Não se discute escrita por Phaerlax


Capítulo 4
Para realinhar as órbitas dos planetas


Notas iniciais do capítulo

Olha eu aqui, cheiroso, postando o capítulo com mais Nadas e palavras da fic :3

Feliz anunovo~~



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“...capaz de eliminar resíduos do metabolismo do sangue, manter o equilíbrio hidroeletrolítico e acidobásico do corpo humano, controlar a quantidade de líquidos no organismo, regular a pressão arterial e secretar hormônios, além de produzir a urina. Por esses motivos, o néfron é a unidade funcional do rim, pois apenas um néfron é capaz de...”

A zumbificação de Lívia foi interrompida por alguns apitos. O WhatsApp a invocava. Ergueu os olhos injetados, em busca do celular, mas logo se lembrou que tinha posto o Instrumento do Ócio distante da cama, aproveitando a própria preguiça para se manter longe da internet. Devia ter silenciado o maldito.

Plenamente ciente de que levantar para conferir a mensagem seria um caminho sem volta, forçou-se a abaixar o olhar de volta ao livro que lia. Não era o único; vários outros empilhados em redor o faziam companhia. Esperava que uma alta concentração de conhecimento nefrológico no meio externo (sua cama) fosse acarretar em algum tipo de transporte passivo para o meio interno (sua cabeça), mas não estava dando muito resultado.

A luz solar que entrava pela janela e evitava uma deficiência de vitamina D também provava que o clima estava perfeito para vender arte na praia. Por que escolhera cursar Medicina? Por que não podia ter nascido de Humanas ou com um talento fantástico no berimbau? Ou ambos? E quais eram mesmo as malditas funções de um néfron?

Os assovios do celular continuaram enquanto Lívia tentava procurar o ponto onde parara a leitura. Todos os parágrafos pareciam dizer a mesma coisa. Nefrologistas escreviam tão mal.

WhatsApp, WhatsApp, Messenger, WhatsApp, Messenger. Sagrada mitocôndria, a faculdade tinha pegado fogo ou algo assim? Não, o universo nunca seria tão bondoso. Era satanás querendo distraí-la dos estudos.

Se bem que, na última vez em que resolvera ignorar o telefone, Lívia passara oito horas engolindo textões sobre o sistema cardiovascular só pra, antes de dormir, ver mensagens sobre a prova do dia seguinte ter sido cancelada. Foi um dia ruim para estar viva.

Notificações, notificações, notificações. “Mesmo querendo, não dá pra estudar com o barulho!”, argumentou com a Maso-Lívia, como chamava a parte esforçada e estudiosa da sua alma. “Eu só vou conferir se a faculdade pegou fogo. E desligar. Juro juradinho”.

Após receber permissão do demônio acadêmico que habitava seu corpo, encontrou forças para fechar o livro com força. Maso-Lívia a repreendeu pelo prazer que o som lhe proporcionara, mas nada podia fazer. Arrastou-se para fora da concavidade que seu corpo abrira no colchão e levantou-se, sentindo a coluna reclamar de todos os problemas que teria no futuro. Seria bem mais fácil de ignorar se ela não tivesse sido obrigada a aprender tanto sobre ossos e ligamentos.

Lívia navegou a bagunça do quarto na ponta dos pés e catou o celular da prateleira. Ainda recebia notificações.

Fora bom ter colocado o aparelho longe da beira, ou já teria se espatifado no chão com todas aquelas vibrações. Desbloqueou a tela, orgulhosa de seu avanço no combate à tendência que tinha a quebrar as coisas.

Quando bateu os olhos na foto que recebera entre as várias mensagens, o celular escorregou entre seus dedos, a bateria voou longe e a tela trincou.

Não pode sê — murmurou, abismada, enquanto Maso-Lívia uivava sobre o dinheiro que ela precisaria gastar consertando a tela em vez de comprar livros.

