Jardim das Acácias escrita por Lucid


Capítulo 1
Capítulo único




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Setembro de 1984. As ruas calmas do bairro do Itaquera faziam parte da minha rotina matinal a caminho da escola. Percorri por vários anos aqueles caminhos de pedra, que insistentemente desgastavam as solas de meus sapatos, que todas as noites eu lustrava. Contudo, naquele mês, algo coloriu o tom sépia que dominava o bairro. A acácia, que vi ser plantada e cuidada na entrada do Cemitério Paraíso, havia finalmente florido. Suas flores rosadas me lembravam dos pés de cereja que tanto admirei em meus livros de ciências. Não resisti e desviei meu caminho pela primeira vez em anos, precisava olhar de perto tão linda paisagem. Pisando na verdíssima grama daquele campo, segui em direção à mais nova obra prima que a natureza havia me dado de presente, passando pelos grandes portões enferrujados.

Retirei uma de suas flores e a prendi atrás de uma das orelhas. Meus cabelos entrançados já começavam a se desalinhar pelo vento quando decidi me sentar à sombra da Acácia, a grama úmida de orvalho provavelmente sujaria minha saia de pregas que minha mãe lavou com tanto afinco, o tronco da árvore mancharia minha imaculada camisa de linho que ela tanto esfregou, e eu provavelmente chegaria atrasada para a aula, mas não podia desperdiçar a chance de sentar nas raízes de tão linda árvore. Da mochila, retirei uma pera suculenta, e passei a saboreá-la, enquanto observava meus livros largados desajeitados no gramado.

Foi quando uma moça se aproximou, vinda de trás da árvore, e deu de cara com uma intrusa desfrutando da sombra de uma acácia de cemitério. Envergonhada, levantei-me depressa e corri em direção à rua de onde vim antes que levasse um sermão. Sem olhar para trás, segui caminho para a escola, a flor rosada da acácia ainda jazia em minha orelha.

Na manhã seguinte, depois de uma grande lição por ter sujado o uniforme inteiro, estava eu novamente no caminho de pedras rotineiro, passando em frente o Cemitério Paraíso. Na entrada, uma moça esperava em pé, seu vestido azul celeste balançava com o vento, assim como seus cachos escuros. Em suas pequenas mãos repousava um pequeno livro de capa dura e desgastada que logo reconheci como sendo meu livro de ciências da escola. Quando seus olhos escuros encontraram os meus, vi sua mão levantar em um aceno gracioso, que me levou a caminhar em sua direção.

— Acredito que seja seu... — falou baixinho, esticando seus braços magros e me entregando o livro.

Sua pele morena e delicada, seus grandes olhos escuros que pareciam me acorrentar, suas mãos pequenas que acidentalmente encontraram-se com as minhas ao devolver o objeto, tudo naquela menina era encantador. Quis saber seu nome, sua história, seus segredos, mas nada consegui dizer. Minha única reação foi agradecer com um aceno de cabeça, sorrir timidamente e desaparecer rua abaixo, sem dizer uma única palavra à moça dos cachos.

Naquele mesmo dia, quando voltava para casa ao fim da tarde, o céu aberto me pregara uma peça e começara a derramar sem aviso suas gotas geladas. Por sorte, ou destino, estava em frente ao Cemitério Paraiso quando ocorreu, e pude me abrigar debaixo da linda acácia. E, certamente por destino, não era a única a se proteger sob a copa da árvore: a moça dos cachos também estava lá. A fina chuva começara a ficar mais forte, e eu sabia que, felizmente, teríamos que desfrutar da companhia uma da outra por um tempo.

Contei-lhe sobre minha admiração pela acácia rosada que estava sobre nossas cabeças, e então a tristeza deixou seus olhos e escorreu por suas bochechas. A moça me contou que seu pai plantara aquela árvore em homenagem a sua mãe, avó da menina, que estava enterrada naquele cemitério. Seu nome era Acácia, e os dois decidiram fazer à senhora que tanto amaram uma homenagem, plantando um pé da árvore que a nomeou. A mulher que ajudou a cria-la junto de seu pai, depois que sua mãe morreu quando a moça ainda não sabia nem falar. A mesma mulher que foi lembrada na hora de batizar a criança, que recebeu seu nome. A moça dos olhos castanhos se chamava Acácia, assim como sua avó.

