O Mundo Perfeito escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 7
A luz vence




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Estava anoitecendo e como não havia energia elétrica, a casa tinha ficado bem escura. Ela levava uma lanterna e lutava para não morrer de medo. À medida que andava, seus pés faziam a madeira velha ranger e barulhos estranhos pareciam vir do nada. Um murmúrio vindo do porão a fez apurar os ouvidos. Eram aqueles fantasmas conversando. Como não queria ser pega no flagra, ela desligou a lanterna e foi apalpando as paredes tentando não fazer barulho.

O porão era ainda mais escuro do que o resto da casa e ela só conseguia enxergar alguns vultos em meio a escuridão. Mas dava para ouvir o que os fantasmas falavam.

– Nós pegamos mais uma! Foi tão fácil!
– Sim, muito fácil! E ela tem tanta vida que podemos sugar! Eu quase sinto meu coração bater!
– Eu também sinto meu corpo se recuperando! Só mais duas ou três crianças e poderei sair daquele hospital!
– E eu poderei colecionar pássaros novamente!

As duas tagarelavam fazendo planos para o futuro e não perceberam alguém descendo as escadas lentamente. Mas para o seu azar, os degraus tinham um pouco de limo, resultado da umidade vinda daquele esgoto debaixo do porão, e ela acabou escorregando e fazendo barulho.

– Quem está aí? Apareça! – Agnes gritou furiosa e Maria acendeu a lanterna, direcionando o facho na direção delas que gritaram apavoradas com a claridade.
– Suas bruxas horrorosas! Soltem essas crianças agora!
– Você me chamou de bruxa? De bruxa horrorosa? Sua pirralha feia, eu sou a garota mais linda do bairro! – Penha bradou furiosamente indo para cima dela. Sem perder tempo, Maria colocou a mão na bolsa, pegou um punhado de sal e atirou contra seu rosto torcendo para que aquilo funcionasse.

Uma explosão jogou seu corpo espiritual para longe e Maria atirou outro punhado em Agnes, mas não teve o mesmo efeito.

– Sua burra! Meu corpo é quase de carne e osso, essa coisa não vai funcionar em mim! Agora, por que não desiste e se junta aos meus outros pássaros? Será muito melhor para você!
– De jeito nenhum! Eu vou soltar todo mundo.

Agnes deu uma risada assustadora.

– Pensa que pode nos vencer? Uma menininha magricela como você? Não me faça rir! Você não pode nos parar e quer saber? Quando terminarmos, estaremos fortes vivas e vamos nos vingar do seu irmão idiota e também dos seus pais!
– Não, deixa minha família em paz!
– Então renda-se. Você não tem escolha.

O medo tomou conta dela. O sal fazia efeito na garota de cabelos pretos, mas a loira era quase humana. E agora elas estavam ameaçando sua família, o que era bem pior. Mas ela não podia se entregar tão facilmente ou aquelas crianças não iam ter nenhuma chance.

– Nós vamos sugar sua vida, pirralha! – Penha falou ameaçadoramente. – Sugaremos a vida de todas essas crianças até não sobrar nada!

Por fim ela matou a charada. Elas precisavam sugar a vida das crianças para se fortalecerem. O que aconteceria se não houvesse mais vida para sugar?

– Vocês não vão sugar a vida de ninguém. Ei, acordem! Vocês têm que sair daí! Vamos! – a menina gritava iluminando as bolsas com a lanterna e fazendo barulho com a buzina. Não estava funcionando. As crianças permaneciam inertes.

Agnes foi para cima dela e segurou seu braço, jogando a lanterna e a buzina no chão.

– Achou mesmo que isso ia funcionar? Quanta ingenuidade! Agora eu vou te prender também! Renda-se ou sua família vai pagar muito caro!
– De jeito nenhum! – ela deu uma mordida na mão de Agnes, que por ter o corpo quase humano gritou de dor e de nojo.

