The Golden Rose - A Rosa Dourada escrita por Dandy Brandão


Capítulo 37
Especial 02 - Espírito de Guerreiro


Notas iniciais do capítulo

Eu gosto muito do Mark e, de uns tempos para cá, senti vontade de contar um pouco da sua história. Decidi deixar que Zeenon contasse essa história, pois foi ele que o resgatou e cuidou do garoto, como um filho.
Então, está aí. Bom leitura!



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Espírito de Guerreiro, por Zeenon, o guardião sombrio.

Os dias simplesmente passavam e eu não sabia mais o sentido de quase nada. Meu filho, tão lindo, crescido, agora já com um dragão em sua aura. Alegrava-me de certa forma, mas nunca conseguiu sanar minhas feridas.  Meu Submundo, tão nefasto e querido, estava longe de mim; e eu não conseguia coragem alguma para voltar inteiramente para lá. Passavam-se duas semanas desde a última vez que Inshtarheim viu minha presença e eu sentia saudades. Muitas saudades. Por mais que tentasse, minha estadia não durava nem mais de um mês e Loki, meu amigo de tantas décadas, cuidava daquilo tudo para mim. Claro, tínhamos muitos líderes, mas ele era o meu braço direito e em tudo poderia contar.

Gastava meu tempo, então, no mundo humano onde se encontrava meu castelo isolado, Darkvallum. Engraçado que eu dividia os mesmo ares daqueles que me levaram à ruína, entretanto, não me incomodava mais com isso. Eles ficavam longe de mim e eu evitava o máximo chegar perto deles. Poderia muito bem voltar ao Yamisin e, mesmo recluso, ficar um tempo perto ao lado dos meus preciosos, mas me faltava coragem. Apesar de tudo, havia algo nos reinos e ares humanos que ainda me segurava de certa forma. Eu sabia muito bem o que era. Mas, negava aceitar. Era ele, sim, que me puxava ali. Aquele homem bondoso, o qual eu feri e não tinha ideia de como voltar a vê-lo novamente. A vergonha e remorsos absurdos ainda me dominavam, e eu disfarçava de raiva. E meu irmão sofria... Longe, em seu reino, rodeado de suas criaturas tão castas.

Naquele dia... Eu passeava pelas florestas nas imediações do meu castelo. Tínhamos vales enormes, rodeados de grandes árvores, animais de grande e pequeno porte e, o melhor, pouco da presença humana. Apreciava muito passear por ali, meu filho não fazia muito caso em ir comigo, preferia curtir Inshtarheim; e, então, eu podia aproveitar um pouco da natureza. Completamente sozinho. Eu tinha aprendido a ficar sozinho, depois de muitos anos de sofrimento. A companhia do meu filho e dos feiticeiros era maravilhosa, porém, sem mais ninguém, eu refletia melhor e trabalhava meus sentimentos.

Resolvi ir um pouco além dos vales que rodeavam meu castelo. Sabia que poderia encontrar alguma vila ou povoado, mas queria explorar algo novo. Ver o que estava por trás daqueles vales esverdeados. Poderia não ser uma boa ideia, bem provável que algum humano cruzasse em meu caminho, mas decidi ir.

Eu poderia encontrar de tudo por ali. Não sabia exatamente qual a situação do reino de Ezra, então era possível que eu encontrasse soldados, camponeses, feiticeiros humanos. Enfim, todo e qualquer tipo de pessoa. Meu humor quase nunca estava favorável a esse tipo de situação, entretanto, meus instintos me impeliram àquela caminhada. E assim eu fui. E jurava que não sucederia daquela forma.

 Logo quando adentrei nas imediações do reino, percebi que o ambiente não estava bom. Um cheiro terrível de madeira queimada pairava no ar e, quando alonguei minha caminhada dentre a floresta, vi rastros de sangue e pegadas humanas nas trilhas de terra. Quando vi aqueles indícios de uma possível confusão, considerei ir embora, não me envolver. Mas, a curiosidade e, ainda, o meu alerta me empurravam em frente. Andei mais de meia hora pela floresta, em uma velocidade curta, mas o suficiente para que eu encontrasse uma pequena vila.

