Não se discute escrita por Phaerlax


Capítulo 5
É pior do que cobra cascavel


Notas iniciais do capítulo

Surprise, bitches. Bet you thought you'd seen the last of- *soterrado pelos tomates*

EU SOU UM AUTOR HORRÍVEL SIM ADMITO
MAS VOU TERMINAR ESSA FIC EM NOME DO GRANDE LIMÃO

(Esse capítulo é meu presente pra minha amiga secreta no amigo secreto da Panelinha. Tecnicamente dar capítulo é contra as regras mas vejo as leis e digo kkkk leis)

Foi bem difícil escrever esse. Eu não sabia como desenvolver as coisas com o devido peso. O desespero de prazo final ajudou. Todos os capítulos dessa fic foram sofridos por meses e escritos em menos de 3 horas, pra falar a verdade.

Liva mindisgulpi eu lhiamu
te faço uma história de verdade algum dia



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Haviam subestimado a fera que era a ponte Rio-Niterói aos fins de semana e pago o preço em tempo de vida e gasolina.

Flávio pulou para fora do carro tão logo estacionara, quase começando uma sessão de yoga a fim de livrar seus ossos e músculos da experiência traumática. Respirou fundo o ar puro – surpreendentemente puro, na verdade; não era suposto que São Gonçalo cheirasse a lama? Deveras intrigante.

Uma singela ressaca lhe atacava a nuca e seu braço esquerdo estava estranho por ter dormido de mal jeito no sofá. Leonardo e Lívia não se deram ao trabalho de levá-lo pra cama, os demônios. Por que se envolvia com aquelas pessoas cruéis?

E, falando em demônios...

— Comporte-se. Por favor — Leo rogou, não pela primeira vez, enquanto também saía e batia sua porta — Ela nunca vai dar paz se não tiver uma boa impressão. Você não imagina o nível de dedicação que ela pode alcançar­ quando tá a fim de ser insuportável.

— Claro. Nunca conheci ninguém parecido, afinal — retrucou enquanto contornava o carro, seguramente fora do alcance de cotoveladas retaliatórias. Em vez disso recebeu o olhar irritado padrão, contra o qual já tinha anticorpos. Sorriu em resposta. — Não se preocupe, eu posso ser o genro dos sonhos. Sogras, professores, a arte da bajulação não tem limites. E tem certeza de que não tá exagerando? Olha que casinha adorável. Não tem como a dona ser isso tudo.

A residência à frente da qual havia estacionado era uma casa bastante espaçosa, pintada de salmão, com um pequeno mas pitoresco quintal decorado por estatuazinhas de sapos e canteiros de flores nas janelas. Um caminho de pedras atravessava o gramado até a porta da frente, em que havia um capacho simpático dando boas-vindas a visitantes. Faltava uma cerca branca e uma garagem pra qualificar como releitura do american dream, mas chegava perto o bastante.

— Só tenta não discutir política. — Leonardo suspirou, tirando os fones e percorrendo o caminho de pedras. Tinha a expressão carregada, como a de quem sabe que precisa apresentar um seminário num futuro próximo. — Seja o que deus quiser.

—Espera, eu nunca fiz isso antes! — Apressou-se atrás do outro logo após trancar o carro e dar uma ajeitada final no cabelo com o reflexo da janela. — Devo segurar sua mão, ou talvez o ombro...?

Não obtendo resposta, Flávio optou por ficar um pouco atrás e cruzar os braços enquanto esperava.

Então a campainha tocou. Flávio engoliu em seco e inspirou fundo. Apesar de o dia não estar quente, sentia sua frequência cardíaca oscilar e um princípio de suor no rosto, que enxugou prontamente. Aquilo ia realmente acontecer, né? Não havia como destocar a campainha. Tentava esconder, mas sentia-se nervoso e fora de seu elemento. Sua mente divagava e se fixava em detalhes pífios, como o desconforto que sentia vestindo aquela camiseta simples – Leo insistira que roupa social não pegaria bem. Quando ela atendesse a porta, deveria dar boa tarde ou dizer que era um prazer conhecê-la? Um abraço seria apropriado, sim? Não?

Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa-

A porta abriu sem qualquer aviso, revelando uma figura que não devia ter muito mais de um metro e meio.

— Leonardo Gomes Cipriano! Que bom tu ter lembrado que tem mãe! Lembra de chegar na hora marcada da próxima vez —a voz era áspera, talvez erodida pelo excesso de uso, e vinha de uma mulher pequena e gasta. Linhas de expressão fundas lhe decoravam o rosto; o cabelo era quebradiço e tingido de vermelho, preso em um coque comportado. Parecia mais velha do que os 50 e poucos anos de que fora avisado — Já esquentei a comida de novo. Francamente. A semana inteira sem dar notícias, decide avisar de véspera que vem almoçar e ainda tem o despeito de atrasar? O mundo fora do ninho estraga as crias, ah, se estraga-

— Também te amo — Leo apressou-se em se curvar para frente e abraçá-la longamente, cortando — Eu mandei mensagem sobre o trânsito. Ponte.

— Hrm. O careca botou ela lá em 75. Já tem obrigação de saber quando enche! Poderia ter usado o tempo parado pra pensar numa desculpa melhor. — A mulher se desvencilhou do filho e virou-se para Flávio.

Por um momento ela apenas o encarou, erguendo a cabeça pra isso, o queixo apoiado em uma mão. Seus olhos eram verdes e afiados, constatou. Leo não os puxara – na verdade, eram bastante diferentes num geral. Flávio sentiu uma gota de suor escorrer entre as omoplatas e ao longo da coluna.

Então a mulher abriu um largo sorriso. Os dentes amarelados o teriam desconcertado em qualquer outra situação, mas eram um alívio na atual conjuntura.

— Ora, ora, se não é o famigerado Flávio. Eu ouvi muito sobre você, querido. Um pouco mais do que gostaria ou do que a minha paciência aguentava, às vezes — Nisso, ela olhou de esguelha significativamente para o filho.

— Ah... ouviu? Digo- — O que ela tinha ouvido? Deus, o que ela sabia sobre ele, afinal? Deveria ter perguntado. Ok, ok, tudo bem, se apresente- não, imbecil, ela acabou de te reconhecer. Só cumprimente... aaaaaaaa — Boa tarde. É um prazer conhecê-la, senhora Cipriano.

Ele falou como um calouro que tinha decorado a fala inicial e estendeu a mão. A mulher não entendeu o gesto ou simplesmente o ignorou, puxando-o para baixo e plantando um selinho em cada bochecha. Seu sorriso se alargava e Flávio decidiu sorrir também, esperando não parecer muito embaraçado.

— Não estamos no fórum, criança. Relaxe essa gravata; me chame de Eva — Ela o cutucou no esterno ao se afastar. Tinha unhas bastante compridas. Doeu um pouco — Venham, antes que tenha que esquentar de novo. Eu nunca achei que meus filhos me apresentariam alguém dessa forma nessa altura do campeonato. Me sinto de volta nos anos 80! A nostalgia é agradável, devo admitir. Cozinhar, nem tanto.

Flávio pensou em algumas coisas pra dizer, mas viu-se apenas acatando a sugestão e entrando atrás dos dois. Imediatamente entendeu de onde Leo tirara aquele gosto por excessos de cores e estampas florais; a sala parecia a toca de um hippie selvagem. Havia uma rústica TV de tubão ao fundo, desligada. Da cozinha vinha o som de vozes eletrônicas e, agora que prestava atenção, cheiro de comida – molho de tomate, pra ser preciso.

