Não se discute escrita por Phaerlax


Capítulo 2
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer


Notas iniciais do capítulo

CHEGAY GALERA *foge dos tomates pelo atraso*

Esse capítulo se passa no bandejão da faculdade do Leo. Ele e o Flavs estudam em complexos diferentes.

Atenção: contém neologismos. Não *risca* quero saber *risca*sei pontuar diálogos. Não me posicionei ideologicamente nesse capítulo, é só a voz narrativa.

Eu usei aquele jogo de bonequinho pra fazer os personajis desse capítulo (ME MATEM) http://i.imgur.com/kbwvczB.jpg



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Leonardo escorregou para o sono e sua cabeça pendeu para frente, meteoritando rumo a arroz com ervilhas, salada de legumes e peitos de frango.

As mãos velozes de Melo frearam seus ombros, servindo para acordá-lo e salvá-lo da colisão iminente com a bandeja do almoço.

Murmurando algo cujo significado desejado nem ele mesmo sabia, Leo saiu da posição de guilhotinado e se pôs com as costas retas contra a escrota cadeira de plástico. Massageava as têmporas com zelo.

— Se continuarem a resolver todo problema com sexo — A voz cândida não se decidia entre um leve sermão e um comentário inocente —, não acho que você sobrevive até o fim do período.

(Em um grunhido perspicaz, o estudante de História conseguiu amaldiçoar, ao mesmo tempo:

1) a preocupação excessiva do amigo, capaz até de notar o desconforto com que se sentava naquele dia;

2) Aécio Neves;

3) todos os participantes daquele burburinho infernal que dominava o bandejão e sucateava seus neurônios.

Era incrível o que uma dor de cabeça podia fazer com a sua capacidade de desejar mal ao próximo.)

— Não resolvi nada — corrigiu enquanto reavia seus óculos, que tinham caído e repousavam tranquilos sobre o frango. — E acho que essa é a última vez.

Melo suspirou e revirou os olhos, o gesto teatral cabendo como uma luva em sua figura angélica. Com cachos loiros, olhos azulíssimos e pele brancadáver, o filho de finlandês nascido no subúrbio carioca se destacava em qualquer grupo.

— Essa é a quinta “última vez” desde que eu comecei a contar, miga — informou, no tom de quem explica a uma criança o porquê de carros não voarem (e não pela primeira vez). — Esse namoro é indestrutível. Vocês vão casar e ter três filhinhas, aceita que-

Era incrível o que uma dor de cabeça podia fazer com a sua capacidade de fulminância visual. Leo abortou a fala do amigo com os olhos, arrependendo-se de não ter posto risoto de camarão no seu prato (Melo era bastante alérgico e o crustáceo era uma arma de grande valor estratégico).

— Tudo bem, então. Dessa vez é... sério... — Agora o tom era o de quem decide concordar com uma criança reclamando de monstros sob a cama. — O que foi, então? A aplicabilidade do comunismo, a direção política de Hitler, o impítiman?

— Nada tão abstrato. — Leo cutucava as cenouras, infeliz. Uns encapetados de Engenharia Civil tinham consumido todo o molho rosé antes dele e agora os vegetais não tinham graça. — Eu só quero que ele pare de ter vergonha de mim. Bem, não só isso, mas...

— Ah. — Melo comentou aptamente. Ele não estava acostumado a um Leo tão sincero com seus complexos. Era comum que o amigo escondesse seus verdadeiros motivos por trás de uma cortina de kudôsse e justificativas surreais.

Mas o finlandês tupiniquim não fora eleito Melhor Pessoa por dois períodos seguidos à toa. Respirou fundo e reuniu forçar para tentar tirar Leonardo da fossa mais uma vez.

— Tu sabe que não pode puxar alguém de Nárnia a força. — Colocou uma mão sobre os ombros magros do amigo, fazendo seu melhor para não tentar desembaraçar aquele cabelo que estava . — Ele gosta de você. Só precisa de tempo.

