Murmúrio do tempo escrita por slytherina


Capítulo 2
Cardotyn e Dílesh


Notas iniciais do capítulo

"Presta atenção em tudo que a gente faz. Já somos mais felizes que muitos casais. Desapega do medo e deixa acontecer. Eu tenho uma proposta para te fazer: Eu, você, dois filhos e um cachorro." Cê topa? - Luan Santana



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1.


No verão a temperatura ficou amena, com ondas de calor e chuvas frequentes. O homem do ôvo metálico passou a ser mais um agregado do castelo, sendo alimentado pelo povo, apedrejado pelas crianças e maltratado pelos sentinelas. Ele passou a ser designado como "Cardotyn", e este ficou sendo seu nome.


Ele ainda tinha sonhos em que vivia em cidades cheias de luzes coloridas, carros velozes, aviões, navios e outros aparelhos eletrônicos. Não dava mais tanta importância a isso. Ele não tentava falar a língua daquele povo, pois as pessoas acabavam rindo dele e tentavam calar sua boca, porque ele não falava corretamente, mas ele conseguia entendê-los.


Havia uma mulher naquela comunidade que era amistosa e intensa. Ao menos assim lhe pareceu. Ela o olhava, como se pudesse ler na sua alma. Não ria e nem tentava transformá-lo em palhaço do povo, como todos os outros. Quando lhe dava comida, ela prestava atenção na sua reação, para ver se a comida era de seu agrado, e se ele estava bem. Tudo isso sem dizer palavra, mas ela falava com as outras pessoas. Ele ouviu quando a chamaram de "Dílesh". Ele passou a dizer o nome dela também.


Ele um dia pensou em voltar para o ôvo de metal, tentar viver de um modo diferente. O modo como ele vivia antigamente, naquela vida de seus sonhos mais antigos. Reuniu seus pertences: os flares, a bússola, a faca, o saco plástico com água. Suas roupas já estavam em frangalhos, mas não havia como substituí-las. Talvez um dia ele aprendesse a fabricá-las.


Ele se dirigiu ao portão real e os sentinelas o deixaram passar. Seguiu pela estrada de terra batida, em direção aos confins longínquos, calculando por volta de sete dias de caminhada até chegar ao ôvo metálico. A expectativa de viver sozinho era assustadora, mas o modo como vivia era degradante, não podia aceitar viver assim.


"Cardotyn!"


Alguém o chamou. Ele se virou e lá estava ela, a bela Dílesh. Ela estava ofegante.
"Cardotyn, não vá!"


O homem ficou calado. Sabia o que ela queria, mas ele não podia mais ficar. Três meses como o louco do povoado foram o suficiente para ele.


"Ruiul Fauar!" Ele disse na melhor imitação da língua dela, e que significava "Adeus".


"Fique, Cardotyn! Por favor!" Ela se aproximou e tocou nele. Fêz questão de por a mão no coração dele e depois no coração dela.


Ele fechou os olhos e acenou que não com a cabeça. Apontou o caminho da floresta. Queria que ela entendesse que isso era inadiável.


"Cardotyn, eu quero que seja meu marido. Fique!"


O homem ficou surpreso. Por um momento não soube o que fazer. Deixou-se ser guiado de volta para o castelo. Os sentinelas fizeram mangoça, quando os viram passar.


Dílesh o guiou até sua casa. Ela retirou sua bolsa com pertences, suas roupas esfarrapadas, e lhe deu uma túnica para vestir. A seguir preparou um caldo para que ele se alimentasse. Foi a primeira vez que Cardotyn foi tratado como ser humano, e isso o tocou. Após a refeição, ele foi tomado do torpor característico que a comida desse povo lhe provocava. Adormeceu em um canto da casa de Dílesh, aquela que o queria para marido.


Naquele mesmo dia ela raspou sua barba e lhe deu um banho de tina, não que ele fosse sujo, mas em comparação com a vida que ele via em sonhos, estava merecendo mesmo aquele banho. A seguir ela preparou uma cama com palha para que ele dormisse. Ele já estava envergonhado por ser tratado como um bebê ou um rei, por isso segurou a mão dela convidando que compartilhasse a dormida consigo. Ela o despiu e também tirou as próprias roupas, a seguir ambos deitaram e se abraçaram, para espantar o frio. Dormiram pacificamente.


2.


A notícia de que agora ele era o marido de Dílesh se espalhou como pólvora. As pessoas continuaram a tratá-lo como um tolo, mas com Dílesh eles eram mais generosos e apenas reviravam os olhos com risinhos maliciosos. Ela não se importava e parecia feliz. Ele resolveu ficar feliz também, por ela.


Tentava ajudá-la nas tarefas diárias, batendo leite para fazer manteiga, derretendo banha de animais para armazenar para o inverno, cortando lenha com um machado tosco, e cozinhando favas em um fogareiro. Ela lhe ensinava os rudimentos e ele tentava improvisar a partir daí. Nem sempre o resultado era o esperado, mas ele se dedicava com afinco na próxima vez, até ficar do gosto dela, e ela reconhecia seu esforço para acertar.


Certa noite ela buscou sexo e ele a satisfez. Somente depois ele pensou na possibilidade de gravidez, transmissão de doenças, etc. Chegou a conclusão de que não valia a pena se martirizar por sua situação. Afinal de contas, levando em conta tudo que já passara, tinha sorte por ainda estar vivo. Poderia ter morrido na chegada do ôvo naquela terra. Isso acendeu a antiga chama da inquietação de saber quem era e o que ele estava fazendo ali, naquele tempo, com aquele povo.