Completamente destruída pelo fogo.

As casinhas de madeira caíam em cinzas. As pequenas plantações, que deveriam ser o meio de subsistência do local, foram todas consumidas pelo fogo e parecia não haver nenhum rastro humano vivo por ali. Corpos jaziam ao chão, cobertos de queimaduras e tinha certeza que algumas cinzas de humanos estavam misturadas entre as de madeira. Era um horror.  A primeira hipótese que levantei era que poderiam ser ladrões. Diversas vezes vilas e povoados eram atacados por bandos de criminosos que levavam tudo dos moradores. Entretanto, não era comum incendiarem as casas, nem dizimar uma população daquela forma.

Rodeei a vila, avaliando o estrago. Não eram muitas as casas, mas ver aquela cena era estranho. Pus-me em forma humana, pois a minha segunda hipótese era que poderia ser obra de feiticeiros humanos. Talvez uma vingança. Nunca se sabe o que eles podem fazer quando alguém descobre seus segredos.  

Quando cheguei ao limite da vila, em suas últimas casas, ouvi algumas vozes, já bem perto. Não eram cochichos ou uma conversa normal. Escutei tons de ordem e gritos indignados de alguém. Então, escondido em escombros, avistei o grupo em frente a uma casa em chamas. Dois corpos jaziam ao chão, perto dos homens de fardas vermelhas que pertenciam ao exército de Ezra. Eram, ao todo, seis homens. Detrás, vi um rapaz segurando um pedaço madeira coberto de pregos. O garoto tinha cabelos curtos e castanhos e seu corpo magro, sujo, apresentava algumas queimaduras e cobria-se de roupas rasgadas. Tremia dos pés a cabeça, mas seus pés continuavam fincados ao chão e as pernas sustentavam todo o corpo machucado. De repente, esse mesmo rapaz doente direcionou sua “arma” para um dos soldados, que desviou do golpe. Assim, um dos porcos de Ezra vingou o colega, socando o estômago do garoto, que caiu ao chão. Entretanto, para a minha surpresa, ele se levantou e, como em um surto, direcionou o bastão para todos os lados, enquanto gritava algo sobre seus ‘pais’. Com sorte, conseguiu atingir dois soldados. Olhei aquele garoto ofegar, sangrar e vi em seus olhos negros algum tipo de força inigualável. Mesmo ferido, lutava por sua vida e, pelo que percebi, pela dignidade dos seus entes mortos. Não entendi muito bem o porquê os soldados não atiraram nele e o abateram ali mesmo; o garoto continuava a resistir.

Então, talvez por falta de paciência, os homens jogaram-no ao chão, com apenas um chute, e o agrediram sem dó, de pontapés a socos violentos. Eu olhei aquela cena por alguns segundos, e em um momento raro senti-me aflito ao ouvir os gemidos de dor do rapaz. Eu deveria ter ido embora, dado dois passos para trás, afinal não tinha nada a ver comigo, mas assim que eles deram brecha...  Sumi em sombras e, quando percebi, estava de frente ao grupo de homens – tenho certeza que meus olhos ferviam de tamanho ódio. Ditei o Red Poison sem hesitar e tive cuidado para que não atingisse o garoto no chão. As sombras atacaram os soldados e estes caíram por terra – Mortos.

Girei o corpo e o rapaz me observou incrédulo. Os olhos negros dele não inspiravam medo e eu pensei... Agora que estava a salvo, não precisava me preocupar mais com ele. Continuei a observá-lo, de soslaio, ele tentou se levantar, mas sem sucesso. Suas pernas agora exibiam ferimentos e ele gemia de tamanha dor. Estendi minha mão para ele.

— Vamos... Vou tirá-lo daqui. – sussurrei.

Sem relutância, ele tentou agarrar minha mão, mas estava fraco demais para isso. O seu braço caiu sobre a terra dura, seca. Entretanto, ele se arrastou ao chão e me olhou novamente. Vi as lágrimas expiarem de seu rosto ensaguentado e sujo de cinzas, em um claro pedido de ajuda.

— Se você continuar aqui morrerá. – disse e, então, peguei em seus ombros e o coloquei de bruços. – Vamos embora.