— Você me avisou em cima da hora que queriam almoçar aqui, então não tive tempo de aprontar nada de mais — Eva os guiou até a cozinha animadamente, suas sandálias estalando contra o assoalho. — Felizmente, a China nos deu a dádiva do macarrão, um dos seus maiores presentes à humanidade. Abaixo da experiência socialista, claro!

Opa.

Dirigiu um olhar a Leo, que o encarou de volta intensamente, prometendo violência caso ele mordesse a isca. Reunindo toda sua força de vontade, Flávio conseguiu conter os impulsos de refutar aquele absurdo.

— Leo vive dizendo que sente falta da comida da senhora — disse, puxando assunto enquanto o casal se sentava à mesa redonda que havia no combo cozinha/sala de jantar. A toalha de mesa tinha cores demais.

— É mesmo, é? Que estranho — ela ergueu uma sobrancelha pintada para o filho enquanto trazia a travessa de macarronada fumegante e a pousava — Que eu lembre, sempre reclamou, essa cria ingrata.

— É apego emocional, mãe — Flávio sentiu uma pisada forte em seu pé por baixo da mesa. Ok, ok, sem inventar citações pra encher linguiça. A banca avaliadora não tava brincado em serviço. — Mas você sabe que eu sempre achei seu macarrão sabor molho de cachorro-quente reciclado muito... bom.

— Devia ter passado fome pra ver o que era bom! — Eva pesadamente pousou copos e uma jarra de suco amarelo indistinto sobre a mesa. Apesar do tom, mantinha um sorriso no rosto. Tudo bem até então.

A mulher começou a se servir sem cerimônia, enchendo o prato com uma porção generosa, e ergueu o rosto para Flávio, pegando-o de surpresa.

— É bom ter a oportunidade de te agradecer pessoalmente, querido. Se não fosse por você, esse ingrato teimoso ainda estaria me enchendo o saco todo o dia, reclamando de acordar cedo e do tempo que demora pra atravessar a Poça. Como se fosse problema meu ele não ter ido pra UFF! Espero que não esteja sendo um estorvo tão grande quanto costuma ser.

— Eu que agradeço por ter permitido que ele se mudasse pro Rio — disse, antes que que a retrucada de Leo saísse da garganta. Não queria participar de um episódio de Casos de Família naquele dia. Amanhã já seria ruim o suficiente. — Ter companhia é muito melhor, tanto pras contas quanto pra... tudo, mesmo. Mas a propósito, ele não tem tem moral alguma para criticar a culinária alheia, sabia? Mês passado tentou fritar um frango que-

— Você quer dormir no sofá de novo? Porque é assim que se dorme no sofá de novo.

A cama é tecnicamente minha... Mas seu pé não estava sendo pisado, então supunha que Leo estava brincando.

— Bem, digamos apenas que uma frigideira nova foi comprada — A senhora riu-se alto. Satisfeito consigo, Flávio enrolou uma garfada do macarrão e o colocou na boca.

Meu deus do céu.

Imediatamente largou o garfo e sorveu um longo gole de suco (que identificou como agora como de maracujá), sôfrego. Sal. Tanto sal. Entendeu agora por que o copo de Leo já estava na metade.

— Maravilhoso. Seria ótimo se a comida do bandejão fosse assim — Se notou a gafe, Eva não demonstrou; estava ocupada abrindo um pacote de queijo ralado. Leo escondeu o riso com um longo gole de suco.

— Oh, obrigada. Tente imitar essa educação, se não ficou com a que eu te dei, Leonardo. Você acredita que esse ingrato me mandou um áudio de aniversário? Todos os irmãos me ligaram, mas ele-

— Cacete, eu já disse que...

E lá vamos nós.

Conforme a quantidade de comida diminuía, a conversa mantinha-se num padrão. Eva perguntava algo sobre a faculdade ou qualquer coisa e acabava usando o assunto para criticar o filho de alguma maneira, até Flávio desconversar e introduzir um assunto novo e banal, que ela de alguma forma conseguia aproveitar para fazer treta de qualquer jeito.