— Ele não tá no armário. Quase todos os amigos sabem que ele é gay. Mas, pro mundo¸ ele tem vergonha de assumir. Ou medo, ou sei lá. — Leo não tentou afastar seu braço dali, o que era um bom sinal. — E estamos nisso há mais de um ano. Um ano. De quanto tempo...

— Não precisa esfregar na cara, miga. — Melo sorriu um sorriso com traços de tristeza que ele mesmo não sabia estarem ali. Sua incapacidade de manter relacionamentos por mais de duas semanas era lendária.

(Melo de Machimelo de marshmallow porque era branco fofinho e todo mundo come

seu nome de verdade era Alrik ou Ulrik, tipo isso. Ninguém o chamava pelo nome, mas, mesmo assim, Leo se sentia um pouco culpado por não fazê-lo)

— Foi mal, é que... — Desculpas não eram seu forte. Jogava-as no ar e esperava que fossem entendidas.

— Tudo bem, tudo bem. Ao menos você me dá esperanças! — De súbito, os olhos azuis adquiriram aquela cintilância purpurínica que lhes era tão habitual. — A prova viva de que é possível ter um amor à primeira vista com um homem lindo e rico que te leva para morar com ele e resolver qualquer DR com uma noite de sexo selvagem e-

Não foi à primeira vista, só moramos juntos porque é perto da faculdade e eu não tive nenhuma noite de- aagh! — Melo chutou um pé da cadeira e a agonia que sua bunda sobrecarregada mandou em resposta fez Leo ganir vergonhosamente, sumindo com qualquer traço de dúvida sobre a falsidade da negação.

Ele realmente devia ter enchido o prato de camarão.

— E ele não é rico, rico. Classe B no máximo — murmurou derrotado.

— Claro, kultaseni. — Melo afagou os cabelos dele, tornando a constatar com pesar o quanto estavam embaraçados. — É só um cara qualquer, você não gosta dele, vão terminar hoje, você não fica sorrindo que nem uma caloura empolgada sempre que ele te liga, você atura o direitismo só porque é maluco...

Antes que Leo pudesse repreender o amigo traíra por debochar de seus dilemas mais profundos, uma bandeja colidiu pesadamente contra a mesa deles. Continha um prato cujo conteúdo poderia ter o exagero denunciado até mesmo por um pedreiro.

— Isso é culpa do fascistinha?! — trovejou a dona da comida, com acenos tempestuosos da mão indicando a integridade física e mental de Leonardo. Melo suspirou lamentoso, sabendo que a chegada dela significava uma inevitável malhação de Flávio que desfaria todo seu trabalho.

Na verdade fui eu quem quis que ele continuasse mesmo de madrugada e acordei às cinco da manhã só para poder vir à faculdade de ônibus porque sabia que se viesse de carro ele conseguiria fazer minha raiva passar de novo na conversa então se eu só consegui três horas de sono esta noite e estou todo dolorido a culpa é toda minha, pensou algum alterego nas profundezas de Leonardo, uns instantes antes de ele assentir com a cabeça e concordar que sim, era culpa do fascistinha.

— Perdoe-me, deusa, pois eu pequei! — Rosângela levou as mãos ao rosto com o costumeiro excesso de afetação, sacudindo a cabeça com desgosto. A sempre presente nuvem de cabelos crespos acompanhou o movimento, em um espetáculo dançante — Fui eu quem coloquei esse omi de bem no caminho dele!

— Eles se conheceram numa festa da Lívia e você só comentou que tinha um cara bonito olhando pro Leo. — Melo revirou os olhos e colocou um pouco do seu empadão (já frio) na boca. Sabia que raciocinar com aqueles dois seria em vão. — Isso dificilmente te qualifica como a Afrodite da relação.

Rosa ergueu um camarão espetado em seu garfo e o anjo deboísta recuou consideravelmente, agarrando-se a Leo em busca de santuário.


