Iguais escrita por Winston


Capítulo 1
Início e fim




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Era primavera quando a conheci, na beira do píer, com os olhos ardendo por uma alergia que eu não sabia que tinha até dois dias antes. Culpei meus olhos vermelhos e a falta de um colírio ao vê-la, no horizonte ao longe, no meio do mar. Não era possível que alguém estivesse ali, nem com o dia bonito que fazia e o mar calmo daquela parte da praia, ninguém nunca ia tão longe. Não se queria voltar vivo pra casa. Mas ela não parecia estar se afogando, e naquele momento eu nem mesmo sabia se era ela ou ele, estava longe demais e a única coisa que eu podia distinguir era que tinha ombros e uma cabeça, o que na minha cabeça significava que era uma pessoa. O píer estava vazio, não era nem para eu estar ali, mas havia saído correndo enquanto voltava pra casa para lavar meu rosto na água, aquela alergia era insuportável. Mas mesmo assim me coloquei de pé num pulo, olhando ao redor procurando por alguém, qualquer um, que pudesse pegar um dos barcos ali parados e ir ajudar a pessoa ao longe.

Bastou tirar os olhos do mar para fazer isso para que, quando voltei a olhar para o mar, a silhueta já não estava mais lá. Meus olhos se arregalaram e lacrimejaram mais ainda, soltei um grito abafado ao levar as mãos molhadas à boca, pensando que tinha acabado de ver alguém se afogar e não podia ter feito nada. Meus pés deram passos até a ponta do píer, como se eu já não estivesse basicamente pulando no mar naquela altura, mas até a minha pessoa com os olhos ardendo de alergia sabia que não podia simplesmente me atirar no mar e esperar ainda salvar alguém que estava tão longe, e que possivelmente já tinha se afogado. Eu nadava bem, mas não tanto.

Não sei quanto tempo se passou enquanto eu estava parada olhando o horizonte, como se isso adiantasse alguma coisa, mas o barulho de algo saindo da água perto de mim me fez piscar os olhos várias vezes, olhando para baixo imaginando que talvez fosse um peixe feliz saltando por aí. Não que isso fosse normal tão perto da costa, mas não era impossível. Meu susto fora tão grande ao ver uma garota apoiando os braços na borda do píer que dei dois passos mal dados para trás e caí de bunda com tudo na madeira. Fiz uma careta que deve ter sido realmente horrível, se contasse que meus olhos continuavam vermelhos e lacrimejando não era de se estranhar que estivesse assustadora, porque a garota soltou o que pareceu ser um grito e sumiu na água outra vez.

– Ei, não! – tentei gritar no desespero, não sabia o que ela estava fazendo, mas depois de ver alguém ao longe se afogando já estava ficando paranoica.

Joguei meu corpo pra frente, engatinhando até estar outra vez na beirada do píer, olhando para a água calma do mar abaixo de mim. Meus olhos ardiam mais do que nunca, e levei uma mão até a água e passei sobre o rosto, não era a melhor ideia que eu tive na vida, mas não sabia mais o que fazer sem um colírio por perto e ainda estava preocupada com a garota. Joguei meu corpo para trás, dessa vez com mais tranquilidade, sentando com as pernas cruzadas enquanto continuava esfregando os olhos fechados, resmungando de tanto que ardiam. Só parei de estragar ainda mais minha visão ao sentir uma mão molhada sobre meu joelho, mas dessa vez, por um milagre, não me levantei e saí correndo, apenas abri os olhos lentamente para ver a garota outra vez ali, e agora tinha algo de uma cor duvidosa na mão que não se apoiava em mim. Tombei a cabeça ligeiramente para um lado ao inclinar o corpo pra frente, vendo que ela tentava ao máximo se aproximar do meu rosto.

– Que foi? – perguntei, agradecida dela não ter resolvido se afogar depois de me ver parecendo uma vampira.

A garota apenas moveu a cabeça para os lados, com seus longos cabelos pretos e molhados se movendo lentamente sobre os ombros, esticando a mão com a substância de cor estranha na direção do meu rosto. Estranhei, mas, antes que pudesse me afastar outra vez, ela tinha os dedos tão perto de meus olhos que acabei fechando-os por instinto, para logo sentir um frescor contra eles que achei que não sentiria tão cedo. Podia dormir ali mesmo enquanto ela passava ligeiramente aquilo por minhas pálpebras, era realmente um alívio depois de tanto tempo com aquela ardência.