Maria correu pelo porão tentando se desvencilhar dela. Penha tentou cercá-la e ela lhe atirou mais um punhado de sal e já muito desesperada, tentou rasgar uma das bolsas com as mãos. Apesar de aquele material ser fino, era muito resistente e ela não conseguiu fazer um único buraco sequer. E como se as coisas não estivessem ruins o bastante, uma mão gelada segurou seu braço e ela viu, apavorada, Agnes diante dela com o rosto pálido, olhos assustadores e ela mostrava os dentes como se quisesse devorá-la.

– Sua maldita, eu vou acabar com você! – suas mãos seguraram seu pescoço com força e a menina não conseguia se libertar. O ar estava faltando e ela respirava com dificuldade. Não adiantava se debater e chutar.
– Isso, Agnes, acabe com ela! Mate-a agora mesmo sem piedade!
– Sua menina tola, você vai morrer agora mesmo! Nós sugaremos a vida dessas crianças e de muitas outras! E depois iremos atrás da sua família!

Ela tentava gritar e a voz não saía. Algumas lágrimas corriam dos seus olhos enquanto pensava não em si mesma, mas nas crianças que estavam indefesas e a mercê daquelas psicopatas. Não, ela não podia morrer. Havia pessoas precisando dela. Além daquelas crianças, ela sabia que sua morte ia trazer muita dor e sofrimento a sua família. Isso não podia acontecer. Até então ela só pensava em si mesma e suas necessidades, então estava na hora de pensar um pouco nas outras pessoas também. O mundo não girava ao redor do seu umbigo.

Quando estava quase perdendo a consciência, ela viu algo luminoso entrando no peito de Agnes, onde devia ser o coração. Eram vários fios luminosos e ela parecia absorvê-los para dentro do seu corpo. Como não tinha mais nada a perder, Maria fez um último esforço e agarrou os fios, arrancando-os do coração de Agnes que soltou seu pescoço na mesma hora gritando histericamente de dor e raiva.

– Sua desgraçada!
– Bem feito, sua bruxa! – aproveitando-se que a outra estava se debatendo de dor, ela foi em direção a Penha que tentou se esquivar em vão. Maria pegou todos os fios que pode e puxou de uma vez, arrancando-os dela rapidamente.
– Não! Eu preciso disso! Meu corpo precisa! – ela gritava tentando recuperar os fios perdidos sem conseguir agarrar mais nenhum.

Maria foi puxando todos os que pode alcançar até ver aquelas duas caídas no chão se contorcendo e totalmente enfraquecidas. Aos poucos, as bolsas desmancharam, colocando as crianças no chão gradualmente. Mas ainda elas não reagiam, o que era ruim. Seria tarde demais para elas?

– Idiota! Nós podemos começar tudo de novo, você não pode nos deter! – Agnes e Penha gritaram transtornadas.
– Mas eu posso. – uma voz falou com frieza e tudo ficou em silêncio exceto por passos vindos da escada, descendo lentamente.

Agnes arregalou os olhos e o mais puro medo surgiu em seu rosto à medida que recuava rapidamente e se encolhia em um canto. Penha também sentiu muito medo ao ver de quem se tratava, pois nunca tinha visto a morte antes. Sua presença impunha temor e respeito de forma que ela não conseguiu sequer olhá-la diretamente. Algo irônico uma vez que ela nunca teve medo de olhar para ninguém.

Dona Morte terminou de descer as escadas e caminhou em direção as duas com passos ritmados e tocando o chão com o cabo da foice fazendo um barulho fraco, porém assustador para qualquer espírito ou mortal. Já a menina não sentia medo nenhum, pois não havia o que temer.

– Dona, as crianças não acordam! Elas vão morrer? – Maria perguntou tentando acordar um garotinho que parecia mais novo que ela.
– Elas ficarão bem. Quanto a vocês, isso não lhes pertence e irão devolver nesse instante!

As duas se encolheram de medo e Agnes chorava pedindo clemência.

