Até o fim escrita por Karu


Capítulo 1
Até o fim


Notas iniciais do capítulo

Olá, meus filhotinhos de tigre!
Eu voltei, e trouxe mais uma Oneshot para vocês!
Espero que gostem.



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As pessoas dizem que toda a sua vida passa diante dos seus olhos no momento da morte... elas estão erradas.

E eu posso dizer isso com toda a certeza do mundo.

A única coisa que me vem à mente agora são aqueles olhos negros e profundos, dignos de uma rainha, que eram donos de todo o meu ser.

XX/XX/2015

A vantagem de morar no meio do nada é que você conhece todo mundo da sua cidadezinha. A desvantagem é a falta de novidades.

Se bem que eu adoraria ter ficado sem assunto no dia em que eu descobri que tinha câncer no cérebro. Minha família e todos na cidade foram até a minha casa prestar suas condolências, como se eu já estivesse morta. Ah, se eles soubessem que tudo o que eu queria naquele momento era sair dali e observar o arco íris que estava se formando do outro lado da janela...

Eu ainda tinha chance de ser curada dois meses depois do diagnóstico, mas o dinheiro que ganhávamos não era suficiente para pagar o tratamento, e eu era orgulhosa demais para deixar que minha mãe pedisse a diferença emprestada a qualquer um. Todos os vizinhos ofereciam ajuda, mas eu sempre recusei.

Bem, acho que eu me conformei com a morte. Perder seu pai e seu irmão mais velho, um depois do outro, para o câncer, faz isso com você. Todos se vão um dia, e chegou a minha vez. Eu ficaria de cabeça erguida até o fim. Minha mãe também parecia ter se conformado, pois aceitara que eu vivesse o que me fizesse feliz enquanto podia. Ela era uma mulher forte, e me aceitava como eu era.

Como eu disse, fiz as pazes com a morte. Mas então algo mudou. Uma menina um ano mais velha que eu se mudou para a cidade e acabou sendo minha vizinha.

Seu nome era Lana. Ela tinha cabelos vermelhos como fogo e olhos negros como a noite, ressaltados pelas sardas na pele pálida. A baixa estatura e seu ar sempre alegre e juvenil me davam a impressão de estar olhando para uma pintura, a representação da perfeição. Não podia ser real.

Foi isso que eu pensei na primeira vez que a vi. Nos tornamos íntimas em questão de dias, mesmo eu dizendo que não havia futuro para mim. Sem que eu percebesse, entre conversas descontraídas sob a sombra de uma cerejeira e abraços de despedida, foi crescendo dentro de mim um calor estranho, aconchegante e opressor ao mesmo tempo.

Eu levava meus livros comigo para a cerejeira onde nos encontrávamos todos os dias e lia para Lana, ela deitada com a cabeça em meu colo. O dia sempre terminava praticamente da mesma forma: o som de sua suave respiração preenchendo meus ouvidos junto ao canto dos bem-te-vis, acalmando meu coração insano pela sua presença, seu pequeno corpo despertando um desejo incontrolável de tomá-la em meus braços e protegê-la de todos os males... inclusive de mim mesma.

A cada dia que passava, mais eu pertencia a ela, e mais tentava me afastar, por saber que era uma bomba relógio. Mas simplesmente não consegui. Aqueles lábios cheios cor de cereja me faziam voltar todos os dias, como um rosa atrai uma borboleta. Mas rosas vivem por semanas, e uma borboleta só pode existir na terra por um dia.

Um dia, a chuva nos atrapalhou em nossa leitura e nós duas corremos para a casa na árvore que o irmão mais novo de Lana construíra. Lá, sozinhas na cabana de madeira, observávamos o céu cinza escurecer mais ainda a nossa volta, a chuva implacável do início de primavera não nos deixaria sair dali tão cedo. Enquanto observava seus cabelos de fogo se unirem a sua pele por causa da água, peguei o telefone e disquei o número da minha casa para avisar a minha mãe que iria demorar.

Lana fez o mesmo, mas não disse que estava no quintal.

Senti meu coração palpitar e todo o meu corpo esquentar quando a pequena se virara para mim, a silhueta delineada pela luz amarela e aconchegante da lâmpada do lado de fora do cômodo. Ela tremeu, porém se aproximou da porta sem temer o vento gélido.

Então eu perdi o controle de mim mesma. Levantei rapidamente de onde estava e a abracei, tentando transmitir-lhe o máximo de calor que possuía. Novamente minha alma se aqueceu quando aqueles brilhantes olhos negros se moveram para fixar-se nos meus.