Estava bastante feliz em constatar que tudo para que Leo o alertara sobre a mãe só se aplicava a ele mesmo. Ela oscilava entre conversar alegremente com Flávio ou ignorá-lo enquanto atacava o filho, que respondia na mesma moeda. Os dois não eram muito fisicamente parecidos, mas reclamavam da mesma forma; Leo claramente puxara o gênio da mãe. A agradecia por isso, sempre achou que ele com raiva era muito fofo – à exceção de quando começava a arremessar objetos muito pesados.

 — Você pode ficar... com o maldito edredom... eu trago... — Atualmente discutiam sobre coisas que ele havia levado na mudança sem pedir permissão, ou algo assim. A jarra de suco estava quase vazia, gasta no combate ao sal. Leo bocejou enquanto falava, então começou a esfregar o rosto. Parecia bem cansado, o que era estranho; Flávio nunca tinha visto ele cansar de discutir — Hã...? Eu-

— Dormiu mau ontem, meu amor? Logo vi, logo vi. Ssh, tudo bem — Subitamente maternal, Eva se levantou e apressou-se para o lado do filho, segurando-o antes sequer que Flávio notasse que ele estava tombando para frente.

— Que? Leo, cê tá-

Silêncio. Deixe-o dormir. — Eva decretou, imperiosa, levando um dedo aos lábios de Flávio e mantendo-o afastado. A unha comprida espetou seu nariz. Ela ainda sorria, mas sem mostrar os lábios, um sorriso fino, debochado, que Flávio conhecia muito bem por ver no espelho com frequência.

Ela ajeitou os braços do filho sobre a mesa, cruzando-os de modo a permitir que ele apoiasse a cabeça. Leo balbuciava incoerências baixinho, mas logo parou, totalmente adormecido. Começou a ressonar levemente.

— Pronto, pronto. Deixe que descanse. — Eva demorou-se ali por alguns momentos, fazendo cafuné no cabelo comprido, antes de levantar-se e começar a recolher os pratos. — Agora podemos conversar a sós, querido genro. Venha, me ajude com a louça.

Flávio ainda encarava o namorado adormecido, piscando confuso. Ele tinha dormido um pouco menos, mas a ponto de desmaiar do nada? Não precisava de um médico? Água com açúcar?

— Que...

— Não me ouviu? — A mulher pigarreou audivelmente enquanto depositava sua carga na pia. — Deixa ele. Vai ficar bem, só fora do ar por algum tempo.

— Você... dopou o seu filho? — Flávio a fitou, assombrado. Em que tipo de novela havia estacionado?

— Certa resposta! — Eva riu enquanto remexia no gabinete acima da pia, então estalou a língua impaciente — Ele ficará bem. Venha.

What the actual fuck.

Flávio se levantou, um tanto trêmulo, levando a jarra vazia. Será que tinha sido envenenado também? No que tinha se metido, Jesus?

O melhor a fazer é obedecer. Tem facas perto dela. Socorro.

— Isso, deixa aqui. Eu lavo e você seca. Fuma? — Percebeu que ela agora tinha em mãos uma caixinha de madeira estampada com o rosto sorridente de Simón Bolívar e cheia de charutos cubanos. Um deles já estava entre os dedos.

— N-não, obrigado — Sorriu forçado, rezando para aquela excentricidade não ser na verdade psicose plena.

Mentira! Eu sei que fuma — Ela ligou o fogão por um breve momento, acendeu o charuto na chama e o pôs na boca — Leonardo me contou muitas coisas. Vamos ter uma conversa franca, meu amor. Procure não mentir mais, sim?

Sim senhora — Seu braço quase bateu uma continência involuntária

Flávio pegou a esponja úmida que lhe foi oferecida e pôs-se a trabalhar, rezando para que seu talento em blefe ajudasse a esconder o fato de que não sabia quase nada sobre lavar louça.

