Prisoner escrita por bitterends


Capítulo 17
Minta para Mim


Notas iniciais do capítulo

Desculpem a demora, correrias da vida.
Para compensar, um capítulo longo e algumas coisas mais...
Buona lettura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/615880/chapter/17

Assim que Khalil se trancou em seu escritório para uma videoconferência, Alice entrou em contato com Lorenzo.

Mi dispiace por não ter ligado antes, meu amor. Fiz buon viaggio. Foram tantas coisas a fazer…

— Que desculpa furada, miele. Seu quase-ex-marido está por aí e por isso você não pôde me ligar, pode falar, não me aborreço.

— É, foi assim mesmo. - Dissimulou.

Conversaram alguns minutos mais, quando sem rodeios a moça perguntou:

— Lollo, você já pensou em mudar de país? Morar na América, algo assim?

— Que pergunta a se fazer por telefone. Nunca pensei na possibilidade, nem tenho vontade.

— Acho que deveria começar a pensar sobre o assunto.

Ouviu a voz do marido chamando-a e possivelmente Lorenzo também, desligou abruptamente, sem esperar resposta.

— Então você estava aqui… Esse jardim é muito mais bonito com sua presença.

— Como você é galanteador, Khalil. Estava falando com minha mãe…

— Estou pensando em passarmos uma semana por lá, mas no próximo mês, pois preciso resolver alguns assuntos nos Estados Unidos daqui três dias.

— Tão rápido?

— Infelizmente, com essa instabilidade econômica a nível mundial, preciso proteger meus negócios, meu bem.

— E cuidar das suas crianças e ex-prostitutas… - Soltou, sem ao menos pensar antes.

— O que disse? - Perguntou, enraivecendo.

— Eu…

— Mexeu nas minhas coisas! E não me incomodo com isto. Só não fale assim sobre as pessoas que decidi ajudar há muito tempo. - Disse ríspido, virando as costas e se retirando do jardim.

— Não entendi essa reação. - Seguiu-o.

— É coisa minha. Não se preocupe.

— Me preocupo, você é meu marido.

— Um dia te conto.

 

Alice nada entendeu, mas também não tinha certeza se realmente queria entender aquela reação, tampouco saber os motivos de Khalil para ajudar instituições de caridade, até porque não se importava com as transações financeiras dele ou suas decisões. Estava muito mais preocupada com Lorenzo.

 

***

 

Khalil desceu ao subsolo da casa e entrou num suntuoso porão que abrigava a oficina mais bizarra que um ser humano pode ter. Uma oficina de taxidermia.

Ele estava preparando a pele de um corvo havia um mês para receber as próteses e preenchimento de materiais compostos e poliuretano.

Alice notava que ele sumia por algumas horas da casa, às vezes dias inteiros, mas nunca se interessou em procurar e por sua vez, Khalil nunca mostrou seu hobby sombrio a ela.

A maioria dos animais taxidermizados eram aves, apenas quatro eram de porte maior: os quatro eram felinos.

Ele andou em direção a uma prateleira e acariciou o gato egípcio que ali estava sentado, eternamente de olhos abertos, fixos em seu dono. Khan (o gato) foi o último presente que recebeu de sua falecida mãe.

— Oi, amigão… Hoje é aquele dia em que as lembranças transbordam. Não somos fortes o tempo inteiro.

 

 Ele era apenas um garotinho, que como toda criança, só queria ser amado e mimado além de se sentir confortável e seguro.

A mulher tinha o nome da deusa (Ísis) e possuía suas maiores qualidades: simples, doce, protetora.

O pai do garoto era oriundo de uma das linhagens egípcias mais tradicionais, sobrenome de muita importância desde os primórdios da história daquele país e consequentemente, de uma das famílias mais ricas e poderosas do Egito. Por uma letra de diferença em seu nome, o homem não era o clone do pai. Khalid, que significa “o imortal”, realmente nunca morreu nas memórias de Khalil.

Quanto a Ísis, ele lamentava por a cada ano lembrar-se menos dela. As lembranças estavam sumindo lentamente de sua memória, mas as que ele lutava em esquecer estavam sempre ali. Enquanto as boas recordações esvaiam-se, as ruins o assombravam.