– Não tire essa vida de mim! Eu quero viver!
– Seu tempo aqui terminou.
– Você me levou cedo demais, não é justo!
– E meu corpo está doente, eu preciso dessa vida para me curar! – Penha também tentou se justificar. Dona Morte ignorou totalmente e com um movimento da foice, fez com que uma rajada de luz saísse do corpo delas em grandes porções.

Maria assistia, abismada, toda aquela luz saindo do corpo delas e voltando aos corpos das crianças. Penha gritava e se debatia a medida que seu espírito foi apagando até desaparecer totalmente, voltando ao seu corpo inerte no hospital. Agnes ainda manteve o corpo parcialmente sólido por um tempo, pois tinha aprendido a mantê-lo visível por si mesma.

As crianças foram acordando uma a uma, totalmente atordoadas e com medo daquele lugar escuro e assustador.

– Calma, tá tudo bem! Ninguém vai machucar vocês! – Maria tentou confortá-las e algumas choravam. Dona Morte abriu um portal rasgando o ar com sua foice e ordenou.
– Faça com que atravessem uma de cada vez. Elas serão levadas de volta para casa.

A menina fez conforme ordenado e quando a última criança atravessou, Dona Morte falou.

– Agora vá. O que irá acontecer aqui não é para seus olhos. – mesmo sem entender nada, ela tratou de obedecer, pois as crianças já estavam a salvo e ela queria voltar logo para casa.
– Obrigada, Dona! A senhora foi muito boazinha!

A menina atravessou o portal que foi fechado imediatamente. Boazinha? Nem todos concordavam com isso e certamente aquela garota que fugiu da prisão ia discordar totalmente.

Agnes se encolheu o máximo que pode, pois tinha ouvido muitas histórias sobre o que Dona Morte costumava fazer com os prisioneiros fugitivos. Se ela tivesse conseguido recuperar seu corpo humano, a morte não ia poder lhe fazer nada por muitos anos. Mas ela voltou a ser um espírito e não tinha nenhuma escapatória.

– Você infringiu muitas leis e agora terá que pagar pelo seu erro. Agradeça aos céus por aquela garota ter conseguido libertar as crianças, caso contrário teria contraído uma dívida tão grande que levaria séculos para pagar.

O espectro não respondeu nada e nem teve coragem. O julgamento já tinha sido feito e ela sabia qual era o veredicto e a pena. Dona Morte chegou mais perto e sua silhueta se destacava na escuridão, alta e imponente. Quando viu aqueles olhos demoníacos brilhando de forma sinistra, Agnes escondeu seu rosto com as mãos para não enfrentar aquele olhar que, segundo lhe disseram, podia rasgar a alma. Uma mão levemente fria agarrou seu pescoço erguendo-a do chão até seus pés balançarem no ar. Unhas afiadas cravaram em sua pele que, apesar de não ser mais humana, ainda sentia muita dor.

– Prepare-se para enfrentar seu destino.

Ela não respondeu nada e fechou os olhos, pronta para receber seu castigo. E Dona Morte não deixou por menos, mostrando que sua fama de implacável e cruel era totalmente verdadeira.

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O portal a tinha levado ao porão da sua casa. O ambiente sujo, escuro e bagunçado fez com que ela respirasse de alívio, pois sabia que estava no lugar certo. Muito feliz da vida, ela subiu as escadas e ao abrir a porta viu que seus pais já tinham chegado.

– Menina, onde você estava? Pensei que tinha sumido também! – Dona Cebola falou esfregando os cabelos muito preocupada.
– Eu... tava brincando no porão.
– Ai, minha nossa! Você cismou com aquele porão! É perigoso ali, minha filha, você pode se machucar!
– Pega leve com a menina, ela devia estar se sentindo muito sozinha em casa. – Seu Cebola falou passando a mão na cabeça da filha e Dona Cebola tentou se acalmar.
– Coitadinha, nós estávamos tão ocupados que até esquecemos de você, não é?
– Tudo bem, eu entendo. Todo mundo tava preocupado com a Mônica, né?