Os dias se passaram, e todas as tardes eu e Acácia nos encontrávamos para conversar sob a copa da árvore das flores rosadas. As histórias que a tímida moça me contava me deixavam cada dia mais fascinada, sua voz macia entrava por meus ouvidos e me hipnotizava, e quando partia me deixava com saudades. Não demorou muito para que a menina se tornasse o motivo das borboletas no estômago que me surgiam sempre que o sinal de fim da aula tocava, que me faziam correr em direção ao Cemitério Paraiso, e que me faziam passar meu fim de tarde apenas na sua companhia e dos mortos que jaziam silenciosos sob nós.

Outubro de 1984. Era a primeira semana de outubro quando pela primeira vez Acácia não me aguardava para nosso encontro de fim de tarde. Sentei-me sozinha no gramado e a esperei, porém ela não veio. No dia seguinte a história se repetiu, a moça dos cachos não compareceu ao cemitério. No outro dia, a mesma situação. Vi uma semana se passar, duas semanas, e Acácia não veio. Senti-me culpada por nunca ter perguntado onde morava, assim poderia visita-la, saber o que havia de errado.

Era quase final do mês quando, voltando da escola, encontrei a morena sentada sob a árvore e quase explodi de alegria. Corri em sua direção e a abracei sem dizer uma única palavra, sentira tanto sua falta e mal podia esperar para ouvir sua voz graciosa me envolver. Quando me desprendi do abraço, dei de cara com uma Acácia triste, as olheiras tomavam conta de seus olhos, agora fundos, seus braços deixavam à mostra seus ossos que nunca haviam aparecido sob a pele, seus lábios ressecados pareciam que iriam rachar a qualquer momento. Meu mundo desabou.

— O que aconteceu com você? — disparei, um nó na garganta já se formava e quase não me deixava respirar. — Onde esteve por tanto tempo? Eu estava tão preocupada!

— Estou muito doente, Teresa. —Sua voz falhou, quase não conseguindo terminar a frase. — Não sei quanto tempo ainda resistirei. Desculpa não ter te contado desde o começo.

Não esperei que continuasse e a beijei. Seus lábios machucados não me incomodavam, nossas lágrimas salgadas não me incomodavam. Se não tínhamos muito tempo, não queria esconder o que sentia por mais um segundo sequer. Interrompi o beijo e a abracei novamente, afundando meu rosto em seus cachos escuros e macios. Ficamos ali, apenas abraçadas por um bom tempo, onde a ouvi soluçar incessantemente, o que me partia o coração por não poder ajuda-la. Já era escuro quando a acompanhei até sua casa, que era a algumas ruas dali. O caminho inteiro segurei sua pequena mão, gelada como aquela noite de outubro.

Daquele dia em diante, nossos encontros não aconteceram mais no Cemitério Paraiso e sim em sua casa, mais precisamente em seu pequeno quarto, onde ela ficava sempre deitada, sem forças para levantar. Todos os fins de tarde visitei Acácia, levei-lhe flores da árvore de sua avó, penteei seus cabelos, contei-lhe histórias dos livros que enfeitavam suas estantes. A abracei incansavelmente, a consolei e cuidei dela. Entretanto, não pude evitar que a doença se agravasse, e sofri vendo minha amada empalidecer, entristecer e enfraquecer sem que eu pudesse controlar. Eu estava perdendo minha moça dos cachos macios, dos olhos grandes e escuros, das mãos pequenas e da voz tranquila. Eu estava perdendo minha pequena Acácia.

Dezembro de 1984. Acácia e eu voltamos a nos encontrar no Cemitério Paraiso. Todos os fins de tarde lhe levava um pequeno buquê de flores colhidas no caminho do nosso ponto de encontro. Conversava com ela, lhe contava sobre meu dia, porém nunca obtinha resposta. Contudo, não tinha raiva, pois sabia que minha Acácia agora estava feliz.

Ao lado do velho pé de flores rosadas, um segundo pé brotava tímido como a moça das mãos pequenas, que acenaram para mim no dia em que nos conhecemos. E eu o regava todas as tardes, para manter viva minha amiga. E por muitos anos regarei meu jardim de acácias.


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Notas finais do capítulo