A futura médica inspirou fundo. Estava encarando palavrinhas e esquemas há tempo demais, o desgaste cerebral prejudicava suas funções cognitivas. Rapidamente tateou o chão em busca da bateria, a localizou e recolocou. Dava pulinhos de ansiedade enquanto esperava o lerdíssimo sistema operacional ganhar vida. Não podia ser real, mas e se fosse? Pelo amor de todas as mitocôndrias, aquilo seria mais bombástico do que o transplante de cabeça na China dar certo.

Assim que pôde, reabriu a foto.

A epinefrina fez a festa em seu cérebro, o sistema cardíaco dobrou a meta e a serotonina não tardou a disparar. Supunha que havia ocitocina envolvida, também, mas seus pensamentos estavam longe de bioquímica.

Os dedos roliços voaram pela interface do celular, mesmo com a tela rachada, abrindo a agenda. F, Falsiane; Fer da pizzaria; Felipe; Filho da puta #1; Filho da puta #2; Flor; Fred... Flávio. Discar.

Levou o telefone ao ouvido, andando em círculos por cima dos seus bagulhos jogados no chão. Não chamava. Desligado?

Você pode ver isso depois! Nefrologia, precisa estudar nefrologia! Regular a pressão arterial, secretar hormônios, produzir a urina, mais o quê? Você esqueceu! Estudar, estudar!

— Not today, Satan — sussurrou. — Not today.

Embalando o Iphone desfalecido nos braços, Flávio voou em busca do carregador assim que passaram pela porta de seu apartamento. Ficara o dia inteiro sem acessar suas redes sociais. Era plausível que o cérebro dele não fosse aguentar o tranco da enxurrada iminente.

Aproveitando a distração, o esquerdista atirou sua mochila de qualquer jeito embaixo da mesa da sala. Sempre protestara contra a organização absurda e decoração minimalista “clean” que o fazia se sentir em um hospital ou – muito pior – no covil de um burguês.

Leonardo recriava o ambiente à sua imagem pouco a pouco. O primeiro avanço fora trocar o tapete branco liso horrendo por algo com mais cor. Logo conseguira almofadas estampadas de verdade, alguns móveis de madeira decente (pra que tudo branco? A classe média queria esbranquiçar até a mobília?), cortinas para as janelonas de tamanho excessivo e, recentemente, sua maior conquista: trocar uns dos painéis genéricos por um quadro de Diego Rivera, ainda que no canto da sala. Uma concessão feita após o fiasco do krav maga. Ainda não agradecera a Rosa, aliás.

Encaminhou-se à estante (branca) que havia sobre o sofá (branco), na qual o casal travava sua mais duradoura batalha. Ambos tinham o hábito da leitura, mas...

…Marx, Beauvoir, Mises, Olavão, Thatcher, Buarque, Keynes, Focault, Hayek, Burke…

Leo se ajoelhou no sofá e começou seu trabalho, reorganizando os livros. Teoricamente, cada um tinha um lado, mas o ímpeto da implicância era forte demais em ambos. Flávio fora o último a sair de casa e, como resultado, vários dos volumes estavam ao contrário, suas lombadas ocultas. Como aceitar que Marx ficasse escondido e Mises não? Focault tinha seus defeitos, mas se curvar ao Olavo? Margaret e não Simone? Sacrilégios do cotidiano.

O historiador em formação se perguntava que força obscura o levara a residir naquele solo impuro, mas sequer percebia, porque tais questionamentos já se confundiam com sua respiração há meses.

— Jesus, eu juro que passei mais tempo no trânsito do que dormindo, hoje. Prefeito e governador do PMDB, só pioraria se... deixa. — Flávio se jogara no sofá, parecendo prestes a fundir com as almofadas. Ergueu os olhos para o namorado, ao seu lado, remexendo o acervo paradoxal — Não podemos dar uma trégua com os livros? Só hoje?

Leonardo bufou, indignado, e o acertou com uma almofada vermelha.

— Diz isso agora, mas de manhã... — Leo puxou um livro que estava ao contrário e engasgou perante a afronta — Virou até o Jorge Amado, que nem filósofo era! O que ele fez?

— Umas esquerdadas brabas, mas que se dane. — Flávio removeu a almofada que se alojara em sua cara — Eu estava puto com você de manhã. Perdi a hora te procurando até debaixo da cama.

