Charlotte escrita por Star


Capítulo 1
Capítulo único




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O sol brilhava no céu azul de verão. Não mais que duas nuvens eram vistas a mais de uma semana. A expectativa era que o clima se mantivesse o mesmo pelo resto do mês, o que animava crianças e famílias de toda a parte a planejarem viagens à praia.

Deitado na cama, Alexander tentava se lembrar da última vez em que pisou na areia e se banhou em água do mar. Fazia anos, talvez décadas.

Quando mais novo, costumava ansiar pelo verão o ano inteiro. Adorava a estação. Agora, se limitava a admirar comovido o azul belíssimo que se estendia como um manto infinito sob sua cabeça e se irritar com os mosquitos. Era tudo o que lhe restava. Repousando na grande cama de mogno, com Ignazio vigiando a morte ao seu lado, Alexander suspirava pesadamente e contava os mosquitos.

O toque à porta soou pelo quarto inteiro, chamando a atenção dos dois senhores. Ignazio mexeu-se pela primeira vez em horas e foi atender. Alexander ouviu o cochicho indistinto com algum mensageiro, então a porta se fechou e o homem voltou, a roupa farfalhando ao roçar no tapete.

— O doutor Albrecht pede permissão para vê-lo, Vossa Santidade.

Alexander abanou a mão à frente do rosto para espantar os mosquitos. Que entre, disse, acomodando-se na cama e com a voz a arranhar a garganta como vinha fazendo nos últimos tempos. O cardeal mais uma vez se foi e voltou acompanhando um senhor de terno e gravata, cabelos grisalhos escovados para trás e óculos quadrados.

— Doutor Albrecht — Alexander cumprimentou, com um balançar de cabeça e oferecendo a mão. Cordialmente, o doutor curvou-se e lhe beijou o grande anel de ouro, cumprimento devido ao se encontrar alguém de tão alto escalão religioso. O primeiro indicou-lhe a poltrona vazia para que se sentasse e voltou-se ao cardeal, prostrado ao lado da cama. — Poderia nos conceder um instante, Ignazio?

O cardeal pigarreou, incomodado.

— Não devo sair de seu lado, Vossa Santidade.

— Ora, vamos, Ignazio — Alexander pediu, com bom humor. — Não morrerei por me deixar sozinho por dois minutos, estou certo disso. Aproveite e vá comer algo, vi que mal tocou no café.

O cardeal permaneceu, relutante, até dar-se por vencido e dar meia-volta à contragosto.

— Retornarei em breve para checar Vossa Santidade — avisou e saiu.

— Ele deve ser uma companhia divertida em festas — comentou doutor Albrecht, arqueando as sobrancelhas escuras, depois que o eco da porta pesada a bater se extinguiu.

— Não deve pensar mal de Ignazio — Alexander comentou, abanando a mão. — É um homem muito bom, na verdade. Pensa que se estiver aqui quando a morte chegar poderá lutar com ela pela minha alma.

O doutor esboçou um sorriso desconfortável. No silêncio que se seguiu os dois conferiram se ainda existia o velho conforto que costumavam sentir na presença do outro, apesar do meio século passado.

— Fico feliz que tenha vindo — anunciou Alexander, sempre o mais sentimental dos dois.

— Eu estava por perto, achei que podia vir ao Vaticano e aproveitar para esticar as canelas — o doutor comentou, com um sorriso bem humorado. Ainda lhe doíam as costas pela noite e metade do dia dormidos dentro do avião.

— Já faz algum tempo, Albrecht.

— De fato, você ainda tinha algum cabelo na última vez que nos vimos.

Os dois riram, como velhos amigos, até que Alexander caiu em uma súbita crise de tosse que pareceu interminável. Tombou para a frente, com uma mão sobre o peito, o corpo a sacudir em tosses roucas e profundas, e Albrecht levantou de imediato para ajudá-lo.

— Minha nossa, Giorgio — soltou, alarmado, quando a crise cessou. — Seus brônquios devem estar completamente destruídos. Com o que diabos estão lhe medicando?

— Não mandei lhe chamar aqui como médico — o mais velho disse, com algum esforço, o peito cansado subindo e descendo pesadamente. — Pedi que viesse como um amigo. Não quero mais medicamentos ou diagnósticos. Médicos, já vi muitos. Amigos, muito poucos.

Albrecht apertou os lábios, desgostoso. Independente dos anos passados, do ralíssimo cabelo branco que agora decorava o topo da cabeça cor-de-rosa do amigo, das rugas e da posição importante que ocupava, ele continuava exatamente a mesma figura de sempre.