Recordava-se de ouvir seu pai dizer “Nome de deusa, comportamento de prostituta”, não acreditava no homem, sua opinião acerca de sua mãe era diferente. Ele sentia nela o amor e o carinho quando estavam juntos e a amava com devoção, para ele Ísis era soberana. Uma deusa. Pena ter vivido tão pouco.

 

Khalil foi mandado para internatos europeus desde a mais tenra idade e permaneceu até a maioridade naquele tipo de ensino. Seu pai dizia que ele deveria dominar o mundo e para isso, deveria se “ocidentalizar”, ter fluência nas línguas mais faladas do ocidente para fazer negócios com norte-americanos e europeus. Quando garoto, seu convívio familiar era conturbado e somente em época de férias escolares. De fato, agora ele dominava boa parte do mundo; expandiu a exploração de petróleo iniciada por seu pai na Arábia Saudita, na mineração e exploração de metais e pedras preciosas em países decadentes do continente africano, investia em fundos internacionais de multimercados entre outras atividades paralelas. Khalil herdou de seu pai, além de uma boa fortuna, um dom natural para negócios e ele simplesmente sabia onde e quando empregar seu dinheiro.

Um arbusto em frente a uma das pequenas janelas do porão se remexeu trazendo o homem de volta para seu presente. Foi apenas um vento forte.

Decidiu sair dali um pouco e se desculpar com Alice, não estava afim de confusão com ela.
As sessões de terapia com Valentina estavam sendo colocadas em prática e por um lado ele já conseguia não maltratar sua mulher, por outro, para controlar o animal preso em seu corpo ele estava fumando a cada dia mais, substituindo o álcool pela nicotina de cigarros e outras substâncias presentes em charutos.

 

Subiu para o térreo e encontrou a esposa esparramada num sofá da saleta de lazer, lendo um livro que ele não se interessou em saber qual e ela parecia irresistivelmente concentrada, causando nele a vontade de atrapalhar aquele momento para que ele recebesse um pouco daquela atenção. De supetão, agarrou sua jovem mulher e beijou-lhe os lábios com desejo.

 

— Me desculpe por ter falado daquela maneira mais cedo… Você sabe que não costumo mexer em suas coisas, menos ainda me intrometer em seus assuntos. Nada tenho a ver se você ajuda a orfanatos e lares para moças. - Iniciou Alice após o beijo.

— Eu gostaria que pudéssemos conversar… que você soubesse um pouco sobre porquê faço caridade em especial nestes lugares…

— Mudará em algo se me contar?

— Não, na verdade. É só porque eu gostaria de conversar um pouco… já não consigo dizer quanto tempo faz que nós conversamos por mais de uma hora pela última vez…

Alice olhou desconfiada para o marido, fechou o livro e colocou-o em cima de uma mesa de canto, endireitou o corpo para abrir espaço para ele sentar confortavelmente ao seu lado.

— Nunca falei sobre minha família antes para alguém, nem mesmo para você. Só o que conto são os nomes e que ambos faleceram. - Percebeu que o interesse e a curiosidade cresciam no olhar de sua esposa e continuou- Nossa família é muito antiga, temos tradições e crenças desde o Antigo Egito e uma delas (as tradições) é a de que se casar com meretrizes traz boa sorte, é símbolo de virilidade, prosperidade e que elas são mancomunadas com as deusas, ter filhos com elas é o ápice e depois disso o homem está abençoado completamente…

— Sua mãe era prostituta? - A jovem interrompeu.

— Foi. Ela foi. Era extremamente pobre, da Arábia, tinha que se vender para comer… meu pai a encontrou quando foi visitar seus negócios. Ela tinha uns dezessete anos nessa época. Bonita, jovem, inocente e meretriz.

— Tudo o que um homem de tradição gostaria. - Completou Alice.