O casal deu um grande sorriso e a mulher falou.

– Ela já foi encontrada, junto com o... namorado - essa palavra foi pronunciada entre dentes. - dela. O Cebola (ai que orgulho do meu filhinho) ajudou a encontrá-la junto com os amigos e agora está tudo resolvido!
– É? Puxa, que bom!
– Muito bom mesmo! Agora eu vou fazer o jantar. Vocês devem estar morrendo de fome.

Seu Cebola teve outra idéia.

– Quer saber? Acho que devemos comemorar. Que tal pizza e sorvete?
– Ebaaaa! – Maria pulou batendo palmas e Dona Cebola aprovou de bom grado, feliz em não ter que cozinhar.
– Está bem. Vá tomar um banho e trocar de roupa.
– Aquele porão anda precisando de uma boa faxina. – Seu Cebola falou ao ver a filha subindo as escadas com as roupas bem sujas. – De repente podemos até criar um espaço para ela brincar com as amigas, não sei. Acho que vou pensar nisso.
– Até que seria uma boa idéia...

Maria Cebolinha foi tomar banho muito feliz por tudo ter acabado bem. O que tinha sido feito daquelas duas? Ela não sabia, pois nunca tinha ouvido falar delas. Bem... a mulher de preto deve ter dado um jeito para elas nunca mais raptarem crianças novamente. Quem era aquela mulher? Ela nem lembrou de perguntar seu nome... E o que fazer em seguida? Contar para alguém o que aconteceu ou não falar nada? Após refletir um pouco, ela decidiu guardar segredo sabendo que ninguém iria acreditar de qualquer forma.

Ela tinha voltado a sua vida de sempre e pela primeira vez estava muito feliz com o que tinha. E daí que sua família não era perfeita, a Mônica estava namorando outro rapaz e seu quarto não tinha uma cama em forma de carruagem nem um armário repleto com vestidos de princesa?

Sua vida não precisava ser perfeita para ela ser feliz. Ela ia ter dias bons e dias ruins. Nem sempre seus pais podiam lhe dar toda atenção e seu irmão ia ser sempre um chato. Mas ainda assim tudo estava bem. Aquilo era viver. O resto não passava de ilusão.

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Do lado de fora da casa, Dona Morte deu um leve sorriso ao ver que a menina tinha ficado bem. Contar com a ajuda dela foi uma boa decisão. Se ela tivesse cortado os cordões luminosos, teria matado as crianças. Era preciso que um ser humano, de preferência com bom coração, fizesse isso por ela. Só assim foi possível salvar aquelas crianças e fazer o seu serviço.

Como não tinha mais nada para fazer ali, ela resolveu fazer uma rápida visita ao hospital onde aquela moça ainda estava em coma. Seu corpo jazia inerte na cama sustentado por aparelhos e recebendo soro na veia. Garota idiota... aquele estado de quase morte não ia durar muito tempo e em breve ela estaria se recuperando. E o medalhão que a jovem bruxa tinha deixado com ela ia ajudar em sua recuperação.

Pelo menos Agnes não tinha conseguido acabar com o poder de cura do medalhão, então o corpo dela ainda ia se recuperar. Falando em Agnes, Dona Morte lembrou-se de que o castigo dela não tinha terminado. Ela ainda pretendia se divertir um pouco com aquela alma penada antes de mandá-la de volta para a prisão.

Antes de ir, ela colocou um dedo sobre a testa da moça levemente e se concentrou, tirando de sua memória tudo que tinha acontecido naqueles dias. Se soubesse do que era capaz de fazer, aquela garota poderia causar muitos problemas e sofrimento aos outros quando saísse do hospital.

– Sim, sim... tudo bem quando termina bem... – ela murmurou antes de desaparecer dali pensando nos próximos castigos para aquela fugitiva. Sua imaginação muito fértil sempre pensava em alguma coisa criativa.


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