A ruiva se aproximara lentamente do meu rosto, sua face se ruborizando conforme ela fechava os olhos. Respirei fundo, sentindo seu aroma de mel e pêssego, sem saber ao certo se estava pronta para o próximo passo. Rindo do nada, ela me deu um empurrão, fazendo-me cair no terraço, na chuva.

- Ei... - Disse, fingindo estar irritada enquanto me levanto. - Não foi legal.

- D-desculpa... - Sua voz aveludada se tornou triste quando ela se aproximara novamente de mim.

Antes que Lana pudesse descobrir meu plano, a peguei pelo braço e encontrei seus lábios com os meus. Senti o gosto de pêssego de sua boca aumentar quando ela finalmente retribuiu o gesto. Sem mais me importar com a chuva, a colocava contra a parede conforme deixava o calor do movimento dominar nossos corpos.

Mordi de leve seu pescoço, me afogando no cheiro de seus cabelos e no som de sua garganta quando ela ronronou. Finalmente me sentia completa, a água da chuva lavando nossos rostos ruborizados pelo afeto mútuo, um sorriso inexplicável se formando em meus lábios.

Bem lá no fundo, uma ponta de esperança se acendeu em meu ser. Talvez, só talvez, ainda não seja o fim da linha para mim. Aqueles olhos profundos como o mar me trouxeram de volta das águas abissais e me fizeram reencontrar as cores do mundo. Ali, com os pingos de amor lavando minha alma, senti que havia uma chance de tê-la para sempre em meus braços.

Comovida pela brilho renovado que se formara em minha alma, beijei-a novamente. Desta vez não havia pressa. Percorria cada centímetro de seu pescoço com os lábios, sentindo-a estremecer e suspirar ao meu toque. Por fim, deixei-me vencer e encontrei novamente seu sabor inebriante de pêssego e seu cheiro de mel. Lana suspirou, amolecendo, e eu acabei sustentando todo o peso do seu corpo enquanto a carregava para longe da chuva, para dentro da casa, onde podia aquecê-la com as batidas do meu próprio coração, que agora batia apenas por ela, apenas porque ela existe.

Mas o destino não poderia me deixar sair impune desse jeito.

Um peso estranho se formava em meu peito sem que eu percebesse. O medo de não ser suficiente.

O medo de acabar.

E não demorou muito para esse medo se realizar.

O fatídico dia chegara. Eu estava lendo com Lana, como sempre, quando recebi uma ligação da minha mãe. Ela estava preocupada comigo porque eu estava atrasada. Acontece que Lana resolveu ler para mim, e sua voz aveludada me deixara em transe. Antes que eu pudesse impedir, havia abraçado a garota e a mantido perto de mim, esquecendo do tempo. Já estava de noite.

Me afastei da baixinha, constrangida pela minha atitude, e me levantei. Uma tontura forte me dominou e eu caí no chão, sem forças para me mover.

- Tessa!!! - Lana gritava meu nome, desesperada.

Lágrimas manchavam seu belo rosto enquanto ela tentava, em vão, me levantar. Eu era muito pesada para ela. Para completar o dia, uma chuva torrencial começou a cair, deixando-nos na lama. Longos e angustiantes segundos se passavam e eu não conseguia me mover. Lana chorava compulsivamente, ajoelhada ao meu lado.

Queria dizer que estava tudo bem, que nada iria acontecer comigo, mas meu corpo não me obedecia. Tudo o que eu podia fazer era olhar para seus olhos de pérola negra e vê-los se encherem de remorso.

Eu estava morrendo, mas tudo o que queria fazer era abraçá-la e mantê-la protegida da chuva. De alguma forma que eu ainda não compreendo, consegui mover meu braço direito e secar sua bochecha. Lana parou de chorar por um segundo, em choque, e apertou forte minha mão. Em um gesto fraco, apertei seus dedos de volta, pressionando minha mão gélida contra seu rosto quente e ruborizado, que deixou o medo de lado e tomou o aspecto natural de candura que eu tanto amava. Com o resto das forças que ainda tinha, levei sua mão até o aparelho celular caído no chão.

Então uma convulsão se apoderou de mim e tudo ficou negro.

