Morrer e o Frio escrita por March Hare


Capítulo 1
A Luta Eterna Contra a Morte e o Frio.


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem, boa leitura.



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Aquele país já havia ficado muito conhecido pelo seu clima. Quem nunca ouviu falar do inverno russo, que bateu até mesmo o grande Napoleão Bonaparte em sua tentativa de conquistar o lugar? Mas não estavam no inverno naquele momento. Ou talvez estivessem, não sabiam. As pessoas tinham mais o que se preocupar do que com as estações do ano.

Estaria frio de qualquer forma. Não tinha como não estar, o vento que congelava as almas e corações de todos não parecia disposto a parar tão cedo. Era difícil de ser percebido, um leve sopro, o último suspiro. Era o vento que unia as últimas lufadas de ar que deixavam os pulmões de tantos em meio ao povo russo. Era o vento que a passagem da morte, sempre rápida e certeira, deixava para congelar aqueles que ousavam resistir a ela.

Contra o que lutavam naquele momento? Dimitri já não sabia mais. No começo, ele lutava contra os alemães. Lembrava-se quando ainda era 1914 e ele, no auge dos seus doze anos, ia pela primeira vez para uma guerra sem tem nenhuma noção do que realmente o esperava. O uniforme ficava tão grande em seu corpo magro...

Já tinha quinze quando aquela guerra acabou para eles, também lembrava disso. Era outra pessoa. Os olhos azuis não tinham o brilho infantil, o corpo ainda magro já estava coberto de cicatrizes, os cabelos castanhos já perderam há muito a beleza de antes. O inimigo também havia mudado. Agora Dimitri e seus companheiros lutavam contra a opressão, contra o Czar. Era Fevereiro.

Conheceu Alexei no mesmo ano. Agora já era Outubro. Pouco depois estavam juntos no Exército Vermelho. Alexei naquele momento era como Dimitri havia sido anos antes quando colocou seu uniforme pela primeira vez. Talvez fosse a juventude? A inexperiência? Era como se os quatro anos que separavam os dois na idade fossem uma vida inteira. Completavam-se naquele ponto. Talvez por isso que se tornaram melhores amigos. Não tinha como esquecer daquele começo também.

Foi o Branco contra o Vermelho, o Vermelho contra o Branco. Era eles e os outros, Bolsheviks e Mensheviks. Eles eram o sangue, os outros a neve. Juntos eram a descrição da Rússia da época. Dimitri se perdeu. Era uma série de eventos que mexiam com sua mente, que o enlouqueciam lentamente... Só Alexei entendia. O menino era o único que sabia que aquela escolha constante que o outro tinha que fazer destruía sua mente. Todos os dias era ou morrer ou continuar no frio, ou morrer ou continuar com fome, ou morrer ou continuar assistindo a morte. Foi perto disso que ele começou a esquecer.

***

Era 1922. Alexei tinha dezesseis, Dimitri tinha vinte. Jovens, incrivelmente jovens. A guerra já não tinha mais sentido, não para o transtornado Dimitri que já mal sabia contra quem eles lutavam. O Exército Branco havia sido derrotado, não havia? O que restava agora? Onde estava a paz que a grande Rússia merecia? Onde estava a comida que todos precisavam? Dimitri não sabia. Não sabia de nada.

Alexei sabia. Ele tinha plena noção de tudo que estava acontecendo em seu país e no mundo, era um jovem de espirito forte, engajado. A loucura que acometia seu melhor amigo não passava perto de si, pois, ao contrário de Dimitri, o mais novo não tinha uma paz para se lembrar. O que faria se saísse do exército? Voltaria para as ruas? A escolha entre a morte e o frio não era apenas na guerra em si.

Mas Dimitri acreditava que tinham para onde ir. Dimitri era ingênuo, mesmo que achasse que essa qualidade (ou defeito?) só se aplicasse ao seu melhor amigo. Foi a ingenuidade que o fez se deitar na cama de Alexei naquela noite como havia feito durante muitas outras.

Não eram amantes. Não tinham tempo para isso. As noites passadas lado a lado não eram noites de amor. O que as formava eram segredos e conversas e um pouco de calor devido aos corpos juntos. As alturas semelhantes o permitiam ficar exatamente da forma que estavam naquela noite do começo de outubro: as testas coladas, os lábios a uma mínima distância, a proximidade suficiente para um sussurro sem som poder ser ouvido. Foi daquela forma, a única que eles podiam falar sem chamar atenção desnecessária, que o mais velho revelou seu plano.

– Eu vou fugir.