Com um dos braços segurei suas pernas e o outro apoiei o seu tronco. Fraco, o rapaz jogou os dois braços sobre o meu pescoço e chorava como uma criança. Bem perto do meu rosto, eu vi seus lábios balbuciarem algo e eu não consegui entender muito bem o que era. Comecei a andar de volta ao meu castelo – o caminho seria longo até lá.

Enquanto caminhava, ele não me soltou nem um instante e eu, sem saber muito bem se surtiria algum efeito, passava o máximo de calor da minha aura para o corpo dele. Percebi que fechava os olhos, cochilando e as pulsações de seu coração estavam fracas, mas ainda resistiam. No meio do caminho, já nos vales próximos ao meu castelo, ele despertou do sono. Ainda estava debilitado, mas apresentava pulsações um pouco mais rápidas. Nesse momento, ele conseguiu falar algo,

— Sinto... – forçou a voz um pouco e conseguiu continuar – um calor vindo de você. 

Parei, repentinamente. Ele não deveria sentir a minha aura, era humano.

— Sente? Mesmo? – indaguei.

Confirmou, balançando a cabeça. A única explicação era de que tinha sensibilidade para magia. O que era bom, pois poderia se juntar aos seres elementares depois.

— Obrigado. – sussurrou.

— Não há de quê.

Continuei o caminho, e assim que cheguei ao Darkvallum, as gêmeas não pouparam os olhares assustados. Observaram o corpo machucado, coberto de sujeira misturada a manchas de sangue do garoto e eu vi em seus olhos que se perguntavam quem era aquele e o que fazia ali. Antes de respondê-las, subi as escadas do castelo e pedi que me seguissem.

Entrei em um dos quartos de hóspedes e repousei o corpo do rapaz na cama espaçosa. Seus olhos continuavam fechados, e o tórax movia-se lentamente como se quisesse dizer que ainda existiam sinais de vida. Virei para as meninas e os olhos caramelados delas me fitavam curiosos.

— O reino de Ezra invadiu uma vila e esse rapaz é um dos poucos sobreviventes. Ele tem sensibilidade à magia. – elas se entreolharam ao ouvir minha última frase. – Preciso que curem as feridas dele, por favor.

As gêmeas hesitaram por alguns instantes, como se decidissem o que fazer.  Olharam umas para as outras, ponderavam entre elas a decisão. Se não aceitassem, eu poderia chamar qualquer outro feiticeiro que soubesse cuidar daquele caso, uma boa recompensa bastava. Entretanto, sem muita surpresa para mim, elas balançaram a cabeça, juntas, em um gesto quase combinado.  Tratar de um humano ferido não seria muito agradável a elas, entretanto, o fato do rapaz ter sensibilidade à magia deve ter ajudado na decisão. Era raro encontrar um humano assim.  As gêmeas sabiam poções e ervas do Submundo as quais eram utilizadas para curar envenenamentos e que, com certeza, seriam efetivas no tratamento do rapaz. Em pouco tempo ele estaria curado. E, então, eu poderia conhecê-lo melhor e decidir o que fazer com ele.

Link chegou do seu passeio em Inshtarheim e sua reação foi igual das meninas. Arregalou os olhos e observou o garoto com certo desdém. Expliquei para ele toda a situação e, ainda assim, apresentava certa desconfiança. Abandonou-me a observar os preparativos das gêmeas para o inicio do tratamento e fugiu para o seu quarto, provavelmente, tiraria um cochilo.  À noite, enquanto eu vestia meus habituais robes transparentes, Link apareceu no meu quarto e eu já sabia o motivo.  De mansinho, ele encostou-se a mim e abraçou-me de lado.

— O que vai fazer com ele, pai? – disse, manhoso.

— Não sei, meu filho... Mas tenho algumas ideias. – retribui seu abraço e beijei seus cabelos negros.

Andamos, abraçados, até a minha cama. Acomodei-me bem no centro e Link novamente me abraçou, agora, pousando a cabeça em meu peito. Tive sorte de ter um filho tão carinhoso.

— Quais ideias?

Comecei a afagar os cabelos de Link, enquanto ponderava sobre o assunto.