— Jorginho não tem nada a ver com isso! — Acariciou a capa de Capitães de Areia e recolocou o livro ao lado dos irmãos em toda sua glória — E eu te deixei uma mensagem avisando que ia de ônibus.

— No celular que eu não carreguei porque você não me deu a oportunidade ontem, lembra? Elevador, corredor, cama, facul.

Leo atirou outra almofada para abortar o sorrisinho besta.

— Eu só não gosto de deixar coisas pela metade depois que começam — disse, evitando contato visual. Para alguém que militava tanto pela quebra de tabus, ele tinha uma dificuldade inexplicável para falar daquílo. — Posso fazer nada se você tem essa memória de barata. Da próxima vez eu deixo um bilhete.

— Próxima vez? E eu aqui, inocente, achando que seriam só rosas e unicórnios de agora em diante! — Removeu a segunda almofada da cara. No móvel da televisão, o celular recitava um coral de notificações — Devo estar com chamadas perdidas de metade da agenda, sendo que as pessoas nem fazem mais ligações.

Leo continuou vasculhando a estante, mas sem de fato prestar atenção. Vinha tentando evitar pensar no que ele fizera; tinha um formigamento irritante na barriga sempre que se permitia lembrar. Era aquilo que chamavam de borboletas no estômago? Borboletas eram do bem, jamais fariam aquilo com ele. Só podiam ser mariposas. De qualquer forma, nem fora nada especial! O único motivo de aquela exibição sido sequer notada era Flávio ser tão enrustido.

— Você fala como se tivesse arrancado um braço e o atirado na fogueira em oferenda a satã — reclamou, lentamente desvirando cada volume duma série do Sérgio Buarque. — Me beijar não pode ser tão difícil. Fazemos isso o tempo todo.

— Ah, mas a parte difícil não foi essa. Sabe qual foi?

Leonardo não perguntou. Recusava-se a colaborar com aquele método retórico de boteco. Flávio revirou os olhos azuis, mas respondeu assim mesmo:

— A parte difícil foi não ser enquadrado no 233 do CP — O aspirante a advogado sorriu e apoiou o rosto no punho, fitando o parceiro na outra ponta do sofá — Três meses a um ano, ou multa.

— Eu não decorei a porra do...

— Prática de obscenidade em lugar público, aberto ou exposto — elucidou didaticamente. — Veja, o problema não foi começar, foi me segurar para parar e não fazer nada estúpido quando você encostou a testa no meu ombro e...

A mão de Leo voou para uma almofada, mas Flávio se aproximou e agarrou seu pulso antes que pudesse fazer dela um projétil.

— Como você consegue dizer essas coisas ridículas sem sentir dor? — Desvencilhou-se e cruzou os braços — A vergonha alheia é sufocante!

— Eu passei com nota máxima em Cara de Pau I, II e III, muito obrigado. São disciplinas obrigatórias no curso de Direito. — Flávio ajeitou uma gravata imaginária — E tem certeza que a vergonha é alheia? Porque o vermelho no seu rosto tá até fazendo eu repensar minha opinião sobre essa cor.

— Eu não... — A negativa morreu na garganta. Leo sentia muito bem o calor nas bochechas e amaldiçoou sua habilidade de corar, não pela primeira vez.

— A verdade é que você adora coisas bregas. Olha as almofadas que inventou de comprar! — Indicou as estampas florais com repulsa teatral — Se quer brega, romântico e ridículo, eu te dou brega, romântico e ridículo.

Flávio engatinhou até o namorado, envolvendo a cintura dele com os braços exatamente como fizera no campus. Flashes de memória fizeram as mariposas no estômago de Leo decolarem e percorrerem todo o corpo. Sangue fluía a lugares inapropriados.

Como ele odiava se sentir uma protagonista de mangá shoujo.

— Então, como era mesmo aquilo que você disse sobre deixar coisas pela metade? — Leo sentiu dedos engancharem no cós de seus jeans — Eu concordo. Acho que devemos terminar o que...

