhos — com dezesseis e dezessete anos, respectivamente — chegaram depois. Houve o início de uma reclamação generalizada quando eles viram o cardápio daquela noite, que consistia numa bela tigela de cuscuz com salsichas. Mas Dona Sônia tratou logo de acabar com os queixumes dos filhos.

— Vocês tão é botando muita banca.

João, por sua vez, foi mais enfático, e enfiou o garfo numa salsicha gorda, falou com a boca cheia de cuscuz — o que não deixava de ser uma habilidade impressionante.

— Se não quiser comer, melhor, sobra mais pros outros.

Apesar das reclamações, entretanto, não sobrou comida nos pratos. Dona Sônia já estava colocando a louça na pia quando se deu conta de que o Antônio não tinha jantado.

— Menino, cadê o Toin, hein? — perguntou aleatoriamente, e ninguém soube dar uma resposta. — E não deixaram nem comida pra ele.

— É pouco, pra ele deixar de ser besta — João resmungou. — Fica vadiando na rua até essa hora porque quer. Se quisesse comer, estava em casa.

— Não precisa falar desse jeito, João.

— Vou arrancar as orelhas dele pra ver se aprende alguma coisa.

Ele ainda resmungou, mas a mulher ficou calada. Os filhos terminaram de comer e começaram a sair da mesa. No final, restou apenas André, raspando o prato até a última migalha. Dona Sônia precisou tomar o prato dele para poder lavar.

— Deixe de ser lerdo, André. — O garoto não respondeu nada, mas continuou sentado à mesa, enquanto sua mãe lavava a louça. Poderia até ajudá-la, se ela pedisse, mas ela nunca pedia. — Onde foi que seu irmão se meteu, hein, Dé? — A pergunta até o pegou de surpresa e o menino encolheu os ombros.

— Não sei.

— E tá ficando tarde — Dona Sônia disse, mais para si mesma, e algo em seu coração começou a apertar. Talvez fosse o que costumava chamar de intuição de mãe.

À medida que a noite foi passando, a preocupação foi aumentando. Ela foi à porta da rua por mais de uma vez, esperando ver o filho voltando, mas isso não aconteceu. Mesmo João, com sua pouca sensibilidade peculiar, estava achando aquilo estranho, era mais do que traquinagem do moleque.

— Daqui a pouco ele chega — disse, finalmente, numa tentativa desajeitada de acalmar a mulher. A rudeza havia se tornado uma coisa tão comum ao João, que ouvi-lo falar daquela maneira calma era uma surpresa para Sônia.

Ela tentou ficar calma e convencer a si mesma que daqui a pouco o menino entraria pela porta, jogando as sandálias para um canto e iria dormir todo sujo porque a preguiça de tomar banho seria maior que qualquer coisa. Infelizmente, isso não aconteceu.

Passava da meia-noite e nada de Antônio aparecer em casa. Dona Sônia tentava de todas as maneiras segurar o choro, mas não via como isso era possível.

— Você tem que ir atrás dele, João, pelo amor de Deus — disse ao marido, que apesar de tudo, já estava se preparando para dormir. Ele hesitou e até quis argumentar, mas parece ter recuado diante da agonia da mulher. Mesmo resmungando, vestiu uma camisa e saiu para a rua à procura de Antônio.

João voltou para casa sem nenhuma notícia. Ninguém havia visto o garoto, nem mesmo os moleques com quem ele costumava jogar futebol sabiam dele. Disseram que ele não havia aparecido para jogar naquela tarde, na verdade.

Perguntaram novamente a André aonde seu irmão tinha ido depois que saíram da escola, e o garoto repetiu que não sabia. O que era verdade. Apenas tinha ido junto com Antônio, mas depois que chegavam à escola, eles não se encontravam mais, cada um ia para sua sala e depois só se viam em casa. André gostava de voltar caminhando com os próprios colegas e não prestava muita atenção ao irmão menor.

— Você deveria cuidar dele — acusou Dona Sônia, com os olhos rasos d’água e isso magoou o rapazote.

— Não é minha culpa, se é isso que senhora tá querendo dizer, mainha — a voz de André soou chorosa. Ele era um rapaz calmo e falava muito pouco geralmente. Bem, talvez fosse culpa dele, afinal, era o irmão mais velho. — O Toin não obedece ninguém.