— Vejo que a doença não afetou sua teimosia.

— Faz tempo que não ouço ninguém a me chamar de Giorgio — Alexander recordou, com gosto, ignorando os resmungos do outro. Alexander era o nome que escolhera quando os cardeais votaram e o escolheram como o novo papa. Agora, seu nome de batismo soava aos seus próprios ouvidos como uma canção de que havia gostado muito e de repente parara de ouvir.

— Bem — o doutor soltou, voltando a sentar em seu lugar, com uma pontada de irritação. — Como amigo eu devo dizer que você parece uma bela porcaria, Giorgio.

Os dois riram novamente e Albrecht não pôde evitar se preocupar que outro ataque de tosse viria, o que não aconteceu.

— Devo realmente perguntar, Giorgio, quais remédios anda tomando? — Insistiu, esfregando as mãos. Bem era sabido qual era o estado do papa, o que punha fiéis em todo mundo a rezar fervorosamente pela sua recuperação. O outro lhe lançou aquele olhar, o mesmo de sempre, carregado de paciência e benevolência, de quando o assistia a fazer coisas estúpidas quando jovem. — É meu dever como médico comentar que soube de um novo medicamento enquanto trabalhava na Índia. Os resultados parecem promissores, de verdade.

— Espero que sejam, realmente. Salvará a vida de muita gente. Mas não a minha, meu amigo. Já bati a minha cota de drogas medicinais. Trate de largar do osso da medicina, pelo menos por um momento. Conte-me uma história, Albrecht. Você sempre foi muito bom com histórias.

Albrecht se irritava com a calma do amigo, claro que sim, quem no mundo conseguiria assistir pacificamente a um amigo de longa data desistir da vida com tamanha facilidade? Porém sabia, mais do que ninguém, que seria incapaz de fazer com que mudasse de ideia. Soltando um suspiro pesado, deixou-se levar.

— Qual gostaria de ouvir, dessa vez? — Perguntou, como se restasse alguma dúvida.

— Conte sobre Charlotte.

— Charlotte, hm? — Albrecht sorriu e recostou-se na cadeira, com o rosto virado para o teto altíssimo e os dedos a alisar o queixo barbado. — Vejamos se ainda me lembro... Era carnaval, em Berlim, na minha terra natal. Eu me mudei para a cidade para cursar direito e acabei por chegar atrasado, bem no meio da festa. Todas as ruas estavam cheias de pessoas festejando, com garrafas e serpentinas, gritando canções a pleno pulmão, como só podem fazer uma vez por ano. Naquela época eu ainda era um rapaz jovem de cidade pequena, talvez nos meus vinte e poucos anos, e não pude resistir a toda aquela bagunça. Deixei na república as malas e saí a peregrinar e assistir toda a folia dos cidadãos.

“Enquanto passeava, admirado por Berlim, encontrei, pelo acaso mais glorioso desse mundo, com Charlotte... Ainda não sabia que era Charlotte, é claro. Mas, por Deus, como desejava conhecer seu nome, seu telefone, seu endereço, conhecer a tudo o que lhe fazia rir e chorar. Ela era uma verdadeira beldade, com cachos loiros de um anjo, olhos azuis feito o céu de verão e um vestido provocante de melindrosa. Quando a vi, retocava o batom no rosto de boneca, olhando o próprio reflexo no espelho de um carro.”

Albrecht suspirou profundamente, imerso em lembranças.

— Talvez soe como tolice, mas sinto com certeza em cada fibra de meu corpo que a amei desde o primeiro minuto em que a vi. Imagino que por isso a tenha espantado. Aproximei-me, jovem e de coração eufórico a batucar como um tamborim, e Charlotte, tímida e educada como uma rainha, se assustou e recuou, deixando cair, sem perceber, o batom que usava, no chão cheio de confetes.

“Guardei seu batom, eu, um pobre condenado. Levei-o comigo até a república e o contemplava antes de dormir, meu talismã, certo de que um dia a reencontraria e o devolveria, e, quem sabe, lhe falaria as palavras certas e me encheria de orgulho ao fazê-la sorrir. Mas quais eram as minhas chances, realmente? Berlim nada tinha de pequena, e muitos ali frequentariam a cidade apenas durante o feriado. Mas você sabe, Giorgio, como jovens apaixonados se negam a desistir.”

Alexander meneou a cabeça, em concordância. Albrecht prosseguiu e bateu no próprio joelho, fazendo um som alto e repentino para acompanhar a mudança de clima da história.

