Pensão da tia Odete. escrita por Costa


Capítulo 10
Capítulo 10




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Fomos trabalhar naquele domingo maldito. Jonas me deu uma carona e também carregou a criatura. A viagem foi calada, mas o meu amigo, como é um pouco retardado, dava uns acessos de loucura e começava a rir sozinho. Eu bem sabia o motivo, era de mim que ele ria, mas deixei a criatura na curiosidade.

Chegamos no bar e trabalhamos normalmente, tirando o fato de que agora o Jonas me chamava de Rogé. A noite passou tranquila. Voltei para pensão e estava um chiqueiro, mais que o normal. Tinha garrafas espalhadas por tudo o que é canto, bêbados amontoados no sofá e no chão e restos de churrasco, mas nada que me espantasse muito. Comecei a aprender que isso é normal para esse lugar. Dei de ombros e fui dormir. Com sorte todos estariam de ressaca e eu conseguiria tirar uma boa noite de sono, sem músicas pela manhã.

Passaram-se alguns dias e tudo seguiu normal nessa loucura. A besta e eu trocávamos farpas, eu resmungava com a criatura, o Jonas me zoava, a Flávia me cantava, o Camilo vinha puxar papo e o Jorge me olhava torto. Tudo normal. O que me deixava mais feliz era saber que teria uns dias sossegados. Descobri que a besta iria embora naquela dia. Cheguei feliz, cantarolando lá pelas 4 da matina, depois de um dia estressante no bar, e fui dormir.

Acordei com um forte estrondo. Ainda estava escuro. Levantei cambaleando e vi um vulto na minha sacada. Não consegui nem gritar. Duas mãos agarraram meu pescoço e me prensaram na parede. Só então consegui ver quem era. Carlos, a besta peluda.

–Caladinho, não grita. Não quero acordar ninguém.

–Me larga! –Falei alto.

–Não grita. –Ele apertou mais meu pescoço.

–Tá, mas me larga.

A besta me soltou. Eu estava até sem fôlego.

–Mas que merda faz aqui no meu quarto? Por onde entrou?

–Pela sua sacada. Você deixou a porta aberta.

–O que quer aqui?

–Só vim te avisar pra deixar a Lívia em paz. Vou ficar fora uns 10, 15 dias. Quando eu voltar, se eu descobrir que você se aproximou dela, que esbarrou um dedo nela, eu te parto em dois.

–Fique tranquilo, não tenho mau gosto.

Ele me agarrou novamente no pescoço. Tenho que segurar essa minha língua grande.

–Fale novamente que a minha namorada é pra quem tem mau gosto que eu te parto em dois agora mesmo.

–Ela é linda, mas não vou olhar pra ela. Satisfeito?

Parece que funcionou, ao menos ele soltou meu pescoço.

–Está avisado, almofadinha. Nos vemos quando eu voltar.

Me deu um tapa por trás da cabeça e saiu rindo. O descaramento era tanto que nem saiu pela sacada, pegou minha chave pendurada, abriu a porta e ainda me tacou a chave em cima.

Peguei a chave no chão, tranquei a porta e fui trancar a sacada. Não esqueci aberta. Ele arrombou a fechadura. Maldito! Agora vou ter que dormir com essa porcaria aberta e os mosquitos vão fazer a festa no meu corpo. Coloquei uma cadeira lá só pra tentar fechar um pouco a porta e fui tentar dormir. Acho pouco provável que consiga. Essa besta peluda acabou com o meu sono.

Depois de rolar bastante na cama, consegui dormir. Acordei era quase uma da tarde. Levantei e fui olhar o estrago na minha porta. A fechadura ficou totalmente destruída. Vou ter que comprar uma nova, querendo ou não, mas como não entendo nada disso e não quero mexer para não piorar, vou ter que pedir ajuda para o Djair.

Sai de lá e o encontrei, como sempre, sentado no meio fio olhando a vida dos outros. Me aproximei e o cumprimentei.

–Boa tarde, Djair.

–Fala, Rogério. Tá tranquilão agora, hein!

–Estou?

–Está. O Carlos acabou de sair de viagem.