— Alto lá, senhor tarado. — Afastou Flávio com uma mão em seu peito — Tem certeza de que isso é correto? Arriscar um câncer?

Houve um momento de silêncio. Flávio ergueu uma sobrancelha.

— Que.

Leonardo virou-se de volta à estante e correu o dedo pelos livros, logo puxando o que procurava. O Mínimo Que Você Precisa Saber Para Não Ser Um Idiota.

— De acordo com o Professor, este tipo de atividade pode acarretar em câncer no reto. — Folheou o grimório de saberes apócrifos, buscando o capítulo intitulado “Gayzismo” — Na garganta também.

Flávio suspirou.

— Há quanto tempo você tá segurando essa piada...?

— Piada? Ora, porra! — interpelou em sotaque paulistano. — Está refutando o Mestre?

— O que o Mestre não vê, o Mestre não sente — Tomou o livro de suas mãos e o enfiou de volta na estante, virado ao contrário — Algo mais pra quebrar o clima? Ou podemos...

— Chama essa forçação de barra broxante de clima? — Leonardo bufou, sua voz injetada de reprovação.

Talvez reprovação demais. O namorado franziu o cenho.

— Não sei se você lembra a definição de broxante, mas é incompatível com isso — Flávio agarrou a frente da calça dele — A não ser que você esteja de pau duro por pensar no Olavo, o que espero muito não ser o caso.

Leo abaixou a cabeça, tentando esconder o rosto que queimava.

— Como...

— Um ano é mais do que suficiente pra eu aprender a notar quando você faz doce querendo parecer menos tarado que eu. — Ergueu o rosto de Leo, segurando seu queixo — Não tem ninguém assistindo... a não ser o Obama, mas não há o que fazer sobre isso. Não precisa se defender nem fingir.

Como ele odiava se sentir uma protagonista de mangá shoujo.

— Eu não gosto de alimentar seu ego. — Estendeu e ergueu os braços. Triunfante, Flávio agarrou a barra da camiseta dele e a puxou pra cima, despindo-o. Atirou a roupa de Leo sobre a mesinha de centro enquanto ele trabalhava nos botões da sua — Temo que você pode acabar se achando algum tipo de semideus por eu te dar o tempo todo.

— Pode ter certeza de que esconder sua libido não vai encolher meu ego. — Procurou o zíper dos jeans do parceiro e plantou um beijo longo próximo do que julgava ser a clavícula (não sabia muito de anatomia).

Ouviu um gritinho e se assustou.

Nem parecia a voz de Leo.

Não era a voz de Leo.

— Hã... olar! — Feminina e muito familiar. Flávio suspirou — Eu diria “desculpainterrompervoltomaistarde”, mas esses bagulhos tão pesados pra caralho, então foi mal!

Lívia rapidamente correu até a mesa de centro e largou um monte de sacolas. Com a silhueta da Adele e o cabelo da Katy Perry, a estudante de Medicina era inconfundível. Após alongar os braços cansados por meio segundo, se jogou em cima do ex, esmagando-o antes que a surpresa passasse.

— A notícia se espalhou mais rápido que uma pandemia de contato aéreo na fase seis! — Os pulmões comprimidos de Flávio se esvaziavam; sua resistência foi inútil — Estou tão orgulhosa, pinguinzinho!

— Como... entrou...? — A voz sufocada fez Lívia reduzir um pouco a intensidade do aperto — Tá fazendo o que aqui, entidade?

— Se o porteiro ainda me reconhece, minha chave ainda vira e o wi-fi ainda conecta, eu posso ir e vir quando bem entender, muito obrigada — respondeu, indignada.

Leo enfiara a camiseta de volta na mesma velocidade com que sua excitação morrera (muito rápido). De braços cruzados, observava o parceiro seminu ser agarrado pela ex.

— Oi, Lívia — cumprimentou, cáustico. — Você pode, por favorzinho, largar o meu namorado?

— Como assim seu namorado? — A garota o encarou de rabo de olho — Não és contra a propriedade privada, Carl Marcos? Podemos socializar o pinguim.