Alexei sabia que era estupidez. Sabia que levaria a morte. Sabia que mesmo que o outro conseguisse se esconder como desertor, cedo ou tarde o encontrariam e, se não encontrassem, o frio e a fome fariam o trabalho para os soldados do Exército Vermelho. Mas também, acima de tudo, Alexei sabia que ele próprio também morreria de qualquer forma e que não queria fazer isso sem a única pessoa importante de sua vida.

– Quando vamos?

Precisaram de cerca de vinte dias. Durante esse tempo, juntaram o máximo de provisões possíveis. Tinham um plano. Sumiriam durante a investida a Vladivostok. No meio de um evento como aquele, não teria ninguém prestando atenção em todos os soldados. Como estavam perto da China, andariam até o país vizinho e buscariam ajuda por lá. Era um bom plano, não era?

O final de outubro foi uma época importante. O Exército Vermelho conseguiu reconquistar Vladivostok na Rússia, Mussolini marchava sobre Roma na Itália... Alexei e Dimitri corriam para sua liberdade.

Correram e andaram direto por quase dois dias. Só pararam quando já não mais aguentavam se mover. Mesmo que a exaustão se fizesse presente desde as primeiras horas, eles só se permitiram descansar quando já não tinha mais chance (ou não parecia mais ter) deles estarem sendo seguidos. Estavam em segurança finalmente, mesmo expostos a vários tipos de perigos. Em meio ao frio do outono eles estavam quentes.

O primeiro acampamento foi em meio a uma mata densa, onde eles podiam ficar escondidos e protegidos pela a vegetação. Tinham conseguido levar apenas um saco de dormir, roubado no último instante, mas aquilo não importava. Quantas noites já tinham passado na mesma cama nos últimos quase cinco anos?

– Está feliz?

Os olhos azuis de Dimitri brilhavam e respondiam por si só aquela pergunta. Sua mão foi parar nos cachos loiros acinzentados, brincando ali. Fazia isso quando estava de bom humor, em um modo de lembrar das primeiras noites deles lutando. Costumava a fazer cafuné em Alexei para afastar os fantasmas dos mortos quando ele, ainda uma criança de não mais que onze anos, temia demais para dormir sozinho.

– Estou livre.

O brilho também chegou aos olhos do outro com a resposta. Alexei permitiu-se mergulhar naquela ilusão que a mente de seu amigo criava. Não estavam livres. Dimitri estava enlouquecendo, Alexei estava morrendo lentamente por causa de uma tosse que piorava a cada dia... continuavam presos naquele mundo. Continuavam presos naquele mundo onde todos os dias tinham que escolher entre a morte ou o frio.

Qual o motivo de ainda estarem ali? Dimitri era quem se perguntava todos os dias isso. Ele sabia a resposta. Sempre escolhia o frio exatamente por temer o frio. Não fazia sentido? Mas é claro que fazia. Mais gelado que o inverno russo só podia ser a morte. Pelo menos ali ainda tinha o corpo de Alexei para o manter aquecido.

Eles não eram amantes. Não tinham tempo para isso. Mas se amavam. Nunca haviam manifestado esse amor nem mesmo nos mais baixos sussurros da alta madrugada. Sem beijos, sem abraços, sem palavras doces. Sabiam dos sentimentos um do outro, mas não tinham nenhuma intenção de manifesta-los pelo medo do frio. Alexei também o tinha e a sua intenção não era morrer fuzilado.

Mas ali... não tinham soldados, não tinham armas (tirando a faca que Alexei carregava em sua bota) não tinha tanto perigo assim. Qual seria o problema se... Não faria mal abraçar Dimitri. Não faria mal espremer seu corpo junto ao dele, permitir que os corações batessem no mesmo ritmo, que o calor dos corpos se tornasse o calor dos dois. Foi a primeira noite em que dormiram juntos daquela forma. Foi a melhor noite dos últimos tempos para os dois.

Não demorariam a notar que a liberdade não significava não ter um inimigo para enfrentar. Eles tinham. Vários. Dimitri poderia escolher qual seria a resposta da vez para a constante pergunta que ele insistia em fazer para si mesmo.

“Contra o que lutamos agora? ”

Contra a fome. Contra a exaustão. Contra o medo. Contra o certo e o incerto. Contra eterna escolha entre morrer ou o frio. A guerra não havia acabado, nem para o Exército Vermelho, nem para os dois desertores.

***

– Somos nós dois contra o mundo agora, não somos?

A pergunta foi feita uma semana depois do dia da fuga, quando eles já estavam perdidos. O plano perfeito não incluía um mapa, então mal sabiam que estavam seguindo exatamente para o oposto do que queriam. Embrenhavam-se pela Rússia ao invés de seguir para a China. Mas nunca teriam noção disso. Continuariam acreditando que um dia deixariam seu país natal.

– Claro que somos. Não está bom assim? Eu não preciso de mais ninguém.