Saltitei por dentro de felicidade, mas claro que não demonstrei isso.

–Podia ficar fora pra sempre, mas não tenho essa sorte. Djair, minha tranca da sacada quebrou, será que você pode me dar uma ajuda?

–Posso. Vamos lá dar uma olhada.

Fomos para o quarto após o Djair pegar umas ferramentas. Até ele se espantou com o estrago.

–O que você arrumou aqui? Parece que forçaram a porta. O trinco tá totalmente danificado. Vai ter que trocar.

–Pra falar a verdade, ela foi forçada mesmo.

–Assaltantes?

–Não. Uma besta. O Carlos veio aqui me ameaçar.

Até o Djair começou a rir. Virei piada mesmo.

–Pelo menos ele não te bateu. Dessa vez sua cara ficou limpa.

–Não, pelo menos isso.

–E você vai falar para a Lívia?

–Pra quê? Não quero mais confusão.

–Sabe que tem quase um ano tinha um morador novo. Era meio rabugento como você, mas ele cismou de colocar os olhos na Lívia. O Carlos atazanou tanto ele que ele não ficou 1 mês. Até que você é persistente.

–Ele apanhou?

–E como. Acabou com duas costelas e o nariz quebrado. A Lívia nunca soube da surra que o Carlos deu nele.

–E porque vocês não contaram? Ela precisa saber que está se metendo com uma besta.

–Ninguém quer apanhar. Você já sentiu a força que o Carlos tem. Eu quero manter esse meu rostinho lindo.

Covardes.

–Entendi. E como ficamos com essa fechadura?

–Vai ter que comprar outra mesmo. Hoje eu vou ter que ir pro Centro. Se quiser eu posso comprar pra você.

–Agradeceria. Quanto tá uma fechadura?

–Uma simples como essa uns 40, 60 contos.

Peguei uma garoupa na carteira e entreguei para ele. Isso deve dar. Fiquei enrolando no meu quarto enquanto o Djair não voltava. Até que uma buzina irritante que não parava me tirou a paciência. Não aguentei e fui até a sacada ver quem era o infeliz que estava com a mão pesada. Olhei e juro que não acreditei no que eu via. Tive que descer para comprovar.

Cheguei lá e meus olhos não me enganaram. Era a Lívia numa picape velha, caindo aos pedaços. Era pra ser vermelha, mas tinha tanto remendo e arranhão que já estava até colorida. Que carro feio!

Ainda olhava espantado pro carro quando a criatura saiu de lá de dentro orgulhosa.

–Tá com inveja? –Ela me perguntou.

–Dessa lata velha? Faça-me o favor.

–Pode ser uma lata velha, mas agora terei condução todo dia. Não precisarei pegar o mesmo ônibus que você.

Tá bom, essa doeu. Ela tem carro e eu não. Mas quem já teve um corolla nunca se prestaria a pilotar essa picape.

–Prefiro andar de ônibus do que andar nisso aí. Pelo menos não terei que me preocupar em encontrar um reboque na madrugada e nem empurrar carro velho.

–Tá com inveja. Não se preocupe, não sou tão ruim assim. Posso te dar uma carona se não tiver ônibus.

–Prefiro vir a pé, mesmo correndo o risco de ser assaltado, morto, do que andar nisso aí.

–Isso é despeito. Quando ficarmos sem ônibus novamente, vamos ver se você não vai andar no Pitanga.

–Andar no quê?

–No Pitanga, o nome que dei ao meu carrinho. Vai dizer que não sabe o que é pitanga.

É estranho dar nome pra um carro, mas parece mesmo uma pitanga. É aquele vermelho que não é vermelho e fora que pitanga é ruim pra caramba. Nome perfeito!

–Sei o que é pitanga. Quer saber, não foi ficar aqui discutindo meus conhecimentos com você.

Sai de lá bufando por aquela discussão sem sentido e a criatura ficou rindo. Posso não ter carro, mas, ao menos, não passarei vergonha de ter que andar numa lata velha. É menos vergonhoso andar de ônibus do que naquela Pitanga.

Continua.


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