— Sim. Passaram algum tempo juntos porque ele queria um filho com ela. Quando finalmente a engravidou, ela estava encantada por ele. Pensou que sua vida seria linda, com um marido legal e um filho… Mas não era isso que meu pai queria. Ele só queria um herdeiro com uma meretriz, me queria só para ele. Engraçado que eu ainda não havia nascido quando a briga pela minha guarda começou. -Soltou um sorriso nervoso. - Eles entraram num consenso totalmente injusto para o lado de minha mãe, foi um preço muito alto para ela querer ter ficado comigo. Eu teria entendido se ela tivesse me abandonado. Ela era tão boa, carinhosa, protetora… Não tivemos convivência diária, meu pai a tratava como prisioneira e eu precisava fazer birras por horas para vê-la. Aos seis anos eu fui colocado em um internato na Inglaterra e vinha somente quando era inverno lá, passar as férias. Mamãe faleceu quando eu tinha doze anos.

— E seu pai?

— Faleceu pouco tempo depois… foi encontrado no deserto, com um tiro na cabeça. Não sei o que houve, eu já estava de volta ao internato... eu nem me lembro do desenrolar da história. Faz tanto tempo...

A moça estremeceu. Ela tinha certeza que ele havia feito aquilo mesmo sendo apenas uma criança na época.

— Eu vi minha mãe sofrer tanto… ajudo essas moças porque não gostaria que elas passassem pelo mesmo. É muito comum homens de famílias antigas saírem de suas terras e procurarem jovens se prostituindo, totalmente vulneráveis aos interesses deles. Sei que atendo a uma pouca parcela, mas é melhor do que não ajudar.

— Quanto as crianças?

— Crescer num internato não é boa experiência para crianças. Todos éramos ricos ali, mas a escola nos negligenciava muitas coisas básicas. Era uma fortuna mensal que nossos pais desembolsavam, mas nunca iam ver nossas condições. Eles diziam que era para o nosso bem, mas acho que só queriam distância. Somente um orfanato poderia ser pior… Então eu criei meu abrigo, onde nada falta para as crianças de cada um deles. Busco não deixar sequer o amor faltar, gosto de conhecer pessoalmente quem vai tomar conta de minhas crianças… Além disso, meninas são aliciadas , forçadas a se prostituírem antes mesmo de entrarem na puberdade… E eu tenho um nojo, tenho ódio… Eu caçaria quem faz isso. Não sou a melhor pessoa do mundo, mas eu jamais faria mal a uma criança.

— Interessante, eu gostaria de conhecer seus trabalhos sociais algum dia.

Um sorriso sincero brotou no rosto de Khalil, agora ele poderia se sentir apoiado pela esposa em alguma coisa pelo menos.

Uma parte de sua vida estava sendo aberta, uma parte pequeninha. Uma gota do oceano que o homem era.

— Sabe, querida. Eu nunca quis parecer meu pai, jurei que nunca trataria alguém como ele tratou minha mãe… E veja o que fiz com você… - Acariciou o delicado rosto da moça. - Eu espero que você consiga me perdoar algum dia. - Encostou sua testa na dela, acariciando sua nuca nua e seus cabelos.

— Nós somos aquilo vemos em casa. - Alice se afastou de seu marido. - Eu vou tentar, estou tentando na verdade. É só que… eu sinto muito medo de você agora, eu nunca sei quando vamos nos descontrolar e é estranho para mim. Você é um estranho. Eu não te conheço!

— Estou fazendo terapia… Valentina, minha terapeuta disse que vai ser melhor agora. Eu sou o homem que você se apaixonou!

— E também é o que me… - Os olhos dela encheram-se de lágrimas.

Khalil a alcançou e a abraçou com força, ambos choravam e soluçavam naquele momento. “Eu sou bom. Eu sou bom. Sou eu. Estou aqui.” repetia ele inúmeras vezes.

 

— E então menino, sabe como se faz quando sua mulher é uma prostituta? Sabe como se faz quando você a pega com um outro homem?

Era a voz embriagada de seu maldito pai, encurralando a frágil e doente Ísis, no canto do porão. O homem segurava um cinto grosso de couro em sua mão.

— É assim, vou te ensinar. - Ouviu o forte estalar do cinto quando foi acertado nas costelas de sua mãe, que apenas se encolhia de dor… já não gritava mais.