– Obrigada. – minha voz não saiu mais que um murmúrio feliz, e podia jurar que a garota soltara uma risada por causa disso.

Fui para abrir os olhos e agradecer direito, mas as mãos dela os taparam quase com desespero, o que também me deixou alarmada pra variar. Ela tentou dizer algo, ao menos era o que parecia, e esperei ouvir alguma explicação, mas ao perceber que não ia receber nada perto disso e as mãos dela não deixavam meus olhos, levei as minhas até seus pulsos ainda molhados. Notei que ela estremecia levemente quando a toquei, mas não retirou as mãos, mesmo quando fiz um pouco de força para que o fizesse.

– Não! – finalmente ela cortou o silêncio antes que eu começasse a reclamar. – Tem que esperar pra dar certo. – parecia ter medo de falar, mas soltei seus pulsos mesmo assim, a sensação era boa demais em meus olhos para reclamar do que quer que fosse que ela tivesse colocado neles.

– Tá bem. – falei, eu apoiar minhas mãos sobre meus joelhos.

– Tá bem. – ela respondeu, finalmente livrando meu rosto de suas mãos molhadas. Para logo tê-las sobre as minhas, pausando por um longo tempo antes de resolver falar outra vez. – Iguais.

– Ahn? – quase abri os olhos com essa palavra repentina, mas me contive em só franzir o cenho.

– Nossas mãos, são iguais. – agora mexia com meus dedos, virando minha mão de um lado para o outro, parecendo mesmo curiosa.

Tive que conter uma risada, que saiu como quase um engasgo e algo parecido com um bando de espirros estranhos. Mas é claro que seriam iguais. Provavelmente também eram do mesmo tamanho, já que pelo que parecia ela era ou uns dois anos mais velha que eu ou da mesma idade. Mas o toque dela não parou mesmo depois do meu ataque, continuou passando os dedos lentamente sobre minha palma como se não notasse que aquela afirmação era uma coisa muito estranha de se dizer. Não sei exatamente porque não me afastei logo daquela garota esquisita, talvez fora porque tinha me ajudado com meus olhos, ou porque a sensação de seus dedos era tão incrivelmente cuidadosa que eu não tinha em mim para deixá-la ali no vácuo.

– Por que não seriam? – perguntei depois de um tempo, a conversa já estava fazendo pouco sentido, minha pergunta não devia ser assim tão estranha.

– Não sei. – senti um de seus dedos tocar minha perna. – Elas são.

Fiquei em silêncio porque já não sabia o que dizer depois disso, como assim ela achava minhas pernas diferentes? Será que eu tinha pernas assim tão estranhas? Não era possível, ninguém nunca tinha comentado isso comigo antes e claro que alguém teria comentado se minhas pernas fossem esquisitas ao ponto de alguém achar que eu teria mãos diferentes também. Comecei a divagar sem perceber, e quando me dei conta tinha o rosto sendo segurado dos lados, mas agora era puxado lentamente pra baixo.

– Já deu tempo. – disse ela, e pude sentir que soprava minhas pálpebras, o que me fez encolher um pouco e rir baixo, fazia cócegas. Passou os polegares sobre elas logo depois. – Pode abrir.

Hesitei, ainda meio que sentia que tinha algo ali e tive medo de que entrasse nos olhos e piorasse ainda mais a alergia, mas depois de um tempo acabei abrindo-os bem devagar. Devia ter algum motivo para que eu não me movesse para arrumar a postura antes de poder ver outra vez, mas como continuei na mesma posição, a primeira coisa que vi fora dois olhos grandes e negros me olhando de volta, pareciam quase brilhar de felicidade.

– Melhorou? – veio a voz e, apesar dos olhos brilhantes, seu tom era de quem ainda tinha medo de ter feito algo errado.

Assenti com a cabeça, para logo não aguentar mais e começar a rir, uma risada tão genuína e aliviada que nem eu acreditava que pudesse soltar. A garota me olhou estranho por um tempo, antes de também se juntar a mim em um ataque de risos que nem tinha motivo para existir, mas que dava uma sensação ótima.

Foi no segundo dia que descobri o que ela era.