— Bem! Quão surpreso não fiquei eu, quando, na volta ao ano letivo, a encontrei na minha sala! Sim, Charlotte! Mais recatada, em trajes universitários, porém, com os mesmos olhos azuis, o mesmo rosto tão doce e inocente pelo qual me apaixonei. E maior não foi minha surpresa quando, a encontrá-la pelos corredores da universidade, mal tinha coragem de lhe dar boa tarde! — Enunciou, entusiasmado, rindo tanto quanto aquele que escutava a história. — Onde estavam todo o fogo e ardor da minha juventude, meu caro amigo, não sei lhe dizer. Charlotte me encantava a tal ponto que as batidas do meu coração chegavam a soar mais altas do que as palavras que eu tentava lhe dizer, e eu acabava me atrapalhando por inteiro. Ah, ela não se recordava de mim, também. Como poderia, a ver tantos rostos alegres todos os dias, lembrar-se de um alemão desajeitado com quem esbarrou no carnaval? Mas eu não desisti, de forma alguma. Não, eu poderia me tornar um sujeito patético e embolado à sua frente, mas não desistiria de merecer seu coração.

“Esforcei-me tanto nas aulas quanto fora delas, de forma que fosse capaz de tirar as melhores notas e, em quaisquer grupos de estudos que acontecesse, pudesse a ajudar em qualquer questão. Logo estudávamos apenas os dois juntos, na biblioteca. Quero dizer, ela, com certeza, estudava. Eu sempre ficava perdido com o cheiro maravilhoso do seu perfume e com a poesia que todos seus gestos tinham. Mais tarde, acabei criando colhões e mencionei nosso encontro no carnaval. Devolvi-lhe o batom. Charlotte ficou muitíssimo comovida. Agradeceu-me pela gentileza e, interpretando-me deliciosamente mal, declarou-me seu grande amigo. Ah! Como é amargo ouvir a palavra “amigo” sair da boca de quem se deseja como louco! Eu aceitei, é claro, porque estar ao seu lado era melhor do que nada.

“Passamos a nos encontrar além da biblioteca. Ela, que também não era nascida na cidade, sugeriu que saíssemos juntos para descobrir Berlim. A cada passeio eu mais me apaixonava, por ela e pela cidade. Descobrimos festas noturnas e íamos quase todas as noites para dançar, beber, cantar e rir. Costumavam ser festas bem barulhentas e não raro os vizinhos reclamavam do barulho. Logo soava a sirene da polícia vindo para reestabelecer a ordem. Era quando o mais engraçado espetáculo se formava: corriam todos, por todos os lados, fugindo, bêbados pelas ruas, para não serem presos. Eu e Charlotte fugíamos às gargalhadas, eu segurando meu chapéu, ela, a saia do vestido.

“Certa vez, tínhamos a patrulha em nosso encalço e pulamos o muro de uma casa para despistá-los. Caímos rolando pelo jardim e, de alguma forma, Charlotte caiu em cima de mim, com as bochechas cor-de-rosa pelos drinks, rindo tanto que mal podia respirar. Era isso, eu não poderia mais me segurar, eu sabia. Correndo o risco de levar um tapa e perdê-la para sempre, eu a beijei.”

Albrecht parou a narrativa de propósito, em um silêncio contemplatório, de olhos fechados como se tivesse a imagem daquela noite gravada nas pálpebras e forçando Alexander a perguntar, ansioso:

— O que aconteceu depois?

— Ela me beijou de volta, ah, sim. Beijamo-nos enquanto o carro da polícia passava e muito depois disso. Beijamo-nos quando os irrigadores do jardim ligaram ao amanhecer e voltamos para casa, encharcados, felizes e completamente apaixonados. Depois disso, bem... Ora, vivemos um período maravilhoso de namoro, festas e estudos. Até que o fim chegou, como tem de ser.

“Voltávamos de mãos dadas pela madrugada, como sempre fazíamos, e encontramos uma confusão no caminho. Parecia ser apenas uma briga barulhenta de rapazes. Íamos mudar o caminho para evitar problemas, quando Charlotte percebeu o que realmente acontecia. Eram quatro garotos, arrumados em roda, empurrando um a outro uma garota, que mal conseguia gritar de tanto que chorava. Eles gritavam coisas horríveis para ela. Palavras que não se deve dizer a ninguém. Meu primeiro instinto foi o de levar Charlotte para longe. Eu, um covarde, querendo protege-la. O cúmulo foi quando derrubaram a menina com um soco e começaram a chutar. Charlotte se desvencilhou de mim, enfurecida. Desceu a rua gritando com os meninos, tacou neles seus sapatos. Eu a segui.

