Murmúrio do tempo escrita por slytherina


Capítulo 3
A grande pestilência


Notas iniciais do capítulo

"O assassino acordou antes do amanhecer, ele pôs suas botas. Ele retirou uma foto da antiga galeria. E andou pelo corredor. Entrou no quarto em que sua irmã vivia, e ... então ele ... visitou o seu irmão, e então ele ... ele andou pelo corredor, e ... e ele veio até a porta...e ele olhou para dentro." The end - The Doors



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/606393/chapter/3

1.


Um certo dia, dez anos depois de sua chegada naquele reino distante, Cardotyn era um homem feliz. Sua esposa Dílesh continuava bela e amorosa. Ela havia lhe dado cinco esplêndidos filhos, que o obedeciam, eram espertos e saudáveis. Eles tinham animais suficientes para conseguirem lavrar as terras do rei, e serem recompensados pelo trabalho.


Ele ensinava os filhos a ler e escrever em sua língua natal, basicamente para ler seus próprios escritos. A cultura de sua esposa era transmitida por tradição oral e o contato com os aldeãos no dia a dia. Ele ainda procurava passar adiante seus conhecimentos de ciências e filosofia, sem entrar em conflito com os aldeãos.


– Cardotyn, você precisa ouvir isso. Venha! - Dílesh irrompeu na cozinha, chamando o marido para acompanhá-la.


Cardotyn seguiu-a no mesmo instante. Seguiram até uma estrada adiante, onde um mercador de quinquilharias estava parado, oferecendo coisas de sua carroça. Havia uma pequena multidão cercando-o. Todos o ouviam concentrados.


– Eu vi com esses olhos que a terra há de comer. Eu ouvi com esses ouvidos treinados com os lobos da floresta. E eu lhes dou minha palavra de honra, de que tudo que eu digo é verdade. Lá nas terras do sem fim, nas terras da velha Francia e da velha Germania. Eu vi "Ankou" chegando, trazendo consigo sua carroça fantasmagórica e friorenta. Apenas o som daquele carro maléfico me provocou calafrios. Eu vi "Ankou", meus amigos, o ceifeiro da morte. Eu vi "Cu Si", seu cão endemoniado, guardador dos portões dos infernos, e ele estava raivoso. Eu o vi dilacerando as carnes de aldeãos, nobres e clérigos. E sua fome nunca era aplacada.


Uma das pessoas da multidão deu um gemido e desmaiou. Ela foi retirada dali e levada para sua casa.


– O que significa tudo isso? Devemos pegar em armas para matar "Ankou" e "Cu Si"? - Um aldeão perguntou.


– Não adianta. Você não pode matar o que está morto. - O mercador respondeu.


Houve uma comoção e um "Oh" se ouviu em uníssono.


– Eu lhes digo, não há escapatória da grande pestilência. Ela mata quase tão rápido quanto as pragas do Egito. - O mercador falou com sua voz grave.


Houve nova comoção.


– Como é essa doença?


Todos se viraram para ver quem falara. Cardotyn continuou encarando o mercador e repetiu a pergunta.


– Como são os sinais dessa doença no corpo das pessoas?


– A grande pestilência causa todos os malefícios nas pessoas. Desde grande diarréia com sangue, febre tão alta que ferve os miolos e faz espocarem bolhas de fervura na pele, até grande quantidade de vermes nos buchos, bocas e ânus.


– E o que mais?


– Perdoe-me, mas há crianças e senhoras aqui, não posso contar detalhes tão fortes, pois poderão desmaiar de horror como aquela outra.


– Conte-nos, queremos saber tudo. - Uma voz feminina se elevou, seguida de outras pedindo a mesma coisa, até virarem um coro impaciente.


– Tudo bem, tudo bem, eu conto. Mas não digam que eu não avisei. A doença também faz as pessoas sangrarem pela boca. Ela vomita bile e sangue. Sua respiração fica difícil pois sai maus humores pútridos de seus narizes, até todo o seu corpo sangrar pela boca e nariz. E não é só isso. Você fica negro. Sim, você fica negro. Suas mãos e pés ficam negros. Manchas negras cobrem seu corpo, enquanto seus olhos ficam vermelhos e sua boca e língua ficam negros.


– Bruxaria! - Alguém gritou, e logo fêz-se coro.


– E o que mais? - Cardotyn insistiu.


– Você ainda quer mais, seu pagão? Já não basta o que lhe contei?


– Não basta. Eu quero saber mais.


