Não se discute escrita por Phaerlax


Capítulo 3
Entre nós dois não cabe mais nenhum segredo


Notas iniciais do capítulo

Demoray mas chegay *aceita tomates podres de braços abertos*

Feliz aniversário atrasado, NamelessChick~

A capa nova foi desenhada por um amigo artista (http://et-jr.deviantart.com/) e editada pelo Salow ♥



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O número que você ligou está desligado ou fora da área de-

Flávio deu mais uma mordida no pastel de flango, tentando não pensar no tipo de ave que realmente ingeria e não discernir as banalidades que Davi falava sobre o que quer que ele estivesse falando. A tarefa era bastante fácil, visto que os tímpanos e papilas gustativas simplesmente se recusavam a trabalhar, de greve em protesto contra as míseras três horas de sono. Alguém infectara seu corpo com socialismo.

Julgava que o celular de Leonardo não seria ligado ou voltaria à área de cobertura pelo poder de um quinto telefonema, então enfim desistiu — parcialmente por causa da notificação do Malafaia que surgia no topo da tela. Era o que merecia por pegar celular emprestado (não que ter esquecido de carregar o próprio aparelho na noite anterior tenha sido sua culpa, per se). Entendia que o QI de Davi poderia não ser suficiente para acompanhar o raciocínio do professor Olavo, mas era pedir demais que ele seguisse uma figura menos... simplesmente menos?

Sentiu um cotovelo cutucar seu braço e ergueu a cabeça para conferir. Davi indicava algo com o queixo; algo que rapidamente constatou como sendo a bunda de uma mulher que pagava seu lanche no caixa.

Flávio revirou os olhos, cansado de existir.

— Eu sei que você faz muita força pra fingir que eu sou hétero, primo, mas tenta pelo menos lembrar por que caralhos eu tô usando seu telefone nesse instante — ralhou, passando o objeto de volta ao dono. Seus dedos festejaram a quebra de contato com o sistema Android. Sentia saudades do seu Iphone, morto na mochila.

Davi olhou ao redor da maneira menos discreta imaginável e, mesmo assim, todos os presentes na pastelalia continuaram a não dar a mínima. Além de ruídos e gritos em chinês afogarem grande parte do som, a freguesia estava toda absorta em conversas próprias ou nos próprios mundinhos de Dor e Sofrimento enquanto se envenenava com óleo de cozinha.

— Foi mal, é só… muito louco, véio. Eu não me acostumo. — Davi coçou a nuca, embaraçado. Flávio suspirou, leniente. Supunha que, para alguém com notificações do Malafaia e uma cruz pendurada no pescoço, seu primo era excepcionalmente liberal em relação àquilo — Você ainda tá com... aquela pessoa?

— Treze meses. — Sorriu amarelo — Se o PT ter escolhido esse número não era prova suficiente de que ele dá azar, isso é.

Infelizmente, era dia 15. Sua piada poderia ter sido melhor aproveitada se antecipassem aquele drama. Bem, o PMDB era ruim o suficiente.

(agradeceu ao Senhor por não haver um mês 50 nem um dia 50, ainda que o ano de 2050 o aguardasse no horizonte)

— O que tá acontecendo? — Davi indagou inseguro, após longos momentos nos quais certamente Tico e Teco trabalharam arduamente para determinar se ele realmente queria saber detalhes sobre a vida homoamorosa do primo.

Ótima pergunta. O. Que. Tá. Com. Te. Seno.

Dormira tarde. Acordara cedo. Se atrasara por ter procurado Leo até debaixo da cama antes de perceber que ele já tinha saído. Não carregara o celular. Seu cérebro organizava um protesto com baderna. O namorado reagia às suas ligações como um divorciado reagia a uma intimação jurídica na porta.

Ele se perguntava por que motivo aquilo que Leo fazia com ele não configurava crime de tortura pela lei 9.445 de 97, ainda com o agravante de ser cometido contra deficiente, porque Flávio nascera sem Noção (Um cidadão sadio e dotado de plena Noção jamais inventaria de se envolver com alguém tão diametralmente oposto. Nem usaria metáforas de geometria).

Nunca experimentara o exótico sentimento de querer beijar e degolar uma pessoa ao mesmo tempo antes de conhecer o esquerdista.

— Tretas — enfim respondeu. Os professores sempre elogiavam sua capacidade de síntese. — Parece que ele quer, sei lá, andar de mãos dadas por aí e comer espaguete que nem a Dama e o Vagabundo no bandejão. Acha que seria fácil pra mim como é pra ele.