— Não! - Gritou o garoto do fundo de sua garganta.

— E depois – continuou Khalid, largando o cinto no chão, abaixando as calças e abrindo as pernas de Ísis sem pedir permissão. - você a devora. Com muita força.

Khalil berrou, vomitou de nojo e o homem não parava. O garoto então pegou o cinto do chão, fez o laço e o encaixou no pescoço de seu pai. Apertou até que ele perdesse a consciência. Era um menino forte, corpulento desde que nasceu, não foi difícil ter um bêbado em seu domínio.

— Filho, solte seu pai. Me obedeça. - Disse Ísis, chorando e em tom muito baixo. - Vamos Khalil, solte seu babbo.

— Eu vou matá-lo. - disse ele chorando, soluçando e perdendo a força de apertar o cinto. -Eu vou matar esse homem!

— Você é bom. Você não irá machucar ninguém. Você é bom! - O menino correu para abraçá-la.- Eu escolhi o seu nome… “O estimado”, significa “estimado, amigo camarada, estimado”. Pegue o seu gatinho, vá para seu quarto. Não esteja aqui quando seu babbo acordar. Você é bom.

No dia seguinte Khalid mandou o filho para um novo internato, muito melhor, na Espanha, onde as crianças poderiam ter bichos de estimação e o garoto pudesse levar o gato que ele não desgrudava, e um quarto individual, para si e seu gatinho Khan.

Quando Khalil retornou para as férias, quase um ano depois, Ísis já havia falecido. O ódio por seu pai aumentou, ele deveria ter ido buscá-lo na escola. Deveria ter feito um velório.

Khalid gostava do menino, por isso perdoou o episódio de meses atrás. O filho era seu único herdeiro e ele já não tinha paciência nem vontade de ter outro.

Certo dia o levou para uma extensão de terra próxima ao rio Nilo.

— Você vê, filho? Tudo isso é seu.

— Isto é só um punhado de terra.

— Nunca se sabe, a tecnologia avança! Pode servir para alguma coisa algum dia.

Uma semana depois, Khalid Abdu morreu ali, baleado na nuca. Haviam muitos suspeitos, muitas pessoas o queriam morto. O menino já tinha voltado para o internato haviam alguns dias, além do calibre da arma ser muito grande para uma criança de quase treze anos, logo a polícia nunca o investigou nem ele estava na lista de suspeitos.

Um dos seguranças assumiu a autoria do crime, mas nunca contou a motivação.

Em testamento, o pai deixou a escola como sua tutora caso algo lhe acontecesse e quantia delimitada para seus gastos, o que salvou um dos garotos mais ricos do mundo de um orfanato e consequentemente de uma família e tutores que gastassem ou roubassem seus recursos antes dele completar seus dezoito anos.

Com esse conceito de família, ele cresceu.”

 

— Eu sou bom. Não vou machucar ninguém. - apertou um pouco mais o abraço em Alice.

— É o que eu quero ver. - respondeu ela.

Khalil se sentiu fraco ao se abrir, se sentiu frágil e vulnerável. Valentina disse que ele se sentiria mais leve ao se abrir com alguém e que sua esposa era a melhor indicada para o desabafo. Ele queria ter contado mais, ele queria ter contado as lembranças que vieram a tona naquele abraço apertado que havia muito que não recebia, aquele abraço que chegou quase perto de parecer o último que recebeu de sua adorada mãe.

Porém ele sentia que Alice estava mais próxima de se vingar do que sentir compaixão por ele. Não confiavam mais um no outro. A amava, era obcecado por ela e sua possessão o estava enlouquecendo.

Em seus negócios, quando não havia confiança, quando perdia a cabeça naquilo, as parcerias eram desfeitas.

Impulsivamente soltou-se do abraço e olhou no fundo dos olhos de Alice.

 

— Eu quero me divorciar de você, Alice.

 

Virou as costas para ela. Retirou a aliança de ouro branco de seu dedo anelar esquerdo e a colocou em cima do livro na mesa de canto, andou e foi engolido pelo corredor a sua frente.

 

Aquilo foi um blefe?

 

 

 

 

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Prisoner" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.