— Então... — Eva exalou uma nuvem de fumaça, parecendo mirar nele. O cheiro dava inveja. Cuba podia ser um fracasso em todas as áreas do desenvolvimento humano, mas sabiam fazer charutos como ninguém — Finja que foi apontado para um cargo de confiança e está passando por uma sabatina. Eu farei algumas perguntas cujas respostas já sei. Sugiro que conte a verdade. Pronto?

Flávio assentiu energicamente. Socorro.

— Ótimo. Vamos começar fácil. Há quando tempo vocês tão namorando e como se conheceram? — A pergunta veio acompanhada do som de um copo sendo cheio. Não sabia com o que, porque seu olhar estava fixo no prato que esfregava.

— Quatorze meses. Numa festa comemorando o fim de um período.

— Confere. Mais devagar, querido, você vai arranhar. Não costuma lavar louça, costuma? — Mais uma baforada. — Isso também faz parte do inquérito.

— Não senhora — Engoliu em seco — Leo geralmente cuida desse tipo de coisa. Mas eu cozinho. Quase sempre.

— Hm. Interessante... a sua família tinha doméstica, sim? Sei que é bastante abastada. O que seus pais fazem? — Flávio arriscou um olhar de esguelha e viu uma garrafa de uísque meio vazia sobre a pia.

Socorro. Entregou o prato a Eva.

— Meus pais... meu pai é coronel do exército. Minha mãe... é dona de casa.

Ooh. O retrato da família tradicional brasileira. Meus pêsames — Estalou a língua, satisfeita, provavelmente após um gole — E o que eles acham do seu estilo de vida, se me permite?

— Eles... não aprovam. Mas não temos problemas em relação a-

Eva o interrompeu batendo com o prato na garrafa de uísque, o que gerou um forte tinido. Leo permaneceu desacordado à mesa.

— Isso não é verdade, é, meu amor? Eles não sabem ainda. — Flávio trincou os dentes.

— Se já sabe disso, por que-

— Me interessa saber se você tem colhões pra resolver esse drama em que tá enrolado e enrolou meu Leonardo também, entende? Vou te contar um segredo. Se dependesse de mim, esse namoro já teria acabado. Eu disse ao meu filho pra acabar com isso algumas vezes. Ele lembra que tem mãe quando tá chateado, sabe? Me liga pra desabafar.

Mais uma nuvem de tabaco o cercou enquanto limpava talheres. Nunca tinha visto Leo falando com a mãe ao telefone.

— Já falou comigo algumas vezes sobre você. Ele fica irritado com essa história de namoro escondido. E eu sou uma grande partidária do divórcio. Meu conselho é sempre o mesmo: tá ruim, larga. Mas ele não largou. Teimosa, a minha cria. E agora cá estamos.

Eva se afastou por um momento e o rádio perto da geladeira começou a tocar Elis Regina.

— Isso... já estamos resolvendo isso. Eu entendi o que ele queria dizer. Amanhã... vamos acertar tudo. Vou acertar. Com meus pais. — Deus, só pensar no dia seguinte já era suficiente pra bagunçar com a sua cabeça e dar um nó nas suas entranhas.

— Muito bem. Mas, entenda, eu já ouvi esse tipo de coisa antes. Vou te contar uma história...

Ela se sentou no mármore da bancada. Normal.

— Era uma vez, num Brasil mais jovem, uma menina e um menino. Esse menino era de uma família de posses, dona de terras. Dinheiro velho. Ele amava a menina. Mas ela era filha de Zé e Maria ninguém. Eles não podiam namorar, seria um ultraje. Montagues e Capuletos, só que com um lado sem dinheiro — Ela alternava entre o charuto e o uísque enquanto falava. — Mas o menino amava a menina, como já disse. Ela também amava ele. Ele finalmente decidiu contar a verdade pra família quando os dois já eram jovens. E ele fez isso.