— Dos meios de produção, não dos bens de consumo — corrigiu, puxando-a pelos ombros. — E você sabe que ele não curte poli.

Bem de consumo, hmmm? — Ela ergueu as sobrancelhas para Flávio — Revelando camadas e mais camadas, Flavs.

— Eu sou o consumidor aqui, que fique claro — informou o macho sério homem de bem, apontando para si com o polegar enquanto recolocava a camisa.

— Só porque não aguenta sem chor-

— Mantendo o foco: tá fazendo o que aqui, entidade? — Flávio o cortou antes que soltasse Informação Demais — Estávamos meio que ocupados.

— Isso, pinguinzinho, é uma longa história. — A garota de cabelos roxos gesticulou dramaticamente, traçando um horizonte com as mãos — Lá estava lady Lívia, bravamente encarando pilhas de leitura indicada; eis que uma cacofonia de convocações se faz soar! A formosa dama trilha o caminho até seu ecrã arcano e xablau! É confrontada por esta imagem avassaladora!

Lívia puxou o celular do bolso e mostrou uma foto onde dois borrões humanoides vagamente semelhantes a Flávio e Leonardo se pegavam. Havia um enorme trinco na tela, também.

— Lady Lívia se estarreceu perante tamanho babado. O príncipe, que a deixara ao revelar um interesse maior por espadas, finalmente revelara seu naipe ao mundo! Oh, tal ocasião não poderia passar em branco. Ela mandou pombo atrás de pombo com mensagens para o príncipe... mas nem uma ave sequer retornou. Lady Lívia não se permitiria desistir aí, porém! A dama então montou seu fiel alazão, Três-Oito-Três, e cavalgou para o castelo distante, trazendo consigo fardos e mais fardos de suprimentos celebrativos!

Ela fez vários floreios teatrais, indicando as sacolas que trouxera. Flávio se aproximou e as dirigiu um olhar clínico, com a mão no queixo.

— E o que trazes em tais fardos, viajante?

— Não tenho prata nem ouro; mas o que tenho, isso vos dou: nachos e salgados, biritas e biscoitos, chocolate, minha senha do Netflix e uma garrafa do mais puro néctar divino!

Lívia tirou uma vodka de uma das sacolas, cantarolando em pseudolatim. Leo cobriu a boca para impedir uma gargalhada.

— Do que fazes troça, ó nobre consorte? — A penetra indagou, estendendo-lhe a mão e focando um holofote imaginário.

— O Flávio não aguenta nem tomar umas ices sem ficar bêbado o suficiente pra ver lógica no anarcocapitalismo — entregou, rindo-se. — Uma dose de vodka seria prego de caixão.

O ofendido estreitou os olhos.

— É preciso bem mais do que um suco de batata russo pra me derrubar.

— Isso soou como um desafio! Não acha, Kátia? — Lívia conversava com a garrafa em seus braços.

Normal. Ela passara no vestibular pra Medicina. Todas as exatas estudadas tinham que ter se alojado em alguma parte do cérebro; deficiências mentais eram totalmente esperadas. O fato de (aparentemente) não ter involuído à psicopatia era um atestado à força de vontade da moça.

— E o que te faz pensar que sua invasão foi aceita? Não vejo um motivo pra...

— Ela trouxe a senha do Netflix, Flávio.

— ...não te receber de braços abertos e agradecer pela consideração, minha ex maravilhosa! — Ele pegou um tupperware de coxinhas e se reclinou no sofá — Celebremos! Os copos ainda estão no mesmo armário.

Leo previra que a vodka triunfaria sobre Flávio antes do segundo episódio da série, mas o namorado o surpreendeu.

Aos 40 minutos de American Horror Story, já ressonava fortemente, usando seu colo de travesseiro.

— Um brinde à falta de noção das próprias capacidades! — Lívia ergueu sua cerveja e Leo a acompanhou, brindando com o copinho de suco de batata russo.

Ele virou o que restava da bebida, apreciando a ardência, e limpou um pouco do pó de doritos da boca de Flávio. Nem houve reação.

