Murmúrio do tempo escrita por slytherina


Capítulo 1
O ôvo metálico


Notas iniciais do capítulo

"Fluxo constante, os pensamentos chegam como borboletas. Ele não sabe, então ele os afugenta. Ainda algum dia ele começará sua vida novamente. Mãos sussurrantes conduzem-no suavemente para longe. Pra longe, pra longe, sim, oh sim..." Even flow - Pearl Jam



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/606393/chapter/1



1.


Um raio no céu límpido anunciou um fenômeno raro. Um trovão e logo depois uma bola brilhante foi arremessada em direção à terra. Não era um meteorito, visto que não viera do espaço. Era mais como se o ar fino tivesse rasgado o véu da normalidade, e alguma coisa tivesse cuspido aquele caroço do lado de lá da irrealidade.


A esfera de metal atingiu a crosta da terra com surpreendente leveza, como se não pesasse nada, ou fosse menos denso que o ar. Entretanto, o impacto foi suficiente para deformá-la e abrir seu interior, revelando a criatura curvada em si mesmo. Um homem.


Ele era jovem e tinha uma barba rala. Seus cabelos lhe cobriam as orelhas e sua fronte apresentava um pequeno machucado por causa do impacto da chegada. Ele permaneceu desacordado pelo que pareceu horas. Teve sorte que nenhum outro ser humano o encontrara ainda, e os animais da floresta se mantiveram distante, como se adivinhando que aquele avatar desobedecia as leis da lógica e da natureza.


À noite ele acordou. Uma sensação de estranheza o envolveu. Ele não conseguiu se lembrar de nada de sua vida pregressa. Era como se houvesse nascido de novo, ali, naquele ôvo metálico, que se abrira com o impacto da queda. A queda. Ele caíra de onde mesmo? E o que era aquele ôvo de metal? Semelhante coisa lhe parecia tão estranha quanto a sua ignorância a respeito de seu passado.


Depois de procurar gravetos e produzir uma fogueira com a fricção de rochas, e assim aquecer-se na noite fria, ele passou a considerar uma estratégia de ação. Aquilo era estranho. Não se recordava como havia aprendido a fazer uma fogueira, havia agido por instinto. Outros pensamentos cruzaram sua mente, como o de fazer a fogueira distante da bola de metal, pois poderia provocar uma explosão. Explosão, curto-circuito, má função, gasolina, postos de gasolina, carros, carros de polícia, carros explodindo, filmes, televisão, uma mulher.


Então tudo desvaneceu na sua mente. Ele ainda tentou retomar o fio de suas lembranças, mas nada mais voltara. Seja lá quem ele fora no passado, ele assistira muitos filmes policiais na TV de sua casa. E aquela mulher deveria ser sua esposa. Talvez algum dia, ele conseguisse lembrar o suficiente para voltar para ela.


2.


Na manhã seguinte, ele foi explorar a floresta adjacente. Colheu frutas silvestres que comeu avidamente. Procurou por plantas tenras, cujos caules estivessem cheios de seiva para matar sua sede. Ainda pensou em improvisar um receptáculo para coletar água da chuva, mas um sexto sentido lhe dizia que não iria chover tão cedo. Ele sorriu. Não fora um sexto sentido e sim o formato das nuvens no céu, bem como a sensação térmica daquela manhã.


Foi com grande alvoroço que ele descobriu um regato em meio a vegetação. Colheu água com as mãos e bebeu sofregamente. A água era suja, mas era bem vinda. Depois de algum tempo ele percebeu que não estava sozinho. Um gamo e alguns esquilos também bebiam da mesma fonte. Deu graças a Deus por não ter encontrado um urso ou um grande felino por ali. Ele poderia ter sido atacado enquanto bebia despreocupadamente. Voltou para seu ôvo.


Passou mais uma noite sob a luz das estrelas, com sua fogueira e algumas frutas silvestres. Raciocinou que se algum grande animal viesse por ali, o atacaria, pois ele estava desprotegido em uma clareira, provocada por sua queda. Calculou qual a melhor maneira de se proteger. Por enquanto, fazer fogueiras teria que bastar, pela manhã poderia construir uma pequena fortaleza.


Na manhã do 3º dia ele construiu um pequeno cercado com pontas afiadas, o bastante para rasgar a barriga de animais de médio porte, mas não de um dinossauro. Ele se riu do pensamento. Os dinossauros estavam extintos há milhões de anos. Uma imagem cruzou a sua mente. Um dinossauro em seu tamanho real, ou ao menos seus ossos, no centro da sala de exposição. O período jurássico. Museu de história natural. Londres. Ele estava lá de pé, vestido em paletó, admirando a portentosa figura. Um barulho externo e a sua lembrança se dissipou.


Um barulho de coisas se quebrando e ele ficou alerta. Pegou uma das estacas que estava fincando no chão e se agachou um pouco longe da cerca. O barulho era na floresta, como se um trator estivesse derrubando árvores. Ele deveria sair de seu esconderijo e se aproximar daquele trator para pedir ajuda, mas um instinto de sobrevivência o fez ficar calado e à espreita.


O barulho parou. Ele ainda ficou por mais meia hora de prontidão, pronto para uma boa luta, ou sair correndo se necessário. Nada aconteceu. Pela primeira vez teve medo de ser encontrado. Não deveria, mas um medo irracional se alojou no fundo do seu estômago. Sentiu uma vontade crescente de se esconder e se proteger. Será que ele era um fugitivo da justiça?


3.


No 4º dia resolveu que iria explorar seus arredores até encontrar outro ser humano. Não deixaria a bola de metal exposta. Tratou de enterrá-la, e plantou algumas mudas de árvores sobre o local escolhido, marcando-o para que pudesse desenterrá-la se necessário. Que havia dentro da esfera de metal? Alguns aparelhos eletrônicos: um smatphone e seu carregador, um dispositivo para medir sinais vitais e seu carregador, um taser e seu carregador, um notebook e seu carregador. Sem estarem carregados eram inúteis. Deciciu deixá-los lá mesmo. Outros objetos ele levou consigo: uma faca, uma bússola, flares.


Ao se afastar do local da queda, deu uma última olhada. Com a cerca protetora em volta, e as pequenas mudas plantadas, aquele parecia um pequeno jardim ou um túmulo. Teve um insight ou um aviso de que jamais voltaria àquele lugar novamente. Sentiu que talvez, aquela esfera de metal fosse a única coisa que o ligasse a sua vida passada, a sua identidade. Isso lhe dava uma sensação de desesperança ou abandono. Decidiu ir embora assim mesmo.


Antes passou pelo regato para mitigar a sede, e encheu uma pequena bolsa de plástico com o líquido vital. Isso e o sortimento de frutinhas garantiriam sua sobrevivência por dois dias. Seguiu para o norte, acompanhando o fluxo do vento e a fonte de água, ou assim lhe pareceu. No 3º dia de caminhada resolveu descansar. Imaginou por que até agora