Para isso, Sônia não teve argumentos. Antônio podia ser o mais novo, mas sem dúvida era o mais genioso dos quatro filhos, e a verdade era que, por mais que ela dissesse para que ele não ficasse na rua até de noite, ele ficava.

Dona Sônia não dormiu naquela noite. Ficou chorando e rezando baixinho, enquanto ouvia os roncos do marido deitado ao lado. Perguntava-se onde estava o seu menino e o que poderia ter acontecido com ele, mas nenhuma coisa boa lhe vinha à mente.

À primeira luz da manhã, ela resolveu sair e procurar por si mesma. Não poderia deixar isso nas mãos imprestáveis de João. Ele não chegou a reclamar, afinal também estava preocupado com o filho, à sua própria maneira. Mas resmungou quando percebeu que a mulher não havia preparado nada para comer no café da manhã.

Ela percorreu todo o bairro, perguntando a todo mundo que conhecia — e que não conhecia também — se alguém tinha visto Antônio. Mas, a exemplo do que tinha acontecido na noite anterior, ninguém sabia nada, ao menos nenhuma informação precisa. Algumas pessoas até davam sinais de reconhecimento quando ela perguntava, lembravam que não era raro que os moleques do bairro jogassem futebol na pracinha, mas era difícil dizer com certeza se Antônio era um deles, havia tantos e tão parecidos, afinal.

Foi até a escola, mas lá também não sabiam dele. Os meninos da turma de Antônio disseram que depois da aula do dia anterior, ele tinha ido embora sozinho. Marquinho, um dos amigos de Antônio, contou a Dona Sônia que ele o havia chamado para ir “dar um rolezinho” na praça da Ribeira, mas ele dissera não, pois sua própria mãe tinha jurado esfolar as costas dele se ele passasse o dia vadiando na rua e não estudasse.

Sônia não fazia ideia do que seu filho poderia fazer na praça da Ribeira, mas não pensou muito nisso. Pegou um ônibus e foi até lá. Desceu na parada e começou a dar voltas aleatórias pela praça. Não havia nada incomum. O dia parecia normal para os transeuntes que iam e vinham a caminho do trabalho — o fluxo maior de pessoas naquela área devia-se principalmente ao fato de ter alguns órgãos públicos concentrados ali. Debaixo das árvores, ocupando os bancos com tinta descascada, havia alguns moradores de rua. Não era surpresa para Sônia, sabia que alguns mendigos mantinham residência permanente por ali.

Havia de fato alguns moleques correndo pela praça. Crianças que deveriam estar na escola, pensou Sônia. Mas de Antônio, não havia o menor sinal. Ela perguntou a muitas das pessoas que passavam, ao dono do quiosque da praça e ao vendedor de churrasquinho que tinha um carrinho estacionado próximo à parada de ônibus. Ninguém vira o seu filho. Ou melhor, não tinham como saber, com tantos moleques que viviam por ali.

Com as esperanças minguando, Sônia decidiu ir até a delegacia dar queixa. Censurou a si mesma por não ter feito isso antes. Nunca tinha entrado numa delegacia em toda a sua vida, e não sabia muito bem o que fazer quando chegou lá.

Havia muitas pessoas na antessala e ela teve que esperar por uns trinta minutos até que chegou sua vez de falar com o policial de plantão. Era um homem gordo, de rosto avermelhado, que tinha manchas de suor embaixo das mangas da camisa cinza do seu uniforme. Ele olhou para Dona Sônia com pouca simpatia e a pobre mulher murchou um pouco mais, mas lembrou que estava ali porque seu filho estava desaparecido e encontrou forças para falar. Mesmo assim, sua voz soou fraca quando ela relatou ao policial o que havia acontecido.

— Quer dizer que ele não voltou, hein? — o policial perguntou, coçando o queixo. O tom de voz dele não denotava nenhum interesse real no assunto, parecia apenas estar cumprindo alguma formalidade. Dona Sônia assentiu, com lágrimas ameaçando cair dos seus olhos. — Olha, dona, infelizmente a gente não pode fazer muita coisa.

— Como assim, doutor delegado? — Dona Sônia ouvira alguém chamar o delegado de doutor uma vez na novela e achou que isso seria adequado, afinal, ele era uma autoridade. O policial não se preocupou em esclarecer que ele não era o delegado e nem tinha nenhum doutorado. — O meu filho só tem onze anos.