— Vai estar tão estragado amanhã. — Leo suspirou profundamente — Eu não devia ter confirmado o almoço com mainha.

Lívia pareceu tentar erguer a sobrancelha, mas seu grau de alcoolização transformou o ato em uma contração de metade da cara.

— Cê vai apresentar ele pra sua mãe? Me disseram que evolução era um processo lento. A Biologia é uma midira! — Cobriu a testa com uma mão, lamentosa — Daqui a pouco o Homo sapiens será alado e ele vai te apresentar à família dele.

Foi a vez de Leo erguer uma sobrancelha (sua sensibilidade estava um pouco prejudicada, mas tinha quase certeza que conseguira fazê-lo sem acidentes).

— Domingo.

Lívia o fitou com confusão por alguns segundos, mas logo seus olhos se arregalaram.

— Mitocôndria... — murmurou, como quem chama a Deus. — Ele te ama mesmo.

— Ele não apresentou você? Namoraram por anos.

— Não precisou. Conheço a família desde sempre. Amigos de infância, eu, ele e o Davi. Mesmo colégio. — Lívia pausou por um longo momento — Amigo de infância é tudo que a gente sempre foi, acho.

— Ué — estranhou. — Era fachada, mas todos aqueles anos... ele parece gostar de você.

Ela sacudiu a cabeça, agitando o cabelo roxo de forma psicodélica.

— Ele gosta de mim. Do primo. Do carro. De frio. Dinheiro. Livros. Nada de mais. Fomos os primeiros um do outro, demorei pra perceber que tinha um melhor amigo, não um namorado. Bêbada demais pra explicar, mals. — Leo assentiu e ela virou outro gole da cerveja — Sexo quase nunca. Ele dizia que era assex e que não curtia. Eu aceitava.

— Isso é muito difícil de imaginar — Olhou para a cabeça em seu colo, tentando imaginar aquela boca negar sexo — Desculpa. Quando ele te contou?

— Não contou. — Lívia soltou um riso nasalado — Histórico de navegação.

Ah.

— Aquele dia foi um mau dia. Eu fiquei tão puta. Quase quebrei uma garrafa na cabeça dele. “Quase” porque errei. — Acabou com a latinha e a jogou dentro da sacola, junto a outras. Estendeu a mão à cabeça de Flávio e entrelaçou os dedos no cabelo escuro. Ele moveu um pouco os lábios, mas permaneceu comatoso — Só que não dá pra ficar com raiva desse maldito por mais de um dia, cê sabe.

— Sério? Eu acho bem fácil, na verdade. — Beliscou o nariz, porque podia e porque estava bêbado — Complicado é não ficar com raiva um dia inteiro.

— Hm? Que estranho, porque Melo disse que cês tavam brigados de manhã, e o que eu vi quando entrei não parecia uma DR — Sorriu debochada — Seu zíper ainda tá aberto, aliás.

Leo agradeceu ao álcool por seus rostos já estarem avermelhados enquanto fechava a braguilha. Não percebera que Flávio tinha chegado a abri-la.

— Melo tem que dizer menos coisas — murmurou, encabulado.

— Enfim. Ele claramente te adora. E você?

Leo inclinou sua cabeça pra trás, encostando-a na parede. E eu?

— Eu... não sou bom em colocar essas coisas em palavras. Mesmo sendo de humanas. — Massageou as têmporas — Nunca fiquei com um cara por tanto tempo. Nem com um cara de direita. Mas tô aqui. Me irrito todo dia, mas nunca fui dormir pensando em ir embora no dia seguinte. Sei lá.

Como ele odiava se sentir um protagonista de mangá yaoi.

Mas era difícil pegar aqueles montes de fatos subjetivos e jogá-los numa gaveta com a etiqueta “indícios de amor”. Ele era exposto a filósofos demais para ter qualquer verdade sobre o assunto.

— Entendo... — Lívia respondeu, naquele tom de pessoa de biológicas que nem tentou entender. Tudo bem. Não esperava que as pessoas entendessem seu desentendimento mesmo.