"Quando eles nos viram, saíram correndo, obviamente. Não deveriam ter mais do que dezoito, eram garotos e estavam bêbados. A garota em que batiam era uma conhecida, uma moça bonita que nós sempre víamos dançar no bar. Talvez se chamasse Dorothy, ou Darlene. Seu estado era terrível. O rosto inchado, dentes quebrados, sangue por toda a parte. Charlotte a abraçou e chorou enquanto eu chamava a ambulância. Já ouvíamos a sirene quando, de repente, a garota começou a tremer, o que sei hoje que foi uma convulsão, vomitou sangue na meia calça de Charlotte e não respirou mais. Depois desse evento...

Albrecht suspirou pesadamente, retirou os óculos e passou a limpá-los.

— Bem, muitas coisas mudaram. Não éramos mais os mesmos. Demorei a aceitar isso mais do que Charlotte. Não podíamos tentar continuar a vida de antes. As festas pareciam erradas e em todas as ruas víamos perigo. No fim do outono, nos separamos. Charlotte decidiu que direito não era seu caminho e retornou para o seu país. Mais tarde, eu, também, larguei a faculdade. Fui para a medicina, com o pensamento ingênuo de que, na próxima violência que assistisse, eu seria capaz de ajudar. Quanto à Charlotte... Bem, não voltei a vê-la. O tempo passou. Tornei-me médico e formei uma família.

Albrecht terminou a história e recolocou os óculos, sentindo-se mais comovido do que o que planejava. Recontava a mesma história todas as vezes em que se encontravam e em todos aqueles anos nunca conseguia terminar sem sentir um peso no coração.

— Ela era mesmo uma moça bonita, não era? — Alexander perguntou, de olhos pequenos e brilhantes.

— Ah... A mais bela de todas, meu amigo, com certeza.

— Sinto a falta dela — disse, sempre o mais sentimental dos dois, de olhos fechados.

— Eu também, amigo. — O doutor baixou o olhar às mãos: voltara a esfregar os dedos sem perceber. Sorriu para si mesmo, melancólico. — Deus sabe o carinho que tenho pela minha esposa, mas ainda penso em Charlotte todas as noites quando me deito.

— Faça-me um favor, Albrecht. — Sem abrir os olhos, sua mão branca e trêmula se ergueu, apontando para a escrivaninha. — Preciso que pegue algo para mim. Está na última gaveta.

O doutor se levantou prontamente e com algum esforço puxou a gaveta emperrada. Encontrou papéis e cadernos e estava prestes a perguntar o que precisava ser pego quando, remexendo entre as folhas, viu no fundo da gaveta um brilho laranja.

— Quero que o coloque escondido dentro do meu caixão — Alexander disse, às suas costas. — Quero tê-lo comigo quando encontrar com o Senhor.

Albrecht sentiu o coração afundar no peito e lhe faltar forças nas pernas. Tirou de dentro da gaveta o pequeno tubo laranja conhecido, com a tinta a descascar. Ainda tinha o mesmo peso na palma da sua mão.

Voltou-se para o outro e quaisquer palavras que fosse proferir deixaram de existir no mesmo instante. Giorgio, deitado pacificamente na cama, de olhos fechados, parecia estar dormindo, exceto pelo fato de que não mais respirava.

Albrecht se aproximou, apertando o batom contra a palma da mão a suar. O mesmo batom que devolveu há cinquenta anos atrás a um Giorgio jovem e assustado. Beijou o topo da cabeça do amigo pela última vez, agora tão cheia de rugas, cabelos brancos e marcas do tempo, mas com o mesmo calor e carinho de quando tinham vinte e poucos anos.

— Adeus, Charlotte.

A despedida veio e Albrecht, um alemão de quase dois metros, pôs-se de joelhos ao sucumbir ao choro, tão pesado e devastador quanto a súbita tempestade de verão que começava do lado de fora.


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Notas finais do capítulo

Eu chorei a beça enquanto escrevia essa história e espero que todo mundo esteja chorando também.Quando fui procurar na Wikipédia o que de mais aconteceu no ano de 1922 e li sobre a morte do papa, a história meio que se desenrolou sozinha na minha cabeça. E, pra quem não sabe, Berlim era uma das cidades onde mais se viam gays e lésbicas, transvestidos ou não, pelo menos até a Segunda Guerra Mundial.