– Pois bem, eu lhe darei mais detalhes nauseantes e macabros, que farão você vomitar seu almoço e não conseguir dormir à noite. Atenção, senhoras e senhores, tapem os ouvidos, pois o que irei falar é ... tenebroso. - Falou o mercador saboreando a última palavra como se fosse néctar em sua língua.


Todos fizeram silêncio e ninguém tapou os ouvidos. Todos ficaram olhando para o mercador esperando o golpe final.


– A grande pestilência também produz ... bolas. Grandes bolas ou bulbos cheios de pus, em todo o corpo, principalmente atrás dos joelhos, nas dobras dos cotovelos, nos pescoços, e ... no sexo.


Ouviu-se um novo "Oh" que fez com que todos ficassem muito excitados. Todos falavam ao mesmo tempo e alguns exaltados gritavam "bruxaria", e outros gritavam "castigo de Deus".


– Não se desesperem, pois eu tenho a cura da grande pestilência para vocês, e está aqui: "O vinagre dos quatro ladrões", e ele vale apenas 20 cunhas. - O mercador passou a vender sua beberagem, e em breve seu estoque se esgotou.


– Cardotyn, dê-me 20 cunhas para que eu possa comprar o remédio. Cardotyn! - Dílesh o sacudia e tentava chamar sua atenção, mas ele parecia estar em outro mundo, com o olhar parado, sem realmente vê-la ou ouvi-la. Ela desistiu de tentar chamar sua atenção e correu para sua casa, para pegar dinheiro.


2.


A mente de Cardotyn deu um salto no tempo. Ele de repente se viu em uma grande sala, tipo um auditório, em ambiente refrigerado, apinhado de estudantes prestando atenção a um homenzinho lá em baixo, diante de um quadro branco, dando aula de história. "A grande pestilência" estava escrito no quadro branco. De repente o ambiente ficou escuro e uma tela se iluminou lá embaixo. Imagens de pessoas doentes foram reproduzidas. Cada um dos slides remetia exatamente à descrição do mercador. O tema daquele painel era "a peste".


Cardotyn lentamente foi retomando o controle de suas faculdades mentais e de seu corpo. Ele se viu mais uma vez na aldeia que circundava o castelo de Llewlyn, na região chamada Merthyr, na idade média. Ainda tonto, confuso e algo inebriado, ele procurou uma árvore e sentou-se a sua sombra para refletir.


Ele viu quando sua mulher veio trazendo suas economias para comprar a beberagem do charlatão e nada fez para impedir. Viu quando o homem aumentou o preço do remédio e informou a mulher e mais um punhado de aldeões de que iria fabricar mais remédios e de que deveriam voltar no dia seguinte com o dinheiro. Os últimos aldeões se afastaram tristes.


Mais tarde naquele dia, os sentinelas do rei vieram buscar o mercador para apresentarem-no aos nobres. Provavelmente mais clientes exigiriam sua beberagem. Cardotyn não se importou com isso. Não fez mais nenhuma tarefa naquele dia, apenas foi para sua casa e passou o resto do dia ensimesmado e acabrunhado.


– Cardotyn, Cardotyn! Anime-se, homem! Depois que eu comprar o vinagre do mercador estaremos salvos. Não fique assim desesperançado. Não iremos morrer. - Dílesh tentava animá-lo.


– Dílesh... eu venho de ... um local onde nós já tivemos essa doença. Ela é mortal e a cura é difícil. As pessoas irão morrer. - Cardotyn falou desesperançado.


– Você... você conhece essa doença?


– Sim.


– E o que temos que fazer para tratá-la? Podemos ficar curados com o vinagre do mercador?


– Não. Precisamos de antibióticos, mas isso não existe aqui.


– Então, onde podemos conseguir esses anti...?


– Somente na minha terra. Quero dizer aqui ... aqui há os elementos e recursos para manipulá-los, mas eu não sou farmacêutico. Eu ... eu não sei como fazê-los.


– Então... então, Cardotyn, você deveria voltar a sua terra para trazer-nos estes remédios. Se eles podem nos salvar da grande pestilência, é o que você deve fazer. - Dílesh falou com lágrimas nos olhos.


– O problema, minha querida Dílesh, é que eu não sei como voltar pra lá. - Cardotyn abraçou a esposa e beijou sua cabeça.


– Você não lembra como chegou até aqui?


– Eu acordei certo dia na floresta. Tinha um ferimento na cabeça e não sabia como havia chegado até ali. Segui pelo caminho de terra até chegar aqui. Não saberia como chegar a minha terra.


Ela se afastou e foi até um amontoado de objetos em um canto da casa. A velha bolsa de seu marido ainda estava lá. Ela a trouxe e a abriu, retirando os objetos do seu interior: Um saco plástico, flares, uma faca e uma bússola.