— Como disse a você, esse rapaz tem sensibilidades à magia. E não é pouca coisa, ele sentiu o calor da minha aura quando eu o trazia para cá. Isso é raro, muito raro. Será fácil para ele aprender algo de alto nível. Claro, se quiser se juntar a nós.

— Ele será muito ingrato se não aceitar. – disse, ainda em meus braços. – Você salvou a vida dele, pai.

— Eu sei, filho... Mas talvez ele queira partir depois... Os corpos dos pais dele ficaram lá.

— Pai – sentou-se na cama, em posição de lótus. – Esse garoto perdeu tudo. Para onde ele vai? É lógico que ficará aqui! Vai aceitar, sim.

Dei de ombros e depois abri meus braços, pois eu sabia que Link dormiria na minha cama naquele dia. O seu ciúme denunciava isso.

 E, assim como eu esperava, em pouco mais de uma semana o rapaz já apresentava melhoras. Em dois dias as feridas já desapareciam e, já no final da semana, comia e bebia sozinho. Esperei a semana passar, paciente. Não conversei com ele, nem ao menos sabia o seu nome ainda. Visitava-o às noites, enquanto dormia.  Recebi a visita de Loki duas vezes e ele também se mostrou impressionado. Falei minhas intenções e meu amigo entendeu a proposta.

Nove dias depois de sua chegada, quando já estava completamente recuperado, fui conversar com ele. Entrei no quarto e o vi deitado sobre cama, olhando o dossel e seus tecidos vermelhos. Ficou a semana inteira dentro do quarto, via apenas a luz do dia pela varanda. Já podia sair e, também, ponderar sobre minhas considerações. Quando me viu entrar, ele logo se sentou sobre a cama e eu pude observar melhor o rosto. As maçãs estavam coradas, o cabelo castanho parecia até mais vívido, e um sorriso se desenhava na boca. Sorri de volta, de lado, para não o assustar de tamanha seriedade que meu rosto sempre apresentava.

Sentei-me à beira da cama.

— Bom dia, rapaz.

— Bom dia – disse, ainda sorridente.

— Eu ainda não sei o seu nome, nem sua idade. – inclinei-me um pouco mais e ele riu ao perceber aquela situação.

— É Mark Jims, e tenho dezenove anos, senhor Zeenon.  – estendeu a mão, exibindo um sorriso carinhoso, assim como o brilho dos seus olhos.

Apertei a mão do garoto, discreto, retribuindo a gentileza daquele olhar.

— Acho que não preciso me apresentar, já sabe quem eu sou, não é? – murmurou.

— Sim, eu sei – Mark inclinou-se, e balançou a cabeça como se quisesse dar mais firmeza às suas palavras – E eu preciso agradecê-lo! Se não fosse pelo senhor...

— Por favor, não me chame de Senhor. Sinto-me velho. – ri ainda um pouco desajeitado pela presença dele, entretanto Mark também sorriu, o que me deixou um pouco mais confortável.

Sentei-me um pouco mais perto, para que pudéssemos conversar melhor.

— Não sabe o quanto lhe devo. – baixou os olhos, não sei por medo da minha aproximação, ou por respeito.

Vi Mark juntar as mãos sobre as duas pernas juntas sobre a cama e algumas lágrimas caíram em seu rosto. Fungou, tentando conter o choro, mas logo suas mãos cobriram a face, visivelmente emocionado.

— Ei, não precisa chorar. – pousei um das mãos em seu braço, sem saber como confortá-lo – Você está bem, vivo.

Balançou a cabeça para os lados, ainda aos prantos. Assim, compreendi que seu gesto de antes era puro respeito. Segurei seus braços e coloquei-os para baixo, queria vê-lo melhor. Mark mordia o lábio inferior, o rosto molhado enrubescia-se com o choro.

— Eu devo minha vida a você!

— Tenho uma proposta. – olhei firme em seus olhos e Mark devolveu o mesmo olhar. – Acho que é algo bom e ficarei satisfeito se aceitar.

Mark assentiu obediente, e um brilho iluminou seus olhos negros, estavam cheios de esperança..

