D'Ela escrita por Carmen Rey


Capítulo 2
Parte I




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Quando percebi, eu já estava longe d’Ela.

Passo por entre aqueles corpos vazios, lembrando-me de um dia em que Ela não passava de um deles para mim. O problema é que eu não era consciente do que Ela escondia, do que Ela sentia.

Aguentei noites em claro sem fechar os olhos uma única vez, pensando que talvez a dor que eu sentisse fosse, de certa forma, merecida.

Minha vida já estava rabiscada. Perfurada por erros, por desculpas e mentiras.

E quando eu entrei naquela sala, há muito tempo, bem no fundo, eu nem a notei.

Mas Ela sim.

Não uma garota, não um “ela”, e sim “Ela”.

Continuei a desmerecer a presença daqueles corpos vazios através dos meus óculos, tanto antes quanto agora. Caminhei silenciosamente entre eles, esperando que ninguém me percebesse e fizesse notar-me.

Porém, Ela me seguiu. Continuou me explorando, me descobrindo.

Houve o dia em que Ela pediu meu casaco emprestado, e eu a deixei.

Ela levou o casaco consigo; para dentro da sua própria sombra. E eu não percebi que meu casaco se encaixava perfeitamente n’Ela, e talvez, quem sabe, nem Ela tenha percebido.

Meus passos eram silenciosos e as músicas ecoavam na minha mente. Deixei que fosse levado pelo vento, embora não tinha ideia das consequências. O que sabia era que tal coisa, essa liberdade genuína que parecia boa, só me corroía. O que eu entendia ser um futuro ideal, algo feliz; não passava de uma visão distorcida da realidade que estava bem à minha frente. Eu fundi a imagem do que eu queria com o que acontecia.

E que provavelmente, depois daquilo, nunca mais chegaria a acontecer.

Cheguei a pensar que nunca mais a veria. Mas isso foi uma mentira, pois Ela ainda estava lá. Sentada do meu lado, mas tão distante e gélida quanto eu nunca imaginaria que pudesse ser.

E quando eu achava que Ela nunca mais deixaria aquele sorriso desaparecer do seu rosto, ela o fez.

Quando isso aconteceu, eu tirei a letra maiúscula de seu nome.

Ela não falava mais comigo. E dentro daqueles olhos castanhos eu pude sentir um fogo ardendo, chamas metálicas que refletiam a minha imagem dentro daquela imensidão marrom. E posso dizer-lhes; minha imagem nunca fora tão horrível.

Isso me lembra da época de antes de tudo acontecer. Admito, tinha um orgulho estúpido e um andar arrogante e mais algo que eu não sei que fazia algumas garotas se exibirem para mim. Eu me divertia com isso. Até que Ela apareceu, e diferentemente das outras garotas, não se exibiu nem nada. E eu a considerei minha amiga até o final, nem sequer imaginando que talvez Ela me olhasse de canto como quem quer apenas observar e admirar.

Admirar.

Ela me deu conselhos. Conseguiu me fazer rir de verdade como eu não havia feito há muito tempo. Mas eu ignorei o resto e passei a viver apenas o presente. Era como se eu tivesse sido colocado num aquário, passeando entre aqueles corpos cinzentos, tendo uma vida agitada e mecânica, caída sobre uma máscara que eu criava para dar a ilusão de felicidade aos meus próprios olhos. Eu cometia erros, muitos deles, e não prestava atenção no que Ela gritava atrás do aquário, sua voz abafada pela falsa ternura da água.

E eu a ignorei por tanto, tanto tempo.

E cá estou eu.

Quando percebi, tudo o que eu podia sentir era o chão quente sob meus pés. Ao virar para trás, posso vê-la conversando com outro cara. Um cara que atenciosamente escuta tudo o que Ela diz. E a faz sorrir.

Ela usa o casaco dele agora.

Passo por trás dela. Não virou para se despedir.

E ainda sentindo meu coração rasgando-se cruelmente dentro do peito, atravesso todos aqueles corpos cinzas e ignorantes, aquelas almas sem felicidade e cor, tornando-me um deles.


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