Flávio nutria uma vontade vultosa de afogar a moça das entregas que desencadeara as discussões de ontem em uma piscina de Coca-cola como sacrifício ao Mercado, apesar de saber que aquele assunto encontrava brechas para ressurgir entre eles como se a necromancia legislativa de Eduardo Cunha estivesse envolvida. Vez ou outra, Leo explodia aleatoriamente. Supunha que encontrar algum motivo para reclamar mesmo quando tudo estava bem fazia parte da natureza dos Guerreiros da Justiça Social.

Davi assentia devegar, fingindo entender a situação. Seus neurônios finalmente o avisaram que teria sido melhor não entrar no assunto, mas era tarde demais. Culpava as aulas de Direito Constitucional pelo mau funcionamento da massa encefálica.

— Tio Nelson já...? — deixou a pergunta aberta. Flávio riu, apesar de seu humor permanecer em recessão.

— Meus pais só descobriram semana retrasada que eu não tô mais com a Lívia. — Sua mãe a encontrara no supermercado. Lívia sabia que a ex-sogra nem suspeitava que o filho era gay, mas não sabia que ele não falara nada sobre a separação com os pais. — Até onde eles sabem, estou começando outro namoro.

— Meu pai uma vez falou que, se tivesse um filho viado, ele... — deixou a frase morrer. O filtro nocional de Davi era bem ruim, então o final daquela gema devia ser incrivelmente hediondo. Como era de se esperar do Pastor Antônio. — Bem, se titio for igual, acho melhor você não falar nada.

Flávio agradeceu silenciosamente por não ter nascido do irmão pior, enquanto tomava alguns goles de sangue preto do capitalismo.

— Eu achei que o tio tivesse melhorado, duns tempos pra cá — comentou, tirando um pouco o foco de si. — Ele não tentou queimar sua ex na fogueira. Que eu saiba, pelo menos.

Davi franziu as sobrancelhas. Uma visão bem desnecessaura, porque ele não fazia as sobrancelhas.

— Ex? A Fernanda?

— Não, ele amava essa. Talvez por se identificar com a potência cerebral máxima da menina. — Flávio não gostava muito do tio. Desenhava uma linha muito clara entre “conservador” e “teocrata”. — A macumbeira. Cristiane?

Por alguns segundos o primo continuou a encará-lo como se falasse em línguas (Talvez falasse? Amém?), mas então sua expressão se iluminou.

— Era isso que eu tinha esquecido de te contar! — Davi se agachou e começou a remexer a mochila que usava desde o ensino médio. Retirou um envelope um pouco amassado e o estendeu a Flávio. — Eu e a Viviane vamos nos casar.

Que, pensou.

— Que — verbalizou. Um filete de coca escorreu da sua boquiabertura. Quantos capítulos daquela novela ele tinha perdido? — Da última vez que você falou nela você disse que tava pensando em terminar porque ela queria um negócio mais sério e seu pai desceria a Inquisição Espanhola se descobrisse.

— Pois é. — Davi coçou a cabeça, como era seu hábito quando não sabia bem como se expressar. — A Vi queria que a gente ficasse normal, mas eu tinha muito cagasso dele. Queria que a gente continuasse escondido e tal. Ela ficou bolada, disse que assim não ia dar, que assim ela não queria, me chamou de covarde...

Uma sensação gelada começou a se espalhar pela nuca de Flávio.

— Ela é a minha ungida, cara, eu sei — Davi afirmou em plena fé. — Não deu pra aguentar ela sofrendo porque eu não tinha culhão pra contar que tava namorando uma macum... candomblecista. Nem que meu pai me rebocasse pra fora de casa na porrada eu ia aguentar que ela fosse embora por causa da minha babaquice.

— Sofrendo? — Flávio notou que sua boca estava deveras seca. Tomou todos os goles que ainda restavam do seu refrigerante. — O que tem de tão difícil em...

— Ela disse que se sentia um lixo por ser motivo de vergonha pra mim. Eu amo ela de verdade, cara, não posso deixar ela se sentir um lixo. — Falando aquelas coisas, seu primo até parecia um vertebrado. — Então eu apresentei a Vi pros meus pais. Foi um pouco tenso, mas graças a Jesus a gente conseguiu se...

Eu entendi a mensagem, Deus, já pode parar de esfregar na cara.

— Paga pra mim, por favor, eu já vou — Flávio se levantou de supetão e jogou a mochila por cima do ombro. Deixou vinte reais em cima da mesa. — E na terça eu te ajudo com Constitucional.

— Mas ué? Vai aonde? — Davi o acompanhou com os olhos, confuso, enquanto ele rumava para a saída da pastelalia. Então sacudiu o envelope branco que ainda tinha em mãos — Seu convite!

