Crônicas dos Elementais escrita por btfriend


Capítulo 20
O Segundo Livro




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Enquanto Tyler treinava com seus tios, Clair aguardava no albergue de dona Ana. A senhora tratava Clair como um membro de sua própria família, toda hora perguntando se tinha que pudesse fazer ou se gostaria de algo para comer, quando simplesmente já não chegava com uma jarra de suco de frutas recém colhidas.

A menina estava sentindo-se muito bem acolhida e não tinha do que reclamar, mas, naquele instante, ela estava querendo um pouco de sossego. Estava aproveitando a ausência do amigo para folhear, sentada na cama,  os livros que sua mãe havia lhe dado. Eles eram a única recordação da mãe que ela estava carregando consigo.

Um dos livros tinha uma aparência bem velha e suas folhas já estavam bem amareladas, porém foi nele que Clair encontrou informações bem úteis. Havia receita de poções simples até as que necessitavam de ingredientes mais complexos, dicas de feitiços e habilidades mágicas entre outros tipos de diversas anotações que ela lia atentamente. Ela entendeu que a mãe havia lhe dado aquele livro como forma de proteção e precaução, e não simplesmente um presente como outro qualquer.

O segundo livro realmente a intrigava. Estava novo, revestido com uma capa de couro e as folhas bem brancas. Totalmente em branco. Não tinha informação alguma naquelas páginas. Clair já tinha folheado página por página e não encontrou nada. Não conseguia sequer imaginar um motivo para aquilo estar em suas mãos. Era um peso morto que não estava servindo para nada.

Os dois objetos lhe provocavam curiosidade por diferentes motivos. O primeiro alimentava um desejo por conhecimento e ansear por testas novas técnicas, enquanto o segundo apenas lhe despertava um desejo de entender a intenção de sua mãe ao querer que ela ficasse com ele.

Mais uma vez sua tranquilidade tinha sido interrompida quando escutou algumas batidas na porta, que tinham lhe feito emergir de seus pensamentos.

— Não estou precisando de mais nada, dona Ana. - respondeu Clair com uma voz bem educada. - Muito obrigada pela preocupação. Pode deixar que qualquer coisa eu te aviso.

— Que bom que não é dona Ana que quer entrar, então. - respondeu uma voz feminina com um leve toque de atrevimento que Clair já estava começando a se acostumar. - Atrapalhando alguma coisa? - Dahlia já sentava na beirada da cama como se tivesse sido convidada a fazê-lo.

— Talvez um pouco. - respondeu tentando ser sutil mas ao mesmo tempo querendo mostrar que não estava satisfeita com a interrupção. - Mas nada que eu não possa continuar depois.

— Ah, para! O que é eu possivelmente poderia estar interrompendo entre você e esses seus dois livros?

— Não que eu lhe deva alguma satisfação, é claro, mas estou tentando praticar o que está escrito neles. E pra isso preciso de um pouco de concentração e isso não seria possível conversando, não é mesmo?

— Então quer dizer que temos uma bruxinha entre nós, é isso? - disse Dahlia com tom irônico.

— Talvez fada seja o termo mais apropriado. - retrucou Clair.

— E vejamos o que nossa fadinha está tentando aprender. - Dahlia pegou um dos livros em suas mãos e começou a folhear surpresa. - Aparentemente nada, não é mesmo? O que um livro em branco pode lhe ensinar? Deve ser coisa de fada mesmo.

Dahlia esperava algum tipo de resposta de Clair. Estava acostumada a ter diferente reações a suas provocações, porém não esperava que se calassem diante delas. Observou-a por um momento e viu que realmente Clair esboçava uma expressão de confusão e não estava nem dando indícios que iria rebater.

— Não acredito! Nem você sabe para que isso serve, não é mesmo? - concluiu Dahlia.

— Foi um presente de minha mãe. Ela não me disse exatamente pra que servia.

— E como você se diz uma fada, posso assumir que alguém da sua família também seja. E, se por acaso for a sua mãe, de repente isso também seja algum tipo de artigo mágico. - iniciou Dahlia de modo tranquilo, mas já mostrava alteração na voz para continuar. - Mas que lugar é esse de onde vocês vieram que ninguém sabe nada sobre suas origens?

— Existe uma grande diferença entre não saber das minhas origens e não saber a utilidade desse livro! Deve existir uma infinidade de objetos mágicos e eu não sou obrigada a saber para que servem.

