Pensão da tia Odete. escrita por Costa


Capítulo 17
Capítulo 17




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A noite pra foi péssima. Dormia e acordava. A criatura ainda veio ver como eu estava e me entupiu de remédio porque disse que eu estava com febre. Já devia ser umas 10 da manhã quando a Flávia apareceu.

–Como meu doentinho favorito está?

–Péssimo, Flávia. Quem te contou que eu estava ruim?

–A Lívia. Ela está preparando um arrozinho com batatas pra você.

Essa me pegou de surpresa. A Lívia me ajudando? Espero que não esteja envenenado.

–A Lívia?

–É. Ela não é assim tão ruim como você pensa.

–Eu não acho que ela seja ruim, mas isso me surpreendeu. Se fosse a dona Odete eu não diria nada, mas vindo da Lívia é uma surpresa.

–É que a tia Odete não está. Ela e seu Rodolfo foram visitar os filhos e só voltam amanhã.

Então está explicado porque aquela velhinha ainda não apareceu aqui pra me entupir de sopa.

–O Djair falou que você não tem lagartixas. Ele te deu a Martinica, não é?

–Deu.

–A Martinica era minha. Ele me roubou ela. Lá no meu quarto tem umas 5. Depois eu peço pra ele pegar uma e trazer pra cá para fazer companhia pra sua.

–Agradeço, eu acho.

A criatura entrou com um prato enorme e um pano de prato. Me mandou sentar direito, enfiou o pano na minha camisa como se fosse um babador e entupiu uma colherada na minha boca. Ela era pior que a dona Odete.

–Calma. –Pedi.

–Calma nada. Vai comer tudinho. Ontem você teve febre e não quis comer nada. Se não comer, vai voltar pro hospital.

E outra colherada. Era só o que me faltava, a criatura me tratando como criança. Estava me sentindo ridículo, mas piorou quando ouvi duas risadas conhecidas: Djair e Jonas parados na minha porta.

–Não sabia que tinha filho barbado, Lívia. –O Jonas, piadista, falou.

–E não tenho. Esse aqui é pior do que criar um filho. Nem meu irmão era chato assim.

–Me dá isso aqui que ele vai comer tudo.

O Jonas pegou o prato da mão dela, encheu bem a colher e enfiou na minha goela. Não teve nem a delicadeza de esfriar.

–Me dá isso aqui, Jonas. Você não serve pra enfermeiro.

Peguei o prato da mão dele antes que ele me matasse.

–Não falei que ele vai comer tudo? É só uma questão de saber como trata-lo.

–Com o seu tratamento, eu morro.

–E o bar, Batman? Como vai ficar? –A criatura me perguntou.

–Não sei, Lívia. Acho que eu vou ter que deixar ele fechado esses dias. Eu não vou aguentar mesmo trabalhar.

–Se quiser, eu posso ir lá e trabalhar. –A Flávia se ofereceu.

–Mas e o seu trabalho, Flávia? Você não costura pra fora?

–Essa semana tá fraquinho pra mim, Rogério. O pouco serviço que tenho eu faço em menos de uma hora.

–Eu também posso ajudar. Faço de tudo, só não me jogue pra contar dinheiro, matemática nunca foi meu forte. –O Djair também se ofereceu.

Juro que eu estou surpreso agora. Por que esse pessoal me ajudaria? Sei que nunca fui um bom vizinho e é por isso que me assusto.

–Vocês me ajudariam?

–Sempre que você precisar, Batman. –O Djair falou.

–Obrigado mesmo, gente. Vocês me salvaram. Se ficasse parado uma semana poderia falir.

–Batman, já te disse uma vez, mas repito: aqui somos uma família. Um ajuda ao outro. Você já faz parte da família, mesmo que não queira. –O Djair zombou de mim.

Ficamos lá conversando sobre as tais lagartixas. A Flávia fez o Djair pegar uma lagartixa do quarto dela e levar pro meu. Essa se chamava Nero. A criatura esperou eu acabar de comer o arroz, pegou meu prato e saiu. A Flávia e o Djair foram resolver as coisas deles pra poderem trabalhar no meu bar mais tarde. Só o Jonas ficou lá.

–Te falei que essa gente não é má, Rogério. Eles gostam de você, mesmo com esse seu humor do cão.

–Mas eu nunca os ajudei em nada, Jonas. Será que eles estão esperando algo em troca?

–Não acho que são interesseiros. Eles são gente simples que se ajudam.

–Sei lá. Isso me desconcerta. Até a criatura tá me ajudando. Ontem ela veio aqui umas duas vezes só pra ver se eu estava bem. Isso não é normal pra ela.

–É normal sim. É que você nunca parou pra conhecê-la realmente. A Lívia é uma pessoa exemplar. Tem uma história única. É bondosa.

–Isso tudo me confunde.

–Te confunde porque você nunca teve atitudes altruístas com pessoas que considerasse insignificantes. Te confunde porque vai contra seu estilo de vida.