— Ah, a gente fez um ano há pouco tempo. — Lembrou-se — Eu queria te agradecer. Ou te xingar, não sei. Foi na sua festa de fim de período que nos conhecemos.

— Eu estava olhando vocês dois papearem na beira da piscina e enviando good vibes silenciosamente, lembro bem. — Ela mirou o passado no fundo do copo — Falaram pra cacete. Foi um milagre não terem discutido nem nada.

— Quando você quer pegar alguém, não se discute — Leo riu, pensando nas coisas banais sobre as quais haviam conversado. Não se lembrava da maioria — Só percebi que éramos tão diferentes quando já não tinha jeito. Intervenção da Mitocôndria, talvez?

(“Preciso ir; não sou que nem aqueles encostados que recebem Bolsa-Família”, ele dissera ao sair da cama na manhã seguinte à segunda transa. Alarmes soaram em Leo, mas o incêndio não podia mais ser extinguido)

Lívia ergueu o copo vazio, saudando a Mitocôndria. Então pareceu se lembrar de algo e meteu a mão dentro de uma das sacolas.

— Tenho algo especial aqui... ah!

Ela pegou um Kinder Ovo meio amassado e o desembrulhou. Aquilo deveria ser 50% do preço das compras.

— Um brinde especial à nossa sina e à nova era flaviana! — Leo pegou a metade que lhe foi oferecida — Que seus encontros nesse final de semana deem certo e que nós seguremos menos marimbas por amar esse pinguim! Lalalaô.

— Lalalaô — Leo ecoou. Eles chocaram os cascos de chocolate e os meteram na boca de uma vez.

Alguns minutos passaram em solene contemplação, até Lívia perguntar que horas eram e ele responder “várias”. Ela fez menção de se levantar e ir embora.

— Você segura os braços e eu seguro as pernas? — propôs, tentando se livrar de ter que arrastar Flávio ao quarto sozinho.

— Ele disse que não capotaria e capotou. Deixa dormir no sofá. — Lívia beijou o companheiro de copo nas bochechas e se levantou — Vou levar os biscoitos que sobrarem, se não se importa. Precisarei deles enquanto choro no meio de mil livros com a Maso-Lívia montada nas minhas costas.

— Maso...?

— Complicado. — Ela juntou os bagulhos num saco que jogou por cima das costas — Até. Boa sorte de novo!

Ela se abaixou e beijou a testa de Flávio antes de virar-se e sair do apartamento, de sacola nas costas, parecendo uma jovem Mamãe Noel à paisana, com cabelo roxo e álcool no sangue. O ambiente perdeu uma boa dose de energia quando Lívia fechou a porta atrás dela.

Leo se levantou, trocando seu colo por uma almofada pra cabeça do namorado. Ela estava certa, que dormisse no sofá. Sorriu. Teria a cama inteira para si naquela noite.

Menos de duas horas mais tarde, saiu do quarto pisando forte de frustração consigo mesmo. Não conseguia adormecer.

Empurrou Flávio para o lado, deitou ao seu lado no sofá apertado e jogou um dos braços dele sobre si.

Eu sou patético — confessou para o travesseiro, pouco antes de cair num sono pesado.


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Notas finais do capítulo

Eu preciso urgentemente dormir neste momento em que escrevo as notas, mas juro que respondo review no capítulo 3 depois ;-;

O título referencia "O Segundo Sol", que a Cássia Eller canta e aquele cara lá compôs.

Eu gostaria de mandar um beijo virtual à Padawn por aquela recomendação cheirosíssima OuO E LEIAM O YAOI HUMANAS-EXATAS DELA que eu ainda não recomendei oficialmente porque sou uma das criaturas mais lerdas que a seleção natural não eliminou MAS LEIAM s2 (https://fanfiction.com.br/historia/649865/Naoseisoudeexatas/).

Elogio ao vivo sim, se reclamar de vregoinha eu mando bejo (de novo)

Fiquem vivos para o próximo capítulo, "Pior do que cobra cascavel", em que a cobra vai fumar. E beber.

(ps. a personagem Lívia existia antes da leitora Lívia)



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