Eva abriu um sorriso amarelo.

— Ah, mas lorde e lady Montague não gostaram nada daquilo. Onde já se viu? Era motivo pra deserdar o moço. Mas sem problemas, tudo poderia ser como antes. Bastava se livrar da menina e poderiam fingir que nada tinha acontecido. Heh. — Ela tragou profundamente, seu olhar se enevoando por um segundo — Ele amava ela, verdade, mas não tanto. Pra não perder o bercinho de ouro, desamou. Triste, né? Mais ainda quando se sabe que ela tava grávida, e seu Zé Ninguém não queria saber de filha piranha. Mas essa parte da história não importa agora...

A louça estava acabando. Flávio sentia o macarrão salgado dando cambalhotas em seu estômago. Por algum motivo, tinha imaginado certos personagens com rostos bem familiares.

— Entende? O que importa não é só ter coragem pra confessar, precisa estar pronto pra aguentar o tranco. E o tranco pode ser mais forte do que você pode aguentar, não se engane. — Eva cruzou as pernas e inclinou a cabeça para trás, projetando um arco de fumaça. Ela encarou Flávio com o canto do olho — A menina da historinha chorou muito quando tudo desmoronou em volta dela. Eu não suporto ver meus filhotes chorando, sabe? Então pensa bem. Pensa no tranco. É preciso...

...ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre; cantou junto com o rádio por alguns momentos, então riu da sincronia.

Flávio já tinha largado a esponja. Sua cabeça latejava um pouco com a seriedade louca daquela mulher.

— Senhora... Eva. Sim. Eu entendo. Sinto muito pelo que você passou. Mas eu... perdoa a arrogância, mas eu vou ser melhor que esse cara da história. Eu já pensei muito nisso, eu... — Não trava agora, desgraçado, essa é a apresentação oral mais importante da tua vida até amanhã — Sempre soube o que eu era e o que minha família pensaria se descobrisse. E eu nunca liguei. Só decidi que não iam saber nunca e pronto. Podia esconder pra sempre sem problemas. Mas...

Eva exalou lentamente, seus olhos estreitados. O charuto estava fumado pela metade.

Flávio era bom em identificar quando o professor não estava gostado do que ouvia e mudar o texto na hora, mas não conseguia ler nada daquela mulher. Seja o que Deus quiser.

— Mas eu amo seu filho de verdade. Preciso que ele fique feliz pra eu ficar também. Ele já que ele não vai ser feliz vivendo escondido, como você falou... então é melhor assim. Melhor pra nós dois. E, não se preocupe... — foi a sua vez de sorrir amarelo, ainda que menos literalmente. — ...não acho que meu pai vai me dar a chance de voltar atrás depois e fingir que nada aconteceu.

A mulher o encarou em silêncio. Elis Regina cantou “Tiro ao Álvaro” inteira no rádio durante esse silêncio. Enfim, os cantos da sua boca começaram a subir. Ela pousou o copo vazio sobre a pia e estendeu a mão, segurando o queixo dele.

— Meu Leonardo já teve vários namorados. Alguns me apresentou, de outros eu só ouvi falar. Mas eu sei que poucos duraram, e sei por quê. Ele puxou a mãe. Gosta de se impor, e de que tudo seja como ele quer. Não diga isso, não fale assim, não pense desse jeito, isso é errado. Ele problematizava os garotos até eles fugirem — Eva riu e até ele arriscou um sorriso. Soava bem verídico — Você não deita pra ele passar por cima, pelo que ouço. Isso é bom... ainda que signifique termos que viver com esse neoliberalismo intragável- enfim. Acho que dariam certo. Mas esse teste não será fácil.

— Meu futuro se resume a testes em que há uma vaga pra dez mil candidatos. Isso mal vai ser um treino.

A coroa soltou uma gargalhada espirituosa e o puxou para perto, abraçando-o, a grande diferença de altura anulada pelo assento pouco convencional.