— O que o bolsonazi precisa é de um pé na bunda, simples — concluiu Rosa, não pela primeira vez, assim que o esquerdista conflitado expôs o drame du jour. Ela tinha dito a mesma coisa quando Flávio criticara o Bolsa Família, excessos na Parada Gay, comunismo do PT, o modelo de ensino Paulo Freire, o sistema de cotas e o movimento feminista. Os dois últimos itens foram os pregos em seu caixão, ao menos para a feminista que cursava Letras por cotas raciais (ainda que sua nota no vestibular a permitisse qualquer coisa, verdade seja dita).

Não havia como rotular Rosa como rude, grosseira, agressiva, exagerada ou espalhafatosa, ainda que ela fosse um pouco de muitas coisas assim. Uma mulher intensa, essa era a palavra certa. Em tormenta ou bonança, Rosa era vento e o mundo era poeira.

E o furacão Rosângela queria muito arrancar Flávio Veras pelas raízes e jogá-lo ao mar.

(Em uma festa ele foi chamado de fascista por alguém mas estava meio bêbado e ouviu racista então abraçou Rosa para provar que não era racista e ela considerou assédio racismo misoginia e invasão de espaço e o arremessou por cima da mesa com um golpe de krav maga

eles se detestariam ideologicamente mesmo sem esse incidente, mas, mesmo assim...)

— Não tem salvação pra gay de direita, querido. Ele nunca vai se assumir pra Família Tradicional Brasileira que sustenta ele, nem aguentar faxineiros e garçons sabendo que é um viado. Não tem salvação pra um oximoro ambulante. — As Letras se manifestavam casualmente em seu vocabulário, como sempre. Seus olhos faiscavam de crença no próprio discurso, por trás dos enormes óculos.

Leo apenas assentia, digerindo seu frango e a sabedoria de Rosângela. De vez em quando, Melo tentava mudar de assunto, mas a tempestade o fulminava com um relâmpago e seguia em frente.

— Ele usa sexo porque sabe que não consegue discutir ou fazer o que você pede. Patético, típico de um servo do Patriarcado.

— Nem todo mundo é assexual que nem você, Rosa, o Le- — Um camarão oculto foi casualmente removido debaixo de uma folha de alface. Melo entendeu a mensagem.

— Anote minhas palavras! — Rosângela exclamou enquanto discretamente misturava o conteúdo de um pequeno cantil ao seu copo de suco. Ela sempre dizia que eram male tears, mas era quase certamente vodka. — Ele vai aparecer com uma prenda capitalista qualquer, querendo te comprar de volta. Só quer um vassalo à la feudalismo.

Referência histórica é golpe baixo, miga, Melo pensou.

— Ainda acho que só precisa de tempo — disse, ao constatar que a mulher comera o último camarão. — E vocês fazem ciclone em copo d’água.

— Porra nenhuma! — Rosa negou, tomando um gole de suco de laranja batizado com male tears antes de agarrar os ombros de Leo por cima da mesa. — Você acha que nosso bebê pode ter alguma alegria vivendo engaiolado com um tucano?

— Eles podem falar mal do PMDB pelo resto da vida... — Machimelo divagou, o que lembrou Rosângela de expressar sua raiva sobre as mais recentes manobras de Dudu Cunha em volume alto suficiente para reunir um grupo de dez estudantes em torno deles e iniciar uma pequena guerra.

A cabeça de Leo pendeu perigosamente próxima ao seu prato agora vazio. A dor de cabeça dançava o Ragatanga em seu crânio e, mais uma vez, o anjo e o demônio em seus ombros tinham sido muito pouco úteis.

Por mais que dissecar o contexto político da abdicação de Dom Pedro e pensar a arte barroca no Brasil fosse interessante, ele não conseguiu prestar atenção em nada. Aquele dia de aulas foi mais perdido do que a década de 80.

A dor de cabeça, ao menos, regredira para níveis aceitáveis, o que permitia a Leo quase tolerar o furdunço cacofônico que era a saída da faculdade (deviam aquilo ao gênio que tentara meter tantos cursos em um complexo só).

Estava prestes a começar sua peregrinação para o ponto de ônibus que ficava a dois quarteirões dali quando alguém agarrou seu pulso.

