Família escrita por SomeKilljoy


Capítulo 1
Único


Notas iniciais do capítulo

Então, eu decidi sair da minha zona de conforto para escrever a one e superar a vergonha para postar aqui o/ (Sim, eu sempre tenho vergonha de postar qualquer coisa.) Escrevi totalmente com o Desafio do Nyah! em mente, e tô tão empolgada a ponto de pensar em escrever outra coisa para ele.Enfim, boa leitura!~



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"Eu não consigo, pai! Não sei fazer isso..." ela gemeu em frustração, fazendo o rosto cair sobre o livro didático aberto em cima da mesa, deixando só um monte de cabelos castanhos claros visível de sua cabeça. Sua voz soou abafada quando ela continuou, choramingando. "Por que matemática tem que existir?"

Ele sorriu, compreensivo. Nunca fora bom em matemática também, quando pequeno.

Lembrava-se de muitas vezes ter reclamado acerca da existência daquela matéria tão perturbadora, e o quanto odiava ouvir seus pais lhe garantirem de que ela seria essencial durante toda sua vida. Quanta ladainha. Conversa para boi dormir. Eram esses seus argumentos anos atrás. Quem diria que ele viria a enfrentar a mesma recusa diante da matemática que os pais dele foram obrigados a enfrentar?

Gostaria que Daniel estivesse em casa. Ele era bom naquelas coisas. Um tangível exímio em Exatas. Também lembrava-se dele no dia em que se conheceram: rodeado de papéis todos preenchidos até a borda com cálculos. Até tinha lhe dado gastura. Mas ele estava fora, precisava passar umas horas extras na Universidade. Conferiu o horário no relógio de pulso, estranhando. Já era para ele ter chegado. Teria que ralhar com ele mais tarde, ou ao menos dar-lhe um sermão sobre chegar na hora estipulada. Era irônico, Daniel era o bom em números, mas Gabriel que era obcecado por horários.

Passou a mão na cabeleira castanha de sua filha, em uma demonstração de que entendia sua aversão por tarefa de casa de matemática. Depois, escorregou a mão "involuntariamente" ao seu pescoço, roçando um dedo na parte de trás de sua orelha, onde sabia ter cócegas. Ela soltou um risinho estridente e se afastou instantaneamente, quase em defensiva.

"Deixa eu fazer isso mais tarde" pediu, implorativa. "Deixa eu ver um pouco de TV primeiro, por favor."

"Não. Desculpa, filha" prosseguiu, por causa de seu olhar desapontado. ", mas é muito melhor já ficar livre disso de uma vez. Avante! Vai, você consegue. É fácil."

Ela fechou a cara.

"Bobo."

Ele riu.

"Você sabe que isso não vai me ofender. Anda, faça, já te expliquei tudo o que precisa e um pouco mais. Sem careta" advertiu-a, ao que recebia uma língua estirada da filha, enquanto levantava-se da cadeira da mesa da sala de jantar e encaminhava-se à cozinha, abrindo a geladeira e buscando algo comestível. Ovos... Deus, eles já haviam comido omelete duas vezes aquela semana. Não, credo. Pão francês, mas que provavelmente já estava envelhecendo. Coisas assim... Nada lhe parecia atraente aos olhos, e muito menos ao estômago. Suspirou.

"Que tal uma pizza?" alteou a voz para que Carla conseguisse escutá-lo.

"Sim!" ouviu-a responder prontamente, animada, quase triunfante.

* * *

Quando Daniel chegou em casa, Gabriel o esperava na soleira da porta à entrada da casa, batendo um dos pés no chão repetidamente, os braços cruzados. Ele deu um sorriso fraco, do tipo "Foi mal", que amenizou sua expressão. Daniel sempre considerara aquela expressão, que sempre antecedia uma repreensão por parte de Gabriel, meio fofa e assustadora ao mesmo tempo. Ao alcançá-lo, o braço cansado pela maleta pesando enquanto subia as escadas desajeitadamente, respirou fundo e disse:

"Tenho uma surpresa para você."

Um lampejo de curiosidade perpassou seus olhos castanho-claro, conferindo-lhe um ar infantil.

"Ah, é?"

"É. Mas posso entrar primeiro?"

Gabriel deu um passo para o lado, desobstruindo a passagem.

"Agradeço."

Ele entrou a passos trôpegos, pondo a maleta sobre a bancada da cozinha, o cômodo que se seguia à entrada da casa, e arqueou as costas, ouvindo-as estalar.