— De fato, até que você está correta com essa ponto de vista. - concordou Dahlia. - E eu acho que posso ajudá-la com isso. Bom, não exatamente eu, mas não vem ao caso.

— Você poderia para de enrolar e me dizer onde quer chegar com isso? - perguntou Clair sem paciência.

— Bom, nós druidas somos conhecidos por sermos bastante instruídos e não é a toa que cuidamos da parte diplomática daqui de Valmees. Acontece que, por sorte, eu conheço um que estaria disposto a lhe ajudar com isso.

— É mesmo? E por que então não vamos vê-lo agora?

— Porque não quero interromper sua concentração. Melhor voltar ao que estava fazendo. - deu uma risadinha. - Mas se por acaso mudar de ideia, acho que você pode me acompanhar até minha casa.

Dahlia já havia virado às costas e estava quase chegando à porta, para se retirar do cômodo, quando Clair levantou-se abruptamente, pegando os livros, para fazer companhia à caçadora.

As duas jovens já tinham saído da casa do dona Ana e andavam devagar por entre as residências de Valmees. Clair não fazia ideia de onde estava indo e deixava Dahlia guiar o caminho.

— Então, para que vamos à sua casa? Vamos encontrar sua mãe ou algo do tipo? - perguntou Clair curiosa.

— Não. Minha mãe, não. - respondeu Dahlia de forma sucinta. - Ela não mora aqui.

Dahlia não era uma menina de poucas palavras e sempre que podia falava até mais do que devia. Assim, Clair percebeu que talvez fosse um assunto que não devesse insistir em continuar e deixou um silêncio se iniciar.

— Moro com meu pai. - continuou a caçadora, vendo que havia se criado um momento constrangedor. - Minha mãe se mudou para outra cidade. De vez em quando nos vemos.

— E por que ela se mudou? Aconteceu alguma coisa entre seus pais?

— Minha mãe não fazia parte daqui. Conheceu meu pai e se mudou, mas acho que nunca chegou a se adaptar à aldeia. Ela tentou aprender os costumes e até mesmo abriu uma pequena loja de plantas medicinais, porém não foi o suficiente. - a jovem mantinha uma voz calma enquanto narrava sua história ao mesmo tempo que tentava manter-se centrada. - Quando eu tinha uns seis anos, ela já não estava mais sendo a mesma. Isso aqui não era para ela e resolveu se mudar. Meu pai não quis e seguiram caminhos separados.

— Mas então você quem não quis ir com ela?

— Meu treino aqui começou bem cedo, tanto como caçadora quanto nas artes dos druidas. Quando tudo isso aconteceu, estava no meio do treinamento, e ela não quis interrompê-lo e sabia que estando com meu pai, eu estaria em boas mãos. E ela estava certa. - Dahlia pausou um momento para refletir e prosseguiu. - Ela costumava vir aqui muitas vezes para me visitar, porém engravidou logo e isso se tornou um pouco menos frequente. Alguns anos depois, engravidou mais uma vez e agora eu tenho duas irmãs. Muito difícil elas virem aqui. Sou eu quem vou lá quando tenho uma folga. O que também não é muito fácil, pois nunca se sabe quando uma missão vai aparecer.

— Entendo. - Clair não sabia o que responder. - Pelo menos você ficou com seu pai e tenho certeza que ele cuidou bem de você. Até porque, veja só, dá pra ver que aprendeu bastante coisa nesse tempo todo. - ela queria quebrar o clima daquela conversa, mas também não queria elogiar Dahlia a ponto de deixá-la mais convencida.

— É, acho que podemos dizer que sim. - e interrompeu seus passos. - Pois bem, chegamos.

A casa de Dahlia não diferia muito das outras residências de Valmees. O ar rústico predominava em todos os cômodos, que não eram muitos, porém o suficiente para acomodar as duas pessoas que ali habitavam.

Não tinham muitos móveis e, na pequena sala onde se encontravam, encontravam-se algumas cadeiras espalhadas de forma aleatória, uma pequena estante onde alguns armas de caça e ossos eram exibidos feitos troféus e, por fim, uma mesa recostada na parede perto de uma janela.

— Fique a vontade, que já vou ali avisar meu pai que você está o aguardando.

Clair colocou seus livros em uma das cadeiras e dirigiu-se a estante. Observou cada objeto atentamente, recordando-se que fazia o mesmo com os artefatos encontradas na loja de sua mãe. Assim como imaginava qualquer funcionalidade para objetos desconhecidos da loja, tentava adivinhar para que servia aquelas armas e de que tipo de criatura teriam saído aqueles ossos. Só conseguia ter certeza que eles deveriam ter algum tipo de importância para estarem expostos daquele jeito.