Ela cheirava a tabaco e alfazema. Flávio adoraria que aquele gesto o fizesse sentir-se bem e aceito pela sogra – no fundo, até fazia, um pouco, e bem no fundo, porque ainda estava um pouco traumatizado pelos seus métodos.

— Pois bem. Se for capaz de fazer o que promete... eu lhe dou a minha bênção — Ela o puxou mais pra perto, então, falando em seu ouvido — Mas se fizer minha cria chorar... conheço ilhas na lagoa de Araruama em que ninguém procuraria um corpo. E pôr alguém pra dormir pra sempre é mais fácil do que temporariamente.

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— Não se preocupe, tô brincando! Por enquanto... — Ela o afastou e pulou da pia, estalando a coluna e apagando o charuto no copo vazio — Termina com a louça. Vocês se atrasaram e eu tenho que chegar no conselho sindical em algum momento. Posso ajudar a botar o traste no carro quando terminar.

— S-sim senhora!

 

(mais ou menos na metade da travessia de volta pela ponte ele já tinha superado o terror e começava a achar um pouco de graça do absurdo da situação. Mesmo assim, às vezes batia o olhar no retrovisor, via Eva Venenosa agitando uma jarra de suco e temia por sua vida)

 

Movimentos sucessivos arrancaram Leonardo de seu torpor. A última coisa de que lembrava era o almoço- ah. Mãe. De novo não. Eu vou acabar sequelado.

Abriu os olhos com dificuldade e tudo continuou escuro. Pronto, estava cego. O conselho tutelar poderia ter impedido aquilo se... não, pera. Havia luz nos cantos da sua visão.

Ergueu a cabeça e se deparou com o rosto de Flávio. O escuro era a camisa preta dele. Estava sendo carregado. No colo.

— Bem-vinda de volta, Aurora! — Ouviu ele cantarolar. — Estamos quase em casa. Pizza ou sushi? Você podia ter me dito que sua mãe era tipo uma vilã de novela, a propósito. Mas acho que ela gostou de mim? Não me agrediu fisicamente.

— Eu nem- Flávio, me bota no chão, eu consigo andar. Flávio! — Leo começou a se sacudir e a empurrá-lo, primeiro de leve, mas logo com mais força — Eu não sou um gato, caralho!

— Ssh. Há controvérsias. E me deixe ter esse momento, estou me sentindo um herói de conto de fadas. Falando nisso, olha o tema da festa do pessoal do 1206! Tão olhando pra você, cumprimente.

Leo virou a cabeça.

Estavam passando na frente de um dos salões de festas, que tava decorado com princesas Disney; era aniversário das gêmeas irritantes que gritavam de manhã. Mas o que importava era a quantidade de vizinhos e convidados que estavam o encarando se debater enquanto era carregado.

Seu rosto já estava quente com a situação; naquele momento simplesmente passou do ponto, soltaria fumaça se estivessem no sul. Enfiou a cara de volta no peito de Flávio, tentando encolher e se esconder do mundo.

Ele bebeu um pouco demais — Ouviu o namorado cochichar para um conhecido.

Melhor ou pior que a verdade? Não estava em condições de decidir, na verdade. Permitiu-se derivar de volta a um estado de quase-sono, fugindo da situação.

Ouviu o conhecido som das portas do elevador se fechando.

— Mas então... lembra do que a gente tava falando ontem sobre deixar as coisas inacabadas e tal?


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Notas finais do capítulo

Então


faltam alguns capítulos só


eu me arrependo de ter começado essa fic antes do impeachment


juro que posto ainda esse ano, ainda esse semestre, minha palavra nao vale nada ahhahahahashdagfashdgffsg

amo vocês espero que estejam vivas


me perdoem por ser horrível


lá no início o flavio mal sabe que o braço tá estranho por causa da conchinha involuntária no fim do capítulo 4


beijos de luz

beijos nos cus

paz