"Tá, agora fala a surpresa." ordenou Gabriel impaciente, encarando-o, ainda de braços cruzados. Usaria aquilo como uma nova tática para escapar dos seus sermões infindáveis sobre atraso: um anúncio de uma surpresa. Infalível.

"Nossa, calma!" exclamou Daniel, erguendo as mãos no ar, como que em sinal de capitulação. "Que recepção calorosa! Não ganho nem um beijo?"

O outro soltou uma risada, para depois lançar-lhe um olhar de deboche de "Apenas fale."

"Espera, quero chamar a Carla... A surpresa vai agradá-la também. Cadê ela?" perguntou, olhando ao redor.

"No quarto, assistindo TV."

"Certo! Vou ser rápido, a surpresa não pode esperar por muito tempo!"

Gabriel ergueu uma sobrancelha, vendo-o sumir em direção ao corredor que conduzia ao quarto deles e à da menina. Rumou até a sala e sentou-se no sofá, em espera, até que uma Carla saltitante viesse até a sala, acompanhada pelo pai, confiante.

"Diga" disseram ele e a criança em uníssono, a voz da última sobressaindo-se levemente em excitação.

"Ok, ok!" Daniel balançou-se nos pés, jogando os cabelos loiros para trás. "Eu não sei se vocês se lembram, mas... Tinha um gatinho em adoção de uma moça, sabe? Foi semana passada, se não me engano, que vimos um panfleto grudado ao portão da escola da Carla... Pois é. Eu anotei o número dela, lembram?" Carla meneou a cabeça avidamente, os olhos brilhando em expectativa. "Resolvi contatá-la ontem e acabei indo a sua casa hoje... Taí a justificativa do meu atraso" Ele olhou para o namorado, como que para certificar-se de que estava ouvindo. "E, bom... Parece que o gato é nosso agora."

Carla comemorou de modo enfático, jogando-se nos braços do pai, que a envolveram e lhe deram colo. Ela distribuiu inúmeros beijinhos pelo rosto dele, radiante, pontuados por "Obrigada! Obrigada! Obrigada!". Gabriel sorria. Mas então este perguntou, confuso:

"Ué, cadê o gato?"

Silêncio.

"Deixou o coitado no carro?" Ele parecia espantado, como se aquela ideia lhe fosse absurda. Ante à ausência de resposta do outro, continuou: "Por quê?"

"Uma prevenção caso você não aprovasse... "

"Você faria o quê? Correria para devolver o gato praquela moça?"

Ele deu de ombros, parecendo sem palavras. Carla se manifestou.

"Não importa, né, pai?! Vamos ver o gatinho!"

.

Uma semana depois, o gato já havia se adaptado à nova casa. E, mais importante, à nova família. Esgueirava-se por aí todo dono de si, o rabo fino elevando-se sobre o corpo. A filha o havia batizado de simplesmente Gato, em homenagem ao animal do filme Coraline, por ser preto e esguio como ele e parecer desaparecer quando quisesse. Havia sumido por horas um dia, para depois aparecer no sofá da sala de estar, como se nada houvesse acontecido. Claro, ele não tinha um aspecto maltrapilho como o original do filme. Podia não ter os pelos mais sedosos do mundo e trazer uma pequena escoriação na pata esquerda - nada grave -, mas Carla não ligava para isso, de qualquer forma. Andava com ele o tempo todo nos braços, como se fosse a maior preciosidade do mundo, e Gato já estava ficando mal-acostumado. Carente o tempo inteiro. Gabriel perdera a contagem das vezes que só naquele dia tivera que parar o que fazia para dar-lhe um cafuné atrás das orelhas, fazendo-o ronronar meigamente. Ele dormia no quarto com a garota, mas sua caixa de areia ficava em um canto do corredor, seus brinquedos, espalhados por aí, e sua vasilha de ração e água, junto à porta da cozinha.

Concluíram que não seria descontado no preço do presente de Carla, cujo aniversário seria dali a duas semanas, por ser um presente a todos ali. Afinal, eram amantes inexoráveis de animais, só estava faltando uma oportunidade para que finalmente adquirissem um.

E era justamente sobre isso que Daniel e Gabriel discutiam naquele momento, baixinho, à noite, no quarto.

"Sabe, podíamos arranjar mais animais. A gente tem uma área aberta bem acolhedora para alguns cachorros, espaço de sobra... E quem sabe mais um gato? O Gato precisa de companhia! Que tal uma fêmea? Aí eles teriam vários gatinhos e... Você sabe que amo gatos!"