Não que não tivesse estranhado que, mesmo depois de conversar um pouco e ficar ligeiramente tarde, ela não fazia menção alguma de sair da água. Acabei me levantando e indo para casa apressada, havia demorado demais naquela coisa toda com a garota da água e meus pais provavelmente deveriam estar preocupados, nem ao menos me toquei que ao dar a volta para sair correndo do píer a garota voltava para dentro do mar, e não para fora dele.

A situação só bateu na minha face com tudo no dia seguinte, quando voltava também da aula e, ao olhar para o píer lembrando-me do encontro engraçado, a vi de novo ali, com os cotovelos apoiados na madeira da passarela me olhando com olhos curiosos. De longe parecia até que esperava alguma coisa. Franzi o cenho e parei de andar na direção de minha casa, dando meia volta para caminhar até a garota, que agora abria um sorriso animado ao ver que eu não a ignorava. Não sabia exatamente o que dizer a ela, mas ao lembrar que meus olhos agora não ardiam desde que ela tinha colocado aquela coisa neles, decidi me focar no agradecimento.

– Obrigada outra vez pelo de ontem, parece que dura bastante.

Ajoelhei-me em frente a ela, que não parava de sorrir. Tombou a cabeça sobre os braços cruzados, levantando os olhos para me olhar melhor, como sempre tinha aquele ar de curiosidade do dia anterior.

– Por que não entra na água? – perguntou ela de repente, mas desde a conversa de antes não tinha nem motivos para que eu estranhasse aquilo.

– Por que não sai dela? – entrei na onde, agora me ajeitando para sentar melhor no chão.

– Não posso andar na terra com isso. – respondeu ela simplesmente, apontando com o dedo indicador para algo atrás de si, levei os olhos até lá e por lá ficaram ao dar de cara com uma cauda. – Mas você pode nadar com as suas. – continuou, mas nessa altura eu já não ouvia nada.

Meus olhos iam do espaço em que a cauda da garota aparecera segundos atrás para o rosto dela, com a boca escancarada e piscando os olhos desnecessariamente rápido. Tentei fazer sair alguma palavra, mas o que saíram foram apenas um bando de ruídos estranhos e por isso desisti, fechando a boca para então finalmente parar meu olhar no dela, que agora aparentava preocupação e uma pitada de desespero. Vi que ela começava a se afastar do píer, descruzando os braços e jogando o corpo para trás bem devagar. Só consegui me mover e fazer algo de útil quando o rosto já encarava o mar ao longe e só uma de suas mãos ainda segurava a madeira da passarela, e no desespero estiquei o braço e segurei-a antes que pudesse mesmo ir embora de vez.

A garota, ou sereia? Me dei conta de que nem sabia seu nome ainda e ao ver que ela parava em seco quando a segurei, respirei fundo e fiz a pergunta mais idiota praquele momento. Nunca fui muito esperta em momentos em que tinha que pensar rápido, aquela hora não foi diferente.

– Qual seu nome? – engoli em seco, esperando para ver se ela iria se virar de volta pra mim ou simplesmente tentaria se soltar.

Ela não fez nenhuma das duas coisas, e sim deslizou a mão que eu segurava até que fosse fácil para que ela segurasse também a minha.

– Alira. – respondeu, num tom tão fraco que se eu não estivesse tão perto não teria ouvido.

– O meu é Laura. – forcei um sorriso, segurando com mais força a mão molhada dela, que agora fazia todo sentido estar sempre molhada.

Houve uma pausa tão estranha que praticamente podia ouvir meu coração batendo quase numa taquicardia, não queria que ela ficasse triste e fosse embora sem me dar chance de vê-la outra vez. O que seria totalmente minha culpa, ela provavelmente estava animadíssima para me mostrar sua cauda e eu tinha feito o maior alarde parecendo ter visto o monstro do lago Ness. Enquanto brigava comigo mesma em minha cabeça, a voz de Alira entrou em meus ouvidos outra vez.

– Não achou bonita? – a pergunta veio quase num suspiro. Demorei a perceber do que ela estava falando, mas assim que caiu a ficha arregalei os olhos.

– Não, quer dizer, sim. É linda. – apressei-me a responder, percebendo que me saltava palavras. – De verdade que achei linda, só me pegou de surpresa.

Tive que esperar mais algum tempo antes que ela abaixasse a cabeça e desse meia volta, nadando até ficar de frente para mim outra vez. Sua mão livre foi até o meu pulso que segurava sua outra mão, passando os dedos delicadamente sobre ele, ainda sem levantar a cabeça.