– Cardotyn, eu sempre estranhei esses objetos, porque parecem jóias e brinquedos, coisas que não me servem, mas agora preciso que me diga o que são. Talvez possam ajudar a dizer de onde você veio.


Cardotyn a olhou e depois aos objetos.


– Isso não vai me ajudar. Você vê, Dílesh, eu tenho memórias esparsas da minha terra, mas não tenho idéia de como chegar lá, porque eu não sei como cheguei aqui.


Ela continuou encarando-o esperando respostas.


– Isso é uma bússola. Ela ajuda a mostrar o caminho, pois sempre aponta para o norte. Estes são flares, eles iluminam a escuridão. Este é um saco que serve pra carregar coisas.


– Eu nunca te vi usando essas coisas.


– Eu usei durante minha caminhada até aqui.


– Pode me mostrar como usar? A não ser que seja proibido para mulheres.


– Não é proibido. Eu te ensino.


Cardotyn resolveu falar com seus soberanos para alertá-los sobre a doença, mas como o rei estava ausente do castelo, não quiseram recebê-lo, cabendo ao aldeão reunir-se apenas com seus amigos e companheiros de trabalho.


– Quero lhes falar sobre a grande pestilência. - Cardotyn começou.


– Já compramos o remédio do mercador.


– Isso não serve.


– Por que ele iria nos vender, se não servisse?


– Por ganância? Bem, isso não importa. O que eu quero lhes dizer é mais importante.


– E quem é você para falar sobre pestilência? Acaso já foi curandeiro?


– Não! Mas de onde eu vim, eles já enfrentaram a grande pestilência. Vou lhes contar o que houve na minha terra, para ajudá-los a enfrentar esse problema quando ele chegar aqui.


– E de onde você veio?


– Vim de um lugar chamado Miami. É muito, muito distante daqui.


– E como você chegou aqui?


– Eu não lembro. Sofri um acidente na minha chegada e eu não sei mais voltar pra casa.


– E como vamos saber se não foi você quem trouxe essa doença pra aqui?


– Porque já faz 10 anos. Se eu estivesse com a doença já teria morrido, e toda a aldeia já teria morrido, também.


– E qual é o remédio para essa praga?


– Eu ... eu não tenho o remédio, e não sei como consegui-lo, mas posso ensiná-los a se prevenir. Vejam, a grande pestilência é causada por pulgas.


Todos riram atrapalhando a explanação de Cardotyn.


– É sério! As pulgas trazem a doença para o nosso corpo.


– Então toda a minha família estará morta amanhã, por que temos muitas pulgas lá em casa. - Alguém gritou.


Cardotyn nada respondeu. A sala ficou quieta.


– Vocês terão que matar as pulgas. E principalmente matar os ratos, pois os ratos trazem as pulgas.


– E como faremos isso?


A conversa a seguir resvalou sobre métodos de extermínio de ratos. E quando todos já haviam dado dois dedos de prosa, contando casos de encontro de ratazanas do tamanho de gatos, Cardotyn resolveu falar sobre os doentes.


– A queles que tiverem contatos com os doentes pegarão a doença também. É necessário que as pessoas, que forem tratar de um doente da grande pestilência, lavem constantemente as mãos, para que elas não fiquem com a doença em suas mãos. Teremos que construir uma grande casa, onde colocaremos os doentes, e escolheremos pessoas para cuidarem desses doentes. E essas pessoas deverão banhar-se todos os dias, e afastarem-se da família também, para não levarem a doença a suas famílias. E o principal conselho de hoje. Devemos fechar os caminhos para o castelo, para que nenhum estrangeiro venha para nossa aldeia, trazendo a doença.


– Mesmo os mercadores?


– Sim.


3.


Todos fizeram como lhes foi orientado. Logo um grande galpão foi construído, ao qual chamaram "Casa de Cardotyn". Eles selecionaram algumas velhas mulheres para serem treinadas por ele no trato da grande pestilência, e elas não entenderam por que ele exigia tanta limpeza e banhos constantes, como se a doença em si já não fosse suja.


Sua esposa ainda lhe falava que ele deveria voltar para sua terra, para conseguir ajuda, mas ele não sabia como. Os sentinelas do castelo agora guardavam os portões reais fechados, e lá adiante, um grupo de três aldeãos afugentava quem tentasse rumar para lá, independente de ser andarilho, clérigo ou mercador, mas a um carro tiveram que dar passagem, a carruagem real, que também passou facilmente pelos sentinelas dos portões.