"Shhh." disse Gabriel, sonolento. As tantas repetições da palavra "gato" em uma única frase estavam atordoando-o. "Podemos falar sobre isso mais tarde... Quero dormir."

Daniel puxou-o para um beijo, enlaçando seu corpo seminu com um braço.

"Você sempre foi um dorminhoco. Sabe, amanhã é sábado. Sem acordar cedo. Podemos ficar acordados até tarde..." Traçava padrões circulares nas costas do namorado com o indicador enquanto isso, sugestivo.

"Hmm..." murmurou o moreno de mansinho, acomodando-se junto a ele, escondendo o rosto entre a curva de seu pescoço e sua clavícula. "Amanhã. Pode ser?"

"Pode" respondeu, sorrindo. Lascou-lhe um beijo na bochecha em seguida, e caiu no sono alguns minutos depois.

.

No dia do aniversário de Carla, nem todos os convidados compareceram por motivos óbvios, mesmo seus colegas de escola com quem mantinha maior afinidade. Mas a falta de consideração da família de Gabriel foi a mais alarmante.

Haviam alugado um salão de festa infantil com tamanho o suficiente para abrigar até cem pessoas, com mesas distribuídas pelo local, brinquedos como cama elástica, piscina de bolinha, escorregadores imensos e labirintos, e o bufê decorativo em frente a um grande painel com a temática das princesas da Disney, escolhida por Carla, com um enorme bolo de chocolate e glacê no centro, a vela contando 10 anos. Apareceu menos que a metade disso, porque a outra metade haviam contado com a presença dos que haviam faltado.

De certa forma, já previam isto. A família raramente dava qualquer sinal de vida, ausentando-se em ocasiões importantes, como o primeiro aniversário da filha adotiva que passaram juntos. Porém, Daniel e Gabriel tinham repensado, e suposto que no segundo, ela podia decidir dar as caras. Feria um pouco seu orgulho dar-lhe outras chances, mas resolveram que "orgulho" não devia se interpor em relações familiares. Péssima resolução. Tudo por não concordarem com a decisão do filho/parente de ser feliz e, acima de tudo, ser ele mesmo. Eram intolerantes, e não compreenderiam nem se quisessem. O que, óbvio, não queriam.

Assim, a festa dava-se continuidade, à medida que mais convidados iam chegando e ocupando seus lugares e Carla e sua pequena aglomeração de amigos passavam a se divertir. Gato encontrava-se ali também, vagando despretensioso pelo salão, sem apresentar quaisquer tentativas de fuga, parecendo extremamente satisfeito. Afanava salgadinhos que caíam no chão e recebia cortejos de vários convidados, que atendiam sua necessidade de ser acariciado dentre intervalos de minutos.

De quando em quando, alguns pais dos coleguinhas de sua filha chegavam e perguntavam aos dois como era ser um casal homoafetivo em uma sociedade potencialmente preconceituosa. Não se preocupavam com aquele tipo de pergunta: sabia que eram de genuína curiosidade e podiam até transmitir certa empatia, e respondiam sem quaisquer restrições. Na verdade, estavam até surpresos com a quantidade de pessoas a irem lá. Sabiam que várias pessoas cultuavam a família tradicional e pareciam recusar-se terminantemente a abrirem um pouco a mente, mas tudo bem.

Ao final da festa, uma hora após as felicitações à filha - os parabéns - e todos eles já irem embora, o local estava tão vazio quanto antes da comemoração ter início. Apenas os funcionários e eles estavam lá. Carla havia se apressado em começar a rasgar os embrulhos do amontoado de presentes num caixote decorativo na entrada do salão, onde os convidados haviam sido recepcionados, e Gato contentava-se em surrupiar os doces remanescentes nas travessas sobre algumas mesas.

Nesse meio tempo, Daniel tinha chegado sorrateiramente para perto de um avoado Gabriel que encarava o nada, um sorriso bobo entre os lábios, sobressaltando-o quando lhe deu um abraço por trás. Depois, o último encostou a cabeça no ombro dele, que era alto o suficiente para que permitisse aquilo. Com um ar meio sonhador, ele declarou:

"Conseguimos, né?"

Daniel pareceu meio surpreso.

"Conseguimos... O quê?"

O sorriso de Gabriel aumentou, e ele pensou em tudo o que já tinham passado juntos.

"Realizamos nosso sonho. Montamos uma família."


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Notas finais do capítulo

Mostrem sinal de vida, leitores! Deixem-me saber que leram até aqui, e saber o que acharam! Beijos, até o/