–Virou psicólogo agora?

–Não, mas te conheço desde criança e sei como pensa. Nem todas as pessoas são como o seu pai foi. Pense nisso.

Ele foi embora e me deixou sozinho. Infeliz! Por que tinha que ter me lembrado do meu pai? Sabe que eu não gosto de pensar nele. Agora isso vai ficar me remoendo até eu me distrair.

Ainda fiquei um bom tempo lá sozinho. O pessoal, antes de ir pro bar, ainda passou pra ver se eu estava bem e se despedir de mim e a Lívia ainda me entupiu mais de comida. Estava quase dormindo quando senti algo na minha cama. Levantei e vi que era o Ricky Martin. Apesar de tudo, adorava aquele cachorrinho.

–Oi amigo. O que faz aqui? Cadê os seus donos, bonitinho?

O Jorge entrou no meu quarto e me olhava com cara feia. Acho que ele devia considerar o cachorro um traidor.

–Não era pra você estar no trabalho? –Ele me perguntou.

–Era, mas peguei dengue.

–E está aí sozinho?

–Estou.

–Não é a hemorrágica, é?

–Não, é a normal.

–Graças a Deus! Eu já tive a hemorrágica e quase morri. Você está bem?

O Jorge perguntando se eu estou bem? Esse cara bebeu?

–Estou sim, um pouco entediado e dolorido, mas bem.

–Você segura o Ricky um pouquinho?

Ele bebeu, tenho certeza. Ele nunca gostou do cachorro perto de mim.

–Seguro.

Ele saiu. Só espero que não aproveite que a pensão esteja vazia e me mate e enterre no jardim. O Jorge tem uma cara de psicopata.

–Você não, né, Ricky? Você é bonzinho.

Fiquei um tempinho brincando com o cachorro e o Jorge voltou com uma caixa enorme nas mãos.

–Aqui. Isso me ajudou muito quando fiquei ruim.

Ele tirou um DVD portátil da caixa a colocou na minha cama.

–Aqui na caixa tem alguns filmes. Tem de tudo, desde ação até romance. Deve ter algum que goste. O Camilo comprou pra mim quando eu peguei dengue. Ficava muito entediado lá no hospital.

Ele está me emprestando um DVD? Definitivamente este não é o Jorge.

–Obrigado.

–Deixa eu ir lá. O Camilo ficou no carro me esperando. Melhoras. Vem Ricky!

O Jorge pegou o cachorro dele e sumiu. Devo estar delirando de febre e imaginando essas coisas. O Jorge sendo legal comigo? Definitivamente, esse povo é bipolar.

Não sei quanto tempo fiquei ali. A verdade é que o Jorge tinha bom gosto para filmes. Assisti a dois e ainda tinha vários bons que o sono não me deixou ver. Estava naquela de dormir e acordar quando fui acordado pelas vozes do Djair e da Flávia. Pareciam estar brigando, mas a Flávia ria a plenos pulmões e o Djair falava grosso. Juro que não estava entendendo. Tentei levantar para ver, mas ainda estava fraco e não consegui. Fui obrigado a me sentar na cama para passar a tontura que me deu. A criatura apareceu na porta.

–Eles estão bem? –Perguntei.

–Estão. É que a ex do Djair apareceu lá no seu bar com um cara bem mais novo que ele e a Flávia, agora, está pegando no pé dele por isso.

–Quer dizer que o Djair foi trocado por um modelo mais novo?

–Foi.

Não me aguentei e cai na gargalhada. Conhecendo o pouco que conhecia do Djair eu podia imaginar como ele devia estar furioso. E ainda tinha a Flávia para ajudar. Quando parei e olhei para a criatura ela me olhava com uma cara de maluca.

–O que foi? Por que me olha assim? Parece louca.

–Desde que você chegou aqui, é a primeira vez que te vejo sorrir. Tem um lindo sorriso. Devia deixar de ser ranzinza e rir mais.

Isso foi uma cantada? Cacete, devo estar mal mesmo. A criatura me cantou ou estou imaginando? Dessa vez a besta peluda me mata.

–Só não tenho motivos para sorrir. –Disfarcei, desfazendo o riso que teimava em ficar.

–Também não interage com ninguém. É meio anti-social.

–E como foi no bar com o pessoal? –Tentei mudar de assunto.

–Eles foram bem. A Flávia implicou pra caramba com o Djair, mas trabalham bem em equipe.

–Fico feliz.

–Vou deitar que estou cansada. Boa noite, Rogério, se precisar de algo, chame.

Não me chamou de Batman e nem de amargado? Ela não está bem. O que puseram na água desse povo? Primeiro o Jorge e agora ela me tratando bem?

–Boa noite e obrigado.

Ela saiu e eu voltei a tentar dormir. Definitivamente essa é a noite mais louca da minha vida.

Continua.


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