Dimitri respondeu com um largo sorriso no rosto, surpreso com a pergunta. Não esperava aquele tipo de fala vindo de Alexei, geralmente ele não demonstrava pensar nisso. A pergunta fazia muito mais seu estilo do que do mais jovem.

– Até quando?

Claro. Aquele tipo de preocupação era muito mais plausível. Alexei temia que eles se separassem ou que fossem pegos ou que perdessem aquela guerra particular. Dimitri não demorou a sorrir e levar sua mão para buscar a do outro. Estavam caminhando e ali, pela primeira vez, andaram de mãos dadas.

– Para sempre, Alexei. Mesmo depois que tudo isso acabar, seremos eu e você para sempre.

Manter os dedos entrelaçados tornou-se um costume depois daquele dia, assim como dormir abraçados havia se tornado na semana anterior.

***

O primeiro inimigo real chegou com o fim das provisões, quando eles já tinham mais de um mês de viagem. A fome que castigava a maior parte do país também bateu nos dois. Não tinham mais como continuar se escondendo longe de tudo e todos ou morreriam de fome. Foi por isso que seguiam para uma cidade. O lugar parecia lutar para sobreviver, as poucas pessoas que andavam pelas ruas pareciam fantasmas, espectros de épocas mais prósperas. A primeira cena que viram mexeu com os dois por motivos diferentes, mas até os fez esquecer da fome por alguns instantes.

Eram crianças. Pequenas, magras, sujas, feriadas... crianças. Abandonadas a própria sorte. Tão perdidas quanto Alexei estava antes de se juntar ao Exército Vermelho. Será que eram órfãs? Haviam perdido os pais em meio ao conflito assim como o pai de Alexei havia deixado o mundo em meio a Grande Guerra, quando o loiro era jovem demais para se lembrar dele? Ou haviam sido deixadas em uma tentativa dos pais de continuar vivendo com menos uma boca para alimentar?

Será que uma daquelas crianças tinha fugido de casa? Talvez um daqueles garotinhos tivesse ficado muito abalado quando o irmão foi servir e tivesse tentado segui-lo. Talvez um daqueles garotinhos tivesse se perdido e não sabia como voltar para casa. Talvez um deles morreria congelado enquanto chorava pelo irmão mais velho, como havia acontecido com Ivan. Talvez o irmão de uma daquelas crianças pensava nelas todos os dias e chorava em silêncio por sentir sua falta, como Dimitri.

As risadas deixaram os dois paralisados. O som parecia tão surreal, assim como o fato daquelas miniaturas de gente estarem se divertindo com uma espécie de jogo de cartas. Parece que os dois já tinham esquecido que aquilo era possível. Eles haviam realmente esquecido que havia mais opções. Entre morrer ou o frio, aqueles meninos haviam escolhido a diversão. Haviam escolhido a vida. Os dois jovens, que não estavam tão longe da idade daquelas crianças assim, se permitiram fazer o mesmo.

– Podemos jogar também?

Era bom ter dez anos. Ter doze também. E sete, cinco, nove... Era bom ter a idade daquelas crianças. Era bom não se importar com nada a ponto de permitir que dois desconhecidos que fediam como a morte se juntarem ao jogo só pelo fato dele ficar mais divertido com muita gente. Na meia hora que ficaram juntos com os meninos, lembraram como era magnifico ser criança.

Mas o jogo não matava a fome. Não os salvaria da morte certa. O jogo, por mais que esquentasse a alma, não os protegia do frio. Foi isso que todos notaram quando começou a chover. Ficar molhado do lado de fora não era uma opção ou poderiam congelar ali mesmo. O começo de dezembro não estava para brincadeiras.

Todos correram em busca de um abrigo. As mãos de Dimitri e Alexei se uniram enquanto eles tentavam achar qualquer lugar para ir. O estranho era que... correr na chuva gelada era algo incrivelmente libertador. Talvez fosse a convivência com as crianças, não sabiam. Foi Dimitri que começou a rir e logo os dois estavam gargalhando enquanto corriam e pareciam bailar pelas ruas daquela cidade.

Já estavam encharcados mesmo. Não importa o quão rápido seguissem, não mudaria o fato de não terem para onde ir e a tempestade não perdoaria. Passar mais uns instantes ali não faria muito problema e, se fizesse, valeira a pena. Certamente valeria.

Não era possível dizer de quem foi a iniciativa. Talvez tivesse sido um dos raros momentos em que duas pessoas pensam a mesma coisa e a fazem ao mesmo tempo. Só o contato com as mãos não era mais suficiente. Os braços de Alexei envolveram o pescoço de Dimitri enquanto os de Dimitri passaram ao redor da cintura de Alexei. Juntos, completamente juntos.