— Enquanto trazia você para cá, disse-me que sentia um calor vindo de mim.

— Sim, era algo muito forte. – agarrou seus próprios braços, como se abraçasse a si mesmo.

— Você sentiu a minha aura e isso não é comum para um humano.

— Aura? – indagou, confuso.

— A aura é a fonte de poder de todo ser elementar. Por causa dela somos imortais e realizamos feitiços poderosos sem a necessidade de recorrer a qualquer substância que contenha energia. Como a ‘maho’ dos feiticeiros humanos. Ela é algo nosso. Próprio.

Mark olhou para os lençóis escarlates sobre a cama, talvez tentando absorver minha rasa explicação sobre a aura. Se ele aceitasse minha proposta, teria de aprender muito mais sobre aquilo.

— Então... Aquele veneno que matou os homens é um feitiço que você só consegue realizar por ter uma aura em seu corpo?

— Sim. – assenti.  – Conheço vários feitiços e, como guardião, tenho uma aura mais elevada que a dos outros.

— Incrível – sorriu para mim, sua expressão parecia me dizer que ele estava interessado – Então... Qual a proposta?

— Já que tem sensibilidade à magia, será muito propício para você se tornar um ser elementar. Terá mais facilidade em aprender feitiços de alto nível, além de que sua concessão de aura se dará bem mais rápido.

Ligeiramente, Mark se inclinou para mim. Assustei-me com sua aproximação repentina e remexi o corpo na beira da cama, um pouco desconfortável.

— Então, quer que eu me torne um ser das trevas? – disse, em um tom levemente mais alto.

— Sim. Eu mesmo posso te treinar. Claro, se você aceitar.

A cabeça coberta de fios castanhos chocolate abaixou-se e os lençóis inundaram-se de lágrimas. Mark chorava novamente. De repente, levantou e me respondeu, aos prantos,

— É claro que eu aceito!

O menino choroso agarrou meu pescoço e enterrou sua cabeça nos meus cabelos negros. Por alguns instantes, fiquei estático, sem saber muito bem o que fazer. Deveria apartá-lo? Não, eu não queria o assustar, ele não tinha medo algum de mim... Eu não deveria agir de uma maneira agressiva.

Então, decidi devolver o seu abraço, de uma forma um pouco mecânica, mas devolvi.  Primeiro um braço, depois o outro, não era tão difícil assim. Ele continuava a apertar o meu pescoço e, agora, descansava a cabeça em meu ombro – o choro foi-se aos poucos.

— Obrigado, obrigado. Eu não tinha mais ninguém.

— Fique tranquilo. – respondi, sereno.

— Quando vi você estender a mão para mim, eu tive certeza de que não era um monstro. Tão gentil... Acolhedor. – mesmo que estivesse abafada pelos meus cabelos, a voz de Mark soou bem nos meus ouvidos e, de certa forma, me confortou.

— Eu vi você lutar contra aqueles homens e fiquei admirado. – disse, um pouco mais baixo que o normal.

Mark se afastou de mim e uma de suas mãos limpava o rosto das lágrimas.

— Estava ferido, ensanguentado e, mesmo assim, não desistiu. Não quero treiná-lo apenas porque vi seu potencial mágico.  Você tem força e coragem, Mark.  Verdadeiro Espírito de guerreiro.  No Submundo, prezamos pessoas assim.

Neste momento, Mark não chorou, nem sorriu. A determinação estava estampada em seu olhar e ali, eu tive certeza de que à minha frente estava alguém poderoso. Seria um feiticeiro maravilhoso e, com o passar do tempo, minhas previsões mostraram-se corretas.

Iniciei Mark nos estudos sobre magia, aura e feitiços um dia depois de nossa conversa. Ele se mostrou interessado, animado e não foi apenas no começo. Durante todo tempo dos nossos árduos treinamentos, ele dava o melhor de si e sempre tínhamos bons resultados. Nos primeiros treinos para tentar captar energia, Mark demonstrou seu potencial e, em alguns meses, já conseguia manipular alguns feitiços simples, como mover objetos a certa distância. Passávamos um bom tempo juntos e, mesmo que eu não estivesse ao seu lado, observava seus treinamentos solitários, nos jardins do Darkvallum. Assim, criei afeição por Mark. Era sorridente, engraçado e tínhamos um bom papo, trazia um pouco mais de alegria aos meus dias sombrios e me mantinha ocupado. Em um ano, estávamos bastante próximos, contei até mesmo sobre minha antiga história com Heimdall. E, claro, isso não foi bem quisto pelo Link.