Queria poder tocá-los para observá-los melhor, mas sentiu que seria uma falta de respeito já que, afinal, não conhecia quem morava ali. Afastou-se, então, da estante e sentou em uma das cadeiras próxima de onde tinha deixado seus livros e ficou aguardando.

Não demorou muito para que Dahlia voltasse à sala acompanhada de seu pai.

— Então é você que está necessitando de meus conhecimentos. - disse o pai de Dahlia demonstrando simpatia. - Prazer, eu sou Cassius.

Cassius esboçava um leve sorriso.  Seus olhos eram escuros, tal como seu cabelo, e transmitiam uma mistura de bondade e o peso de quem havia gasto horas em busca de conhecimento. A pele vermelha amorenada podia ser notada nas suas mãos, os únicos membros que estavam expostos debaixo do longo robe acinzentado que usava. Era um pouco mais alto que sua filha, contudo mancava para o lado direito, onde se apoiava numa bengala.

— Não se preocupe, menina, pode deixar que não irei cair. - brincou Cassius percebendo que Clair não desviava o olhar enquanto ele andava.

— Ah, me desculpe! Não foi minha intenção. - respondeu Clair sem graça.

— Não é você quem precisa se desculpar, e sim a pessoa incompetente que deixou isso acontecer. - retrucou Dahlia com um toque de irritação.

Clair ficou sem entender a resposta de Dahlia e muito menos o motivo da mudança repentina no humor da garota, mas também preferiu não perguntar para não alongar a situação.

— Foram apenas ossos do ofício. Um pequeno acidente enquanto eu trabalhava. - explicou

— Um pequeno acidente que poderia ter sito evitado por pessoas mais habilidosas. Por essas e outras razões que eu prefiro trabalhar sozinha! Ter que fazer meu trabalho e das outras pessoas é muito cansativo.

— Depois o senhor se recupera, não é mesmo? - perguntou Clair.

— Temo que não. Já fazem alguns meses.- e reparou no olhar de frustração da menina. - Mas não tem o que se preocupar! Tem muito serviço para um velho druida lesionado aqui e isso tem me mantido muito ocupado e sem tempo para pensar no ocorrido.

— Se não se importa, como foi o que isso ocorreu?

— Em versão resumida, - Cassius sabia que tal história provocava irritação na filha, então quis evitar maiores danos. - estava servindo de acompanhante numa caçada proposta por outro vilarejo para poder acertar todos os relatórios finais. Tudo ocorreu muito bem e estávamos voltando para Valmees, quando fomos atacados por uma criatura. Digamos que, por uma falta de mira, acabei sendo acertado na perna. E, bem, aqui estou.

— Assim como podia não estar de forma alguma. - rebateu Dahlia.

— Mas não foi esse o caso, não é mesmo? Assim como não é por minha história de vida que vocês duas estão aqui agora. Pois bem, o que tem a perguntar?

Clair pegou o livro em branco que estava na cadeira e o levou até Cassius. Ele analisou o revestimento do livro e abriu-o para verificar seu conteúdo. Exibiu uma expressão de confusão ao notar que todas as páginas estavam em branco, porém não demorou muito para mudá-la para uma de quem já tinha noção do que estava em sua frente.

— Primeiramente, onde foi que você conseguiu isso? - perguntou Cassius curioso.

— Minha mãe me deu de presente assim que deixei Awalles. Nunca tinha visto algo assim antes e, provavelmente, é da loja de artefatos que ela tem.

— E de que tipo de linhagem mágica você é? Feiticeiros, bruxas...

— Fadas! - interrompeu Dahlia. - Mas não acho que ela possa falar muito sobre isso.

— Interessante. - respondeu o pai ao mesmo tempo que lançava um olhar de reprovação pela intromissão. - Como alguém não sabe falar sobre a própria linhagem que ajudou a criar a proteção da cidade que mora?

Clair se absteve e preferiu não responder a pergunta. Ela tinha a impressão que a todo momento estava sendo julgada por não conhecer pontos da sua vida, vistos como cruciais por outras pessoas. Não era como se ela não tivesse curiosidade sobre o assunto, mas nunca achou que isso seria tão necessário e fundamental repentinamente.