O tempo ... O tempo era uma variável intrigante. Não poderíamos voltar atrás, apenas ir para frente, ao preço do envelhecimento e a perda da vida. E lá estava ele, vindo de um tempo em que suas roupas eram compradas em lojas de departamento e sua cama era tecnologicamente adaptada ao seu corpo. Reduzido a usar túnica de algodão cru, tecida em casa, adormecendo em cama de palha, e sentindo-se eternamente grato a uma mulher que lhe ofereceu semelhantes coisas. Ele não pertencia a esse tempo. De que tempo ele viera afinal de contas? Só poderia ser do futuro.


3.


No inverno tudo se cobriu de branco. Dílesh engordou e somente quando sua gravidez estava avançada, foi que Cardotyn percebeu que seria pai. Ele ficou nervoso e com remorsos por ser tão descuidado, mas um só olhar sereno e feliz de Dílesh foi o suficente para ele esquecer suas preocupações, e deixar que a saúde e bem estar dela viessem em primeiro lugar.


As pessoas passaram a tratá-lo um pouco melhor, porque agora ele era um deles, e seria pai. Além disso, todos gostavam de Dílesh. Ele fez questão que ela descansasse mais e passou a cercá-la de cuidados, tais como preparar seu banho de tina, fazer sua comida e cortar a lenha para alimentar o fogareiro, para aquecer o ambiente. Ele se tornou mais carinhoso, cobrindo-a de beijos e até cantando as poucas músicas que conseguia lembrar de sua terra natal. Ela parecia apreciar tudo o que ele fazia por ela.


O bebê nasceu no verão. Era gordo e rosado. Quiseram afastar Cardotyn de sua casa, mas ele fez questão de assistir o parto, intrometendo-se em tudo que a parteira estava fazendo, inclusive fervendo água e trazendo panos limpos para a velha mulher. Ela chegou a ameaçar não realizar o parto de sua esposa, se ele não se retirasse, mas ele foi irredutível. No final aceitaram sua teimosia por conta de ser estrangeiro. Vai ver que na terra dele eram os homens que faziam os partos.


Ele chamou sua filha recém-nascida de "Elin", que naquela língua significava raio de sol. Dílesh gostou do nome. Ele suspeitava que sua esposa gostaria de qualquer nome que ele escolhesse, porque ela o amava. Sentir-se amado era bom, mas também lhe dava responsabilidades. Ele jamais poderia desapontá-la ou fazê-la sofrer. E essa responsabilidade se multiplicara, porque agora tinha mais uma mulher em sua vida, sua filhinha Elin.


Cardotyn por intermédio de sua esposa, pediu permissão ao senhor do castelo para plantar nas terras do soberano. Ele tinha sede disso, de ser útil e produtivo. Precisava mostrar a sua esposa que era um homem de valor, podendo lavrar as terras ao redor do castelo, e fazê-la produzir alimentos. Ele tinha certeza de ser capaz disso.


Com a boa safra e o pagamento generoso do soberano, ele adquiriu alguns animais: uma vaca, um cavalo, e uma cabra. Esperava multiplicar esse número, uma vez que sua família aumentara. Após um ano nasceu seu segundo filho, "Cassedy", que naquela língua significava inteligente. Em casa o homem era chamado por outro nome, "Davin", que ele veio a descobrir significava bem-amado. E ele retribuía esse amor da melhor maneira que podia, esquecendo-se de si mesmo e dedicando sua vida a sua família.


4.


Todos na comunidade passaram a apreciá-lo e pararam de fazer brincadeiras por causa de sua péssima pronúncia, de modo que ele passou a conversar mais com as pessoas. Como bom amigo, o aceitaram como ajudante para solucionar problemas locais, tais como retirar a neve do caminho, fazer barragens no lago, ajudar a matar animais selvagens, e consertar carroças quebradas. Ele ajudava como podia, fazendo de tudo um pouco. Sua família reconhecia que ele o fazia por gratidão, embora algumas pessoas ainda o tomassem por tolo.


O soberano a tudo era atento e passou a cumprimentá-lo quando de passagem pela comunidade, por seu espírito forte, grande resistência, solidariedade e bondade. Alguns vizinhos até ficaram com inveja, mas não conseguiram ir adiante com pensamentos venenosos. Dílesh costumava dizer que Cardotyn era um homem abençoado, e que ela era igualmente abençoada por ser sua mulher.


Ele ainda sonhava com sua terra natal e seu tempo de origem, mas a nostalgia e a vontade de voltar diminuíram, a ponto de ele chegar a se indagar se algum dia aquilo fora verdade, e não tão somente um sonho fantástico de uma tarde verão.
Ele tinha grande conhecimento, é verdade. Coisas como geografia, ciências e filosofia, mas nada daquilo lhe era útil em sua presente vida. Ele não saberia mesmo como explicá-las nesta língua estrangeira. Ele sabia escrever, mas o povo não sabia ler, então a única coisa que lhe restava fazer era esquecer.


Sua família era sua maior e única preocupação. Sua maior dádiva e fonte de felicidade. Ele tinha uma esposa adorável e digna. Filhos maravilhosos e perfeitos. Conquistara seu lugar nessa sociedade medieval, e todos o aceitaram como amigo e companheiro de trabalho. Até seu soberano o saudara como um cidadão honrado. Que mais um homem em sua posição poderia querer?


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