Em nenhum momento deixei de prestar atenção em meu querido filho. Passava as noites conversando com ele, bebíamos vinho juntos, treinávamos e, às vezes, íamos ao Submundo. Entretanto, era freqüente ele torcer o nariz para Mark e nem ao menos dar um bom dia ao nosso agregado. Logo percebi o ciúme de filho – eu conhecia o jeito do Link. Então, tratei de me desculpar ao meu pupilo. Mark, sempre compreensivo, não se importou tanto com o jeito de Link. Entretanto, quanto mais o tempo passava, mais Link fazia questão de demonstrar sua antipatia por Mark. Cheguei a aplicar castigos a ele, trancando-o no quarto, sem acesso a lugar algum nem mesmo ao Submundo. 

Depois de dois anos em treinamento, Mark finalmente passou por seu ritual de concessão de aura e, depois, teve seu dragão selado no corpo. Assim seus antigos cabelos castanhos, desbotaram para uma cor muito clara, beirando o branco. Não tivemos muito trabalho em sondar o dragão celeste que, na verdade, era uma fêmea. Foi escolhida e após algum tempo de afeição a Mark, tivemos o suficiente para que concedesse a sua essência.  No fim, éramos três dragões dentro do Darkvallum. Meu novo feiticeiro também podia visitar o Submundo, porém preferia ir a minha companhia. Íamos os três juntos, mas quando passeávamos pela província, Mark ou Link saía em minha companhia. Nunca os dois juntos.

Certo dia, eu convidei Mark para passarmos a noite em Inshtarheim. Na semana anterior, Link tinha ido comigo, passamos o dia inteiro fora e Mark ficou sozinho, no Darkvallum. Então, antes de sairmos, Link começou a reclamar. Gritou que eu não mais saía com ele, passava mais tempo com o Mark, não gostava dele, não o amava, entre tantos outros dramas. Completamente exagerados, claro. Birrento, chegou a chamar Mark de intruso. Então, sem mais paciência, peguei-o pelo braço. Levei até o quarto, sem me importar com suas relutâncias. Mark ficou na sala, sentado no sofá, assustado, a me observar sumir dentro do castelo segurando Link pelo braço.

Pela primeira vez, eu dei uma tapa no rosto de Link. Jamais tinha levantado mão para o meu filho, mas ele mereceu, de verdade. Os olhos vermelhos dele, assim como os meus, me encararam, incrédulos. Sentado na cama, Link escondeu o rosto e começou a chorar. Eu me agachei aos pés dele e o observei se debulhar em lágrimas.

— Você o aceitou aqui também. Lembra-se? – disse, firme – Falou que ele aceitaria ficar conosco e não se manifestou contra. Por que age dessa maneira, filho?

Segurei os seus braços e Link tirou as mãos do rosto. Estava vermelho, completamente molhado de lágrimas.

— Você sabe que eu te amo, meu menino. – aproximei-me e beijei a bochecha. – Isso me deixa triste.

— Não gosto de vê-los tão próximos assim. – murmurou.

— Mark é um grande amigo. Não precisa sentir ciúme dele, filho... – agarrei-o pela cintura e encostei Link em meu corpo, devagar. Ele aceitou meu abraço, sem lutar contra meus braços. Logo, estávamos sentados na beira da cama, abraçados. Eu não disse mais uma palavra. Deixei que Link refletisse o que falei.

Após alguns instantes abraçados, finalmente, ele conseguiu parar de chorar e soltou algumas palavras.

— Eu vou parar. – fungou, agarrado ao meu casaco verde-musgo – Prometo.

— Vai mesmo? Não quero ouvir isso da boca para fora. – respondi, sério.