Sim ele achou que seria Flávio era uma suposição perfeitamente válida e EM NADA afetada por qualquer vontade reprimida da sua psique.

Era Melo, com aquela cintilância purpurínica nos olhos, ao lado da Rosa relampejante. O finlandês de Realengo gesticulou para o conhecido Fiat parado mais a frente na calçada (em vaga preferencial, mas era rapidinho, e o motorista era de fato um tipo de deficiente) (nascera sem Noção)

Flávio estivera correndo atrás dele, mas diminuiu o passo a notar que o loiro interceptara seu amante fugitivo. Mesmo assim, os alcançou rapidamente, cumprimentando alguns conhecidos no caminho.

— Não temos o que conversar, primo. —alfinetou o futuro historiador, de maneira considerada muito perspicaz por ele mesmo. Rosa assentiu energicamente em aprovação.

Flávio riu. Claro que Flávio riu. Ele nunca tinha a dignidade de levar a sério qualquer coisa qu-

Ele estava com os braços em volta da sua cintura. Cheirava a pastel. Estavam na cara de todo mundo.

Todo mundo.

— O primeiro passo. Se você quiser — falou, só para ele, próximo ao seu ouvido. —Igualzinho a aquelas celebridades que arregaçam a vida pessoal aos quatro ventos para estar nos tabloides.

— Você não consegue ser um pouco romântico, nem fazendo algo assim? — Leo perguntou, tentado soar sardônico e falhando pesado ao engasgar com sua alegria.

— Não está merecendo, Casmurro, não depois de me fazer te procurar até debaixo da cama hoje de manhã. — Ele conseguia soar sardônico. — E então?

— Tem que ser você primeiro, ou não significa nada. — Leo aproximou seus lábios, convidativo.

Mesmo tendo ido tão longe, ele podia ver vestígios de hesitação nos olhos de Flávio.
Via que ele sabia não haver volta dali.
Viu uma onda de foda-se consumir todos aqueles vestígios quando ele o beijou.

(Nem todo o camarão do mundo poderia ter impedido Melo de rir para Rosa ali mesmo, com tapa ou sem tapa. Houve tapa, mesmo que desanimado)

(Um estudante de Economia aprendeu o conceito de investimento de risco. Tinha apostado cinquenta reais que aquilo nunca aconteceria e, portanto, nada de pizza naquela noite)

(Uma jovem professora de Filosofia postou “MEU SHIP VIROU CANON” em seu Facebook, mesmo que ninguém tenha entendido)

(Exatamente 14 pessoas não ficaram nada surpresas com o acontecido)

(Houve três tentativas de vídeo, nenhuma ficou boa)

— Acho que devemos algumas explicações à moça das entregas, também — comentou o passageiro casualmente. Já estavam no trânsito há uns bons vinte minutos, metade deles passados em um engarrafamento.

O Rio de Janeiro continua lindo.

— Ela se vira, algum dia — profetizou Flávio. Fumava um cigarro janela afora. — Estou mais interessado em conhecer a sua mãe. O que acha de almoçarmos com ela amanhã e com minha família no domingo?

Leo piscou.

Seis vezes.

— Ué.

(Flávio esperava uma mãe solteira cândida e trabalhadora, mas logo descobriria o motivo de Eva Gomes Cipriano ser mais conhecida como Eva Venenosa)

(Antes disso, porém, precisamos entender um pouco o que nos trouxe a esse final doce e diabético. Vamos lá: um direitista e um crente entram numa pastelaria...)


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Notas finais do capítulo

Olá~ Bem-vinda ao fim do capítulo

O título é uma citação de Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores, música do Geraldo Vandré https://www.youtube.com/watch?v=6oGlRrJLiiY Assim como O Quereres no capítulo anterior, o resto da música não tem taanto a ver com o capítulo, mas vale notar que essa foi provavelmente a música mais perseguida pela Ditadura. É uma historinha interessante, até, deve ter na wikipédia, confiram se não conhecerem~

A próxima postagem será cronologicamente ao mesmo tempo que esse, mas com Flávio.