— Eu sei, dona, eu ouvi o que a senhora falou.

— O senhor precisa fazer alguma coisa, doutor.

— Escuta, é muito triste o que aconteceu com o seu filho, mas como eu disse, a polícia não pode fazer muita coisa. — Dona Sônia não conseguiu conter as lágrimas dessa vez. Ouvir aquele homem falar daquela maneira desumana era horrível. O policial, no entanto, parecia indiferente à dor da mulher. — Infelizmente, a gente não tem nem homens suficiente pra ir pra rua. Hoje mesmo, eu tô sozinho aqui, os outros policiais estão atendendo às ocorrências. Não tem policial suficiente — ele repetiu, quando o choro de Sônia tornou-se mais evidente. — Não tem carro para fazer a ronda — acrescentou, o choro da mulher só fez aumentar, o que acabou por deixar o policial um pouco nervoso e acuado. — A senhora devia cuidar melhor do seu filho, agora é melhor rezar pra ele aparecer são e salvo.

O policial não se deu conta de que suas palavras, que pretendiam ser reconfortantes, causaram ainda mais dor à mulher que estava sentada e soluçava à sua frente.

— Mas ele só tem onze anos — repetiu, com a voz fraca.

— Minha senhora, a senhora precisa entender, todos os dias crianças desaparecem de casa.

Dona Sônia compreendeu, com o coração em frangalhos, que não obteria ajuda alguma daquele homem. Levantou-se com certa dificuldade e se retirou da delegacia sem se dar ao trabalho de se despedir do doutor delegado.

Mas não voltou logo para casa. Não poderia, tinha que continuar procurando por Antônio. A senhora deveria cuidar melhor do seu filho. A dureza daquelas palavras esmagava seu coração. Será que isso era algum castigo? Será que ela não tinha cuidado bem dos filhos? Deus não seria tão cruel por castigá-la dessa maneira.

Voltou a procurar. Andou por praticamente toda a cidade, mas o resultado foi o mesmo. As pessoas ouviam sua história, ficavam comovidas até, mas limitavam-se a lamentar o acontecido. Ninguém demonstrava nenhum interesse em ajudar, as pessoas sequer pareciam entender que Antônio era apenas um garoto de onze anos perdido no mundo, sem a mãe, sem ninguém. A verdade é que ninguém se importava. Como o policial fizera questão de frisar, muitas crianças desapareciam de casa, Antônio era só mais um.

Uma semana após o desaparecimento de Antônio, nada havia mudado. Dona Sônia retornara à delegacia, dessa vez acompanhada pelo imprestável do marido. Sua esperança era que talvez o delegado levasse mais a sério a história ao ver a presença de um homem, talvez João impusesse algum respeito, apesar de ser um notório pinguço. Não soube se foi a presença de João, mas ao menos conseguiu uma promessa de que a polícia iria procurar seu filho. E talvez aquela promessa fosse apenas mais um cumprimento da obrigação do policial de plantão, mas pelo menos era alguma coisa.

A vida não voltou ao normal na casa da família Silva, apesar de ter seguido em frente. Era como se, só agora que ele não estava mais lá, pudessem perceber como a presença de Antônio fazia aquela casa diferente. Quando ele entrava em casa correndo, suado, assobiando ou cantando alguma daquelas músicas que aprendia na rua. Quando ele chupava a sopa fazendo barulho, ou enfiava a mão no prato do irmão e roubava um pedaço de carne. Ou quando ele ficava sentado na sala, com os pés sujos em cima do sofá, assistindo ao jogo do Flamengo e repetindo os palavrões que ouvia o pai dizer. No lugar dele agora havia apenas o vazio.

Sônia ainda voltava à rua todos os dias, com esperança de que ele voltaria. Seu coração de mãe rejeitava a ideia de que o pior tivesse acontecido. Não era justo que uma criança como Antônio tivesse simplesmente morrido.

Os dias passaram. Às vezes rápido, às vezes pareciam se arrastar. A dor no peito não cedera nenhum milímetro. A lembrança daquele menino esperto, de olhos pretos e sorriso largo ainda viveria na mente da mãe por muito tempo.


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