Ele me encarou e eu vi em seus olhos que falava a verdade. Assentiu, balançando a cabeça. Link nunca quebrava promessas, assim como eu. Saí do seu quarto, satisfeito. Quando voltei à sala, Mark ainda estava sobre o sofá. Voltou sua atenção para mim e sua expressão exigia um retorno.

— Conversei com ele. Prometeu que não vai mais te perturbar. – pousei a mão sobre o rosto de Mark, e ele a apertou, como se tentasse passar toda sua afeição por mim naquele singelo toque.

De certa forma, Mark aceitava os desaforos de Link também por minha causa. Ele gostava de mim e nunca escondia isso, tínhamos uma relação de lealdade e companheirismo que nunca imaginei florescer.  Joguei-me no sofá, completamente relaxado. Perdi a vontade de ir ao Submundo, meu companheiro encostou-se a mim e ficamos ali durante algum tempo, jogando conversa fora, enquanto olhávamos a lua cheia imponente no céu de Ezra. Durante a conversa, Mark me disse uma coisa que interessou em vários sentidos. Eu tomava vinho e ele tinha sua cabeça encostada em meu ombro. Como se divagasse em seus pensamentos, soltou:

— Eu gosto muito do seu filho, Zeenon. – disse, sem encarar meus olhos – Ele é rabugento, mas se mostra bastante doce com você.

Achei estranha a declaração repentina dele. Observei seu semblante e os olhos apresentavam um brilho gentil, mas diferente de qualquer situação que já vi.

— Link é carinhoso, mas quando ataca em ciúmes, ninguém aguenta. – ri, mas o que eu dizia era verdade.

— Ele já tinha demonstrado isso antes? – levantou a cabeça e se acomodou no sofá, para me observar melhor.

— Sim... Ele odiava um antigo namorado meu. Não dava uma palavra com ele.

— Aquele de cabelos verdes que conheci no Submundo, o Hope?

— Sim, ele mesmo. – tomei um gole de vinho, e depositei a taça sobre a mesa de centro. Pensei um pouco na suavidade de Hope e seus olhos e cabelos ondulados verdes.

— Mas, como, se ele é tão doce! – cruzou os braços e franziu o cenho, compartilhava a mesma opinião que eu.

— Não para o Link. Às vezes ele tentava atrapalhar minhas noites com Hope, além de que o enfrentava quando ele vinha aqui. Como é manso, Hope sempre sorria e dizia que era normal e bobagem de filho. Entretanto, Link tinha uns dezessete anos na época, era grandinho, sabe o que faz.

Mark baixou a cabeça, acredito que estava pensando em Link, levantou-a novamente e me observou como se fosse falar algo. Entretanto, fugiu do meu olhar e voltou a observar o couro preto do sofá. Percebi que havia uma inquietação estranha nele, mas eu não sou bom o suficiente para ler a sua expressão. Não tenho os mesmo dons de Heimdall.

— Vou me deitar, Zeenon. – beijou minha bochecha, afetuosamente – Boa noite.

Fiquei inquieto, justamente por conta da quietude do castelo. Não tinha nem um pingo de sono e estava curioso para saber as novas ações de Link e o porquê Mark estava daquele jeito. Passei mais alguns minutos sentado no sofá e, então, decidi ver o Link, para não receber novas acusações. Subi ao seu quarto e tentei abrir a porta, para a minha surpresa, estava trancada. Mais estranho ainda, foi sentir a aura de Mark tão perto e o aposento dele ficava a certa distância dali... Só podia estar no quarto do meu filho. O que era mais estranho ainda.  Estabilizei minha aura e – sei o quanto foi indelicado – expandi minhas sombras e consegui vê-los um defronte ao outro, conversando. Pela expressão de Link, parecia pedir desculpas, e o outro o observava, sorrindo. 

Tirei minhas sombras antes que eles percebessem e parti para o meu quarto, esperaria o Link vir me contar o que houve. Mas, novamente, para minha surpresa, ele não apareceu. Não fui ao seu quarto, pois me senti culpado da intromissão. No meio da noite, olhei o aposento de Mark – quieto, vazio. Sim, eu desconfiei do que encontraria depois. Queria tanto confirmar aquilo que, quando amanheceu, não resisti a pegar a chave reserva e entrar no quarto de Link.