– Obrigada. – quase podia ouvir o sorriso em sua voz, e logo depois seus lábios tocaram levemente o dorso de minha mão.

Arregalei os olhos e senti minhas bochechas começarem a ficar quentes, mas que diabos? Por que ela tinha feito aquilo de repente? Será que era coisa do povo do mar? E mais uma vez me peguei encarando-a com a cara assustada, mas dessa vez Alira não se afastou, apenas abriu um meio sorriso e vi que suas bochechas começavam a ficar de um tom rosado. Fiquei atontada ali por algum tempo, e ficaria ainda mais se ela não tivesse me tirado do meu momento lerdeza ao soltar minha mão de uma vez, provavelmente vendo que eu tinha uma feição esquisita no rosto.

– Desculpa, eu vejo muita gente fazer isso e vocês parecem felizes, achei que era normal. – começou, puxando uma mecha do cabelo molhado para enrolar entre os dedos.

– Não, não. É normal, quer dizer, mais ou menos. Depende. – ugh, e mais uma vez lá estava eu sem saber como explicar as coisas, e levei uma mão até a nuca como se isso ajudasse a organizar meus pensamentos. Pareceu ajudar, ou quase isso, já que uma pergunta surgiu em minha cabeça logo depois de um suspiro. – O que vocês fazem pra mostrar afeto, se não é assim?

– Hm... – pensou por um momento, olhando ao redor antes de voltar a deixar seus olhos pregados nos meus. – Você precisa entrar na água. – ela disse, séria pela primeira vez.

Já imaginava que devia ter algo a ver com isso, mas mordi o lábio e olhei para minhas roupas. Estava com uma bermuda, tênis e uma blusa normal própria de primavera, não devia ter nenhum problema pular na água se tirasse o tênis e as meias. E claro, tinha o fato de que eu estava muito curiosa com tudo sobre Alira, não ia deixar a oportunidade passar. Ajeitei-me sentada para fazer isso, deixando meus sapatos ao lado da minha mochila, que até o momento estivera nos meus ombros. Joguei as pernas para fora da passarela do píer e senti a água gelada contra minha pele, o que me fez fazer uma careta que logo desapareceu.

– Ok, tem certeza? – perguntei, só pra estar certa de que precisava mesmo fazer isso. A sereia apenas assentiu com a cabeça levemente. – Beleza.

Respirei fundo e me joguei na água bem devagar, resmungando a cada centímetro de água gelada que me cobria, até parar em meus ombros e eu finalmente soltar a madeira da passarela. Dignei-me a olhar para Alira, que pareceu engolir em seco antes de se aproximar de mim, e antes mesmo que estivesse a poucos centímetros senti algo se enrolar em minhas pernas. Tive vontade de gritar de susto, mas o olhar da sereia me fez engolir minha voz e não me mexer, nem quando comecei a sentir meu corpo ser puxado pra baixo, só tendo tempo de pegar ar antes de submergir totalmente.

Percebi, tarde demais, que era sua cauda que tinha se enrolado em mim, e agora ela tinha as duas mãos segurando meu rosto outra vez. Pensei em perguntar que diabos ela estava fazendo, mas falar debaixo d’água não era uma das minhas habilidades, por isso apenas assisti enquanto ela fechava os olhos e tocava suavemente seus lábios nos meus. Devo ter ficado parada por apenas alguns segundos antes de retribuir o beijo mais singelo de toda minha vida, esquecendo naquele momento que estava debaixo d’água e sendo puxada cada vez mais para o fundo. Pensar em prender o ar antes de submergir fora inútil, eu percebi assim que ela se separou de mim, levando as mãos até meus cabelos curtos antes de me morder sem dó nem piedade no pescoço, quase parecia querer arrancar um pedaço da minha pele. O ar saiu todo numa tentativa de grito debaixo d’água, e meus braços finalmente começaram a se mexer, empurrando os ombros de Alira para longe, para que ela me soltara.

Não adiantou muita coisa, quanto mais eu me esforçava para que ela me soltasse, mais o ar me faltava e mais a força de suas mãos em meus ombros parecia aumentar. Fechei os olhos e tentei gritar outra vez quando senti a pele do meu pescoço se rasgando e a água se tornar vermelha ao meu redor. Nunca tinha sentido tamanha dor em toda minha vida, e desmaiei depois disso, sendo levada para o fundo do oceano sem saber porque tinha confiado em uma sereia.


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