– Cardotyn, venha rápido! - Um aldeão veio chamá-lo.


– O que houve? - Disse Cardotyn levantando-se rapidamente da mesa onde estava ceando com a família.


– Pedem sua presença no castelo. Algo aconteceu, é muito grave.


Cardotyn rapidamente foi ao castelo e foi-lhe franqueada passagem aos aposentos reais. Lá ele encontrou um pajem e uma criada, além de dois sentinelas. O rei estava estirado em seu leito real, com a boca suja de sangue, as mãos negras e manchas amarelas em suas roupas.


Instintivamente, Cardotyn colocou a mão no rosto e logo depois improvisou uma máscara para seu nariz e boca a partir de tira de pano de sua túnica. Pediu que tirassem a roupa do rei para que pudesse procurar os sinais da doença, embora ele não tivesse dúvidas de que fosse a peste. Exigiu que todos ali e quem mais tivesse contato com o rei, que lavassem as mãos e se banhassem, se possível.


O rei estava febril e o encarava.


– Quero saber a verdade. Você pode me curar, Cardotyn?


– Não, majestade.


– Eu vou morrer?


– Sim.


– Então pra que se ocupa em mandar essas pessoas a banhar-se e lavar-se, se não podes salvar teu rei?


– Porque a doença se alastraria e todos nesta aldeia e castelo morreriam.


– Mesmo minha família?


– Sim, majestade.


– Proteja-os, sim?


– Sim, majestade.


– Quero que tomes conta de mim até minha morte.


– Sim, majestade.


E foi assim que Cardotyn se tornou o curandeiro do rei, ainda que por pouco tempo. Depois da morte do rei, seus empregados diretos e suas famílias adoeceram, mas foi só. Nunca antes apareceram tantos ratos mortos naquela região, e todos sem exceção passaram a se banhar e a retirar pulgas de sua casa. Alguns resolveram fazer bom uso do vinagre do mercador, passando-o no corpo, para afugentar pulgas, pois era um vinagre fedorento.


Logo, Cardotyn ficou responsável por seu pequeno hospital e passou a dar algum conforto aos doentes que foram aparecendo. Ele evitou voltar para sua casa, e aquele local de trabalho ficou sendo também a sua morada, pois ele temia contaminar sua família. Sua esposa e filho até iam lá para falar com ele, mas ele negava qualquer contato físico.


As estradas continuavam fechadas, e mais nenhum estrangeiro conseguiu entrar naquele lugar, nem mesmo outros nobres. A todos era informado que o local havia sido tocado pela grande pestilência, por isso não era um local seguro.


Certa manhã, Cardotyn foi chamado para ver mais um doente de peste que chegara ao pequeno hospital. Ele sentiu o chão lhe faltar, ao ver que a doente era sua Dílesh.


Ele a tratou com infinita doçura e procurou pelos sinais da doença em seu corpo. Foi com lágrimas nos olhos que ele viu os bulbões. Drenou-os e colocou panos limpos sobre os ferimentos. Ela morreria em questão de dias.


– Dílesh, onde estão as crianças?


– Estão com o Bom Wallach. Elas não estão doentes, nem têm pulgas. Eu não sei como peguei essa doença, pois nem perto do meu marido curandeiro eu fico.


– Sinto muito, eu não queria contaminá-la.


– Eu sei! Eu sei que se você pudesse, você iria até sua terra, trazer o remédio pra mim.


Ele ficou fitando a esposa calado, enquanto uma idéia ia se formando em sua cabeça. Ele chamou sua ajudante e a ensinou a fazer o curativo dos bulbões, tendo o cuidado de lavar as mãos em seguida. Depois ele resolveu que iria tentar salvar sua esposa. Banhou-se, trocou de roupa e apanhou sua antiga bolsa de viagem. Pegou um cavalo emprestado de um vizinho e saiu das terras do latifúndio.


No portão do castelo eles estranharam que se retirasse naquela hora da noite, mas não o impediram. Cardotyn resolveu evitar o confronto com os aldeãos na estrada, pois esses não entenderiam sua partida, e o motivo que o levava a se afastar de suas responsabilidades e de sua esposa doente. Com sorte sua viagem duraria no máximo três dias, em vez dos sete dias de caminhada.


Ao fim do terceiro dia ele chegou ao local demarcado com uma cerca de paus podres e três árvores mortas ao centro. Ele se espantou, mas raiciocinou que isso era o esperado após dez longos anos. Fez uma fogueira e começou a cavar. Antes do amanhecer já havia desenterrado o ôvo metálico. Abriu sua porta e entrou no estranho objeto.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Murmúrio do tempo" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.