— Vou remoer meus pensamentos mais profundos e provavelmente fazer algo incrivelmente estúpido, graças a você, seu gênio — falou por cima do ombro. — Depois você me dá o convite. Eu não vou faltar.

Flávio saiu do estabelecimento e do campo de visão de Davi. A inteligência intelectual do rapaz não era tão elevada quanto a emocional, o que lhe impedia de perceber exatamente o que tinha acabado de fazer.

Limitou-se a sorrir com as aulas de graça pelas quais sempre implorava sem auferir resultados e com a oportunidade de ficar com o troco do pastel alheio. Se soubesse do tsunami que suas palavras provocariam na família Veras, talvez ficasse um tiquinho mais preocupado. Mas a ignorância é uma benção que o Altíssimo garante aos seus servos mais devotos.

 

Um lixo.

Flávio nunca tentara entender os motivos de Leonardo para insistir tanto naquele assunto, sempre preferindo atribuir tudo àquela ideologia LGBT que demandava uma exposição exagerada das suas vidas privadas. Nunca tinha parado pra pensar que, por baixo duma camada de sarcasmo e mau humor, Leo se sentia realmente machucado por seu namorado sentir vergonha dele. Fazia sentido, não? Porque era exatamente isso; vergonha e medo. Vergonha de ser escrutinado pelas pessoas a sua volta, medo de perder amizades, respeito e privilégios.

Covardia, em síntese. Há que se dar nome aos bois.

— Isso é tudo culpa sua, Lívia — resmungou baixo e sem muita convicção durante uma aula cujo assunto ele nem sabia. Se a ex não o tivesse incentivado a se assumir para si mesmo e o convidado a ir naquela festa em que ele conhecera um cara atraente, bem resolvido e com ares de intelectual...

...talvez minha vida hoje fosse um tanto quanto miserável, admitiu. Amaldiçoou Lívia por conseguir ganhar discussões mesmo sem estar de fato presente ou ciente da existência delas.

Estava acostumado à ex o persuadindo, de qualquer forma. O que realmente doía era o fato de que quem lhe abrira os olhos fora ninguém menos do que Davi, o elo perdido entre homo sapiens e amebas.

Durante outra aula cujo assunto ele não sabia, logo após um colega de estágio dizer que eles não teriam que ir ao MP hoje por motivos que não chegou a registrar, Flávio olhou diretamente para o teto, fixando os olhos azuis no Senhor.

Se isso não der certo, eu te juro que viro deísta.

 

Nunca pulara de um penhasco na vida (um dos motivos para ainda ter uma), mas supunha que a sensação fosse semelhante à daquele beijo. Nem mesmo o primeiro deles — quando não tinha nenhuma experiência com homens — parecera tão... qual é mesmo o adjetivo para coisas que não têm mais volta? Não estava raciocinando muito bem; o cansaço cobrava seu preço. Mas registrava muito bem o gosto de Halls verde nos lábios de Leo, a sensação do peito dele contra o seu e o calor humano naquele mês frio.

Tudo tinha uma aura de primeira vez, como se não tivessem transado na noite anterior. Quando se afastaram, ele notou a quantidade de pessoas que os olhavam. Ainda que não fosse nada digno de nota para muitas, era várias vezes o número de gente que sequer sabia sobre aquele relacionamento até alguns minutos atrás. Algumas pessoas assoviavam, uma ou outra desviava o olhar em desprezo; havia alguns celulares indiscretos e olhares incrédulos. Sentia o rosto quente.

São só pessoas sendo pessoas.

— Obrigado. — Ouviu Leo sussurrar, pousando a cabeça em seu ombro, seu tom desprovido de qualquer ironia. O alívio que pôde ouvir naquela única palavra fazia qualquer coisa valer a pena.

Talvez a família fosse mais difícil do que aquela multidão, mas Flávio estava disposto a limpar sua ficha.


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Notas finais do capítulo

O título é uma citação de Quem De Nós Dois, Ana Carolina (https://www.youtube.com/watch?v=z4j9BhlmSSU). Volto a dizer que o resto da música não tem necessariamente a ver com o capítulo.

Gente, eu sou de esquerda, não escondo isso e.e Tenho certa dificuldade pra escrever o Flávio, mas EU TENTEI OK -q Esse provavelmente será o capítulo mais chatinho entre os cinco ou seis que eu farei.

Peço desculpas a quem deixou review nos capítulos anteriores e só teve resposta agora :c Serei bem mais rápido dessa vez, eu prometo.

Não é minha intenção ofender os evangélicos com o personagem Davi.