Acordei em um quarto escuro, não sabia o que tinha acontecido comigo. um barulho insistente, como o zunido de um mosquito, perturbava meus ouvidos ao lado de um insistente beep beep de algo à minha direita. Levei alguns segundos para perceber que os ruídos se tratavam de uma máquina ao meu lado. Eu estava no hospital, na cidade grande, sozinha em um quarto. Queria ver por mim mesma minha situação, então tentei sentar para procurar um interruptor. Uma dor lancinante na nuca me fez parar o movimento na hora e soltar um grito estridente. Horas depois - ou seriam segundos? Eu já não sabia de nada -, minha mãe entrou esbaforida na escuridão do meu sofrimento, uma equipe médica atrás dela. Meu oncologista aplicou algo em minha veia, e a dor passou quase instantaneamente.

- Por favor, - Dizia ele enquanto aplicava a injeção. - Tessa, você esteve em coma por três meses, além de ter acabado de sair de uma cirurgia. Não deve se mover.

- O que você... - Era extremamente difícil falar. Minha garganta estava muito seca e sensível devido ao tempo sem uso, e eu não conseguia sequer formular as palavras sem embolar a língua.

- Shhhh, querida. - Mamãe pegou minha mão entre as suas e beijou minha testa. - Depois eu explico tudo para você. Agora descanse um pouco, tudo bem?

Mais uma vez, nada do que eu queria falar saiu da minha boca. Fui engolfada por um sono forçado, vazio... frio. Faltava algo naquele quarto de hospital, faltava um par de olhos de obsidiana clareando o mundo ao meu redor.

Pela segunda vez eu acordara sozinha no hospital. Dessa vez não me movi. Esperei pacientemente até a chegada dos médicos, que me encheram de perguntas e diagnósticos, e minha mãe chorou rios de lágrimas em meus cobertores. Eles tentaram remover o tumor do meu cérebro, mas eu quase morri na cirurgia, então tudo o que puderam fazer foi fechar novamente minha cabeça.

O câncer havia se espalhado pelo meu corpo.

Eu era uma paciente terminal.

Só tinha mais um mês de vida.

E, incrivelmente, tudo em que eu conseguia pensar era no vaso de flores de cerejeira ao lado da cama, com um cartãozinho rosa escrito "estou te esperando. Volte para casa". Tudo o que eu queria era ver aqueles olhos profundamente negros mais uma vez, abraçar aquele anjo em pele humana e protegê-la da dor de ter me conhecido. Queria devorar os lábios cor de paixão e me inebriar no cheiro de seus cabelos.

Os dias se passavam como uma corrida de tartarugas, tediosos, lentos e solitários, sem o calor da presença de Lana ao meu lado. Eu mesma fiz isso. Disse a minha mãe que não a deixasse me ver. Seria menos doloroso para ela assim.

Afinal, a dona do meu pobre coração nem sequer sabia o que possui.

E assim, nesse ritmo lento e insuportável, 30 dias se passaram. As flores pararam de vir com tempo, ela seguira seu curso. Era hora de eu seguir o meu.

Fechei os olhos, consolada pelo calor que minhas memórias com ela me proporcionavam. Lana foi meu barco, minha razão para lutar. Ela fora meu único e eterno amor. Mas não merecia ver o que me tornei, ela merecia viver feliz em seu mundo de flores e bem-te-vis.

Porque assim é o amor. Ele te faz ser egoísta e generoso ao mesmo tempo, te faz desistir de si mesmo para outro alguém, que se torna a sua razão de viver.

Aos poucos, sinto minha consciência se esvair conforme o barulho da máquina ao meu lado se torna mais lento. Vejo os momentos preciosos de nós duas passarem na minha mente e sorrio.

Estou pronta para ir.

Me liberto do último resquício de pesar e me entrego aos braços da morte.

Ah, se eu soubesse...

Se eu tivesse esperado mais alguns segundos...

Se eu tivesse percebido que ela não me deixaria ir...

Então a veria entrando no quarto no exato momento em que o medidor dava seu último e longo beep, veria as lágrimas surgirem em seus olhos de obsidiana enquanto ela segurava um soluço.

Teria sentido, pela última vez, o toque aconchegante de sua pele na minha enquanto ela se abaixava e depositava um beijo suave em meus lábios.

Teria visto quando ela caiu de joelhos ao lado da cama e começou a chorar incontrolavelmente.

- Eu te amo... - Teria a ouvido sussurrar em meio aos soluços. - Eu te amo... eu te amo tanto...

Eu teria acordado e a confortado, e teria lhe dito que a amei mais do que tudo e todos.

Teria dito que a amei desde o dia em que a vi pela primeira vez.

Desde o início, até o fim.


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Notas finais do capítulo

E aí? O que acharam?
Eu juro que quase chorei quando tive essa ideia no meio de uma noite de insônia.
Espero que tenham gostado!
Não esqueçam de comentar!



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