Foi o primeiro beijo dos dois. Não só deles como um casal, mas no geral. Aqueles dois nunca haviam sentido atração por mulheres e também... não era como se a homossexualidade fosse bem vista no meio deles. Por causa desta falta de experiência aquele beijo foi desajeitado, confuso, difícil e... maravilhoso. Não tinha como ser melhor, como ser mais perfeito com todas as imperfeições.

Mas não podiam ficar se beijando na chuva eternamente. Mesmo que estivessem quentes pela situação, beijos não acabavam com o frio nem matavam a fome. Infelizmente não tinham essa capacidade. Foi por isso que não muito depois de quebrarem o contato dos lábios eles voltaram a correr para buscar um abrigo e comida.

Invadiram e saquearam uma casa naquele dia. Não era algo que os dois se orgulhavam de ter feito, mas... Precisavam sobreviver. Precisavam sobreviver e aqueles kulaks tinham comida o suficiente para dividir com eles. Continuaram fazendo aquilo sempre que precisavam de mais suprimentos.

***

Já estava no fim de dezembro e eles não podiam aguentar mais. Alexei não podia aguentar mais. Seu corpo já não resistia a doença que o castigava há meses. Nos últimos dois dias ele mal conseguia fazer nada, só se mantinha deitado ali em meio àquela neve toda, ao lado de seu amado Dimitri. Estava morrendo, sabia disso.

– Eu amo você

A confissão foi feita num sussurro fraco, mas não tímido. A voz falhada de Alexei demostrava toda a certeza do mundo. Não era nenhuma novidade aquelas palavras, mas era a primeira vez que elas eram proferidas em voz alta. Tinha que falar. Tinha que falar enquanto ainda tinha voz.

– Eu também amo você, Alexei. Amo muito.

Dimitri estava destruído. A impotência o matava assim como a pneumonia matava Alexei. Não havia nada que ele pudesse fazer para salvar a vida do seu menino e isso era a pior situação que ele poderia imaginar.

– Então me ame, Dimitri. Ame-me com seu corpo, sua mente e sua alma. Faça-me sentir como se o mundo fosse só nos dois.

Era loucura aceitar aquele pedido. Mas Dimitri era louco. Louco, acima de tudo, por aquele menino tão único. Por essa razão que ele não hesitou antes de tomar os lábios de Alexis após suas palavras, colando seus corpos e unindo seus espíritos.

Também era loucura se despir em meio ao inverno russo. Mas ambos eram loucos. Loucos a ponto de mergulhar naquelas sensações como se não houvesse amanhã. Não havia mesmo.

Seus corpos quentes derretiam a neve. As peles, quase tão claras quanto ela e manchadas de vermelho em cicatrizes exatamente como o território russo, estavam encharcadas pela água que ficava, pelo suor que os deixava e pela saliva dos beijos que acariciavam todas as marcas que nela haviam. Tudo era lento, carinhoso e forte como os dois meninos eram. Havia a exata mistura entre virilidade e doçura enquanto se uniam pela primeira e última vez.

Alexei soube ali que estava errado. Durante todo tempo que temeu o frio, ele estava errado. Não havia frio na morte. Havia apenas o calor do orgasmo, dos braços de Dimitri. Partiu pouco depois do ato ter terminado, enquanto tinha seus fios loiros acariciados. Morreu feliz. Ali encontrou o calor do paraíso.

Dimitri também descobriu que estava errado. Sempre esteve. Ele nunca teve escolha. Nunca foi morrer ou o frio onde ele escolhia a segunda opção. Sempre foi morrer e o frio, onde ele tentava correr do fim. Soube disso quando os olhos de Alexis não mais se abriram. Quando ele ficou sozinho. Quando encontrou o frio do inferno.

Estava nevando. As lagrimas que caiam de seu rosto congelavam antes mesmo de bater no corpo de seu amado. Ele estava nu. Alexei ficava cada vez mais gelado, mas não o soltou. Continuou acariciando os cachos loiros que tanto amava e beijando o rosto pálido e sereno do outro até que seu último suspiro se unisse ao vento que unia as últimas lufadas de ar que deixavam os pulmões de tantos em meio ao povo russo. O vento que a passagem da morte, sempre rápida e certeira, deixava para congelar aqueles que ousavam resistir a ela.

O final de dezembro foi uma época importante. O mundo passava a conhecer a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Talvez Dimitri Nikolaivich tenha sido o primeiro a morrer no novo país.


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Notas finais do capítulo

Muito obrigado por ler, eu adoraria saber o que achou. Esse texto foi super complicado por causa do limite de palavras, ralei para deixa-lo com menos de três mil. Já que chegou até aqui, que tal descer um pouco mais e escrever um comentário?