— Isso não vem ao caso agora. - continuou quando percebeu que um silêncio não agradável havia tomado conta do cômodo. - Isso é o que podemos classificar como um grimório.

— Mas isso não significa que deveria ter algo escrito nele? Feitiços, poções, criaturas. Qualquer coisa desse tipo, não é mesmo? - questionou Clair.

—  Você não deixa de estar certo, menina. Porém esse é um em sua forma inicial. - explicou. - Falando como pai, creio que sua mãe tenha lhe dado para que você pudesse dar início às suas próprias experiências.

— E ela não poderia ter me falado isso logo de início? - Clair demonstrava um pouco de indignação.

— Novamente falando, talvez ela quisesse que você descobrisse isso sozinha. Adquirir novos conhecimentos faz parte da vida. Cabe a você, agora, a saber como irá preencher as páginas do seu livro. Se serve de alguma coisa, encare-o como um diário pessoal. - e entregou o grimório de volta a sua dona.

— Se me permite opinar, por que não começa escrevendo sobre seu caminho da sua cidade até aqui? Pode não ser muita coisa, mas acho que serve de início, não? - sugeriu Dahlia.

— A ideia parece boa mas, o que eu vou falar sobre isso? Foi tudo tão simples.

— Não despreze suas experiências! - repreendeu Cassius. - Há algo de complexo na simplicidade. Além disso, deixe que o livro se encarregue disso. Ele saberá filtrar o que deverá estar contido nele. Deixe-me te ajudar.

Cassius conduziu Clair até a mesa próxima à janela. Colocou o livro fechado sobre ela e pediu para que a menina pusesse suas mãos em cima da capa do livro.

— Agora concentre-se nos acontecimentos desde que saiu lá de Awalles.

Clair demorou a conseguir de concentrar, porém aos poucos foi conseguindo focar nos acontecimentos. Pensava nos fatos isolados e como se encaixavam um com os outros. Tentava enxergar a importância deles para ela e no que eles eram responsáveis por aquele momento. E, quando menos esperava, um pequeno brilho começou a ser emanado pelo interior do livro e esvaiu-se lentamente.

Apesar de ansiosa para ver o resultado, Clair hesitou antes de finalmente tomar coragem para abrir o livro e ver o que tinha sido transferido para ele.

Na primeira página, encontrava-se a figura de um leontropo, que Clair imaginou que nunca teria sido capaz de desenhá-la sozinha. Logo ao lado, estavam escritas informações sobre a criatura felina, e até mesmo um pequeno mapa da floresta mostrando o melhor caminho para chegar até Valmees.

O conteúdo da página seguinte provocou uma reação de espanto. A figura exposta causava repulsa em Clair e ela jamais esqueceria aqueles olhos. Os últimos olhos que ela tinha sido obrigada a enxergar antes que tivesse perdido sua consciência. Pertenciam a alguém que ela pretendia encontrar e fazê-lo sentir-se tão impotente quando ele a tinha feito parecer.

Cassius notou a alteração no humor de Clair e aproximou-se para ver o que tinha acontecido. Viu a figura de um homem e ficou sem entender o motivo do espanto da menina.

— Quem é?

— Foi ele quem sequestrou minha amiga. Ele é o motivo de eu estar aqui agora! - Clair adotou um tom de voz mais alto.

— Agora faz sentido. - respondeu Cassius. - Recebemos um aviso com a descrição do sujeito, mas agora acho que temos uma visão bem melhor do que estamos procurando, não é mesmo. Pelo lado positivo, você acabou nos ajudando.

— Deixa eu ver quem é esse cara! - Dahlia se posicionou à direita de Clair e foi a vez dela de exibir uma expressão de espanto. - Não pode ser!

— O que houve filha? - perguntou preocupado.

— Uns dias antes de eu encontrá-los na floresta... - fez uma pausa. - Eu o encontrei perdido e o guiei para fora, em direção à Awalles. Acho que acabei ajudando quem não devia.

Naquele instante, após a declaração de Dahlia, um clima de tensão tomou conta daquela sala. Clair estava sem reação e não sabia se consolava Dahlia ou a culpava. Cassius compartilhava os sentimentos da filha, e entendia o que Clair estava pensando. E, por fim, Dahlia desconstruía toda a sua personalidade irônica ao assumir um sentimento de culpa por um ato que ela julgava ter sido bom.

E os olhos do desenho de Artie encaravam os três como se, mais uma vez, tivesse conseguido deixar todo mundo se sentindo impotente.


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