E eu sabia. Debaixo dos lençóis escarlates, dois corpos nus dormiam entrelaçados em um abraço caloroso. Sorri, extremamente contente com a conciliação dos dois. Meu querido filho tinha a cabeça sobre o ombro de Mark e este segurava os cabelos do companheiro, como tentasse protegê-lo de algum mal inexistente. Fechei a porta atrás de mim e observei a cena, tentado a acordá-los. Entretanto, eu não podia fazer aquilo e estragar o momento dos dois.

Então, antes que eu pudesse pensar em algo, Mark movimentou a cabeça para os lados e, quando percebi, as pálpebras do Dragão celeste se abriram. Sentindo minha aura, ele logo olhou para porta.  Olhou-me como se fosse pego em flagrante. Remexeu-se na cama e sentou-se sobre ela, cobrindo o corpo com os lençóis.

— Calma – estendi a mão, em um gesto tranquilizador. – Está tudo bem. Eu só desconfiei.

Ele deixou cair o lençol por entre os dedos e Link acordou, esfregando as mãos sobre os olhos.

— Pai?! – disse, ao deparar-me com os meus olhos vívidos.

Andei até os dois “pombinhos” e eles observaram cada passo meu, tentando descobrir o que eu faria depois. Sentei-me à beira da cama e observei-os com um sorriso no rosto. Mark logo percebeu que eu não os rechaçaria, então sorriu de volta, o que causou estranhamento em Link.

— Pai, não vai...?

— Claro que não. – agarrei o rosto dos dois e apertei as bochechas – Porque eu faria isso?! Vocês só estão descobrindo os prazeres da vida.

Sim, eu falei aquilo para constrangê-los e consegui. Os rostos jovens e macios dos meninos se avermelharam e eu ri tanto que quase caí da cama. Logo, o desconforto foi embora e eles riam junto comigo e, sem pudores, falaram sobre a experiência. Tanto Mark quanto Link eram intocados e me disseram  que fora maravilhoso descobrir aquilo juntos. Fiquei tão feliz por aquela intimidade e permiti que fossem companheiros e dormissem no mesmo quarto. Percebi que por trás do ciúme exacerbado de Link, havia uma paixão censurada e que não conseguiu mais esconder depois daquela noite. Mark soube disfarçar muito bem seus sentimentos, e não mais resistiu.

Depois daquele dia a nossa rotina mudou completamente. Mark e Link não podiam mais ser desassociados um do outro. Treinavam, dormiam, comiam, passeavam, faziam tudo juntos. Eu até mesmo estranhava quando um aparecia sem o outro. Eu os acompanhava no Submundo, cheio de orgulho pelos meus meninos. A amizade e amor entre eles eram nítidos e, vê-los tão felizes, reavivava minhas forças. Traziam tantas alegrias para casa que estávamos sempre sorrindo, juntos.

Apesar disso, voltei aos meus passeios solitários e deixava-os preocupados. Eles, realmente, nunca se esqueciam de mim. Os meninos até mesmo tentaram me fazer companhia, mas eu recusava, sobre a desculpa de que gostava de ficar sozinho – e realmente não era mentira.

Eu encontrei um menino de ouro sobre a floresta, cuidei dele e tornou-se meu segundo filho, não de sangue, mas afeição. Não sentiu medo de mim desde o inicio e isso foi importante – intensamente significativo para mim. Mark foi o primeiro humano que me acolheu e não me julgou em palavras afiadas, como navalhas que feriram o meu peito e jogaram-me à ruína. Os olhos negros dele clamaram por ajuda, mesmo que tivesse visto minha raiva deitar aqueles soldados ao chão.  Poderia sentir repulsa de mim, mas chorou e agradeceu. Então, esforçou-se, veio a ser um belo feiticeiro e conquistou o amor de meu primogênito. Seu carinho também me amansou o que veio a completar com Freyr, anos depois.

Eu conheci uma face humana que não tive chances antes e pude perdoá-los, sem mais tanto remorso. Assim, parti para perdoar a mim mesmo por julgar e ferir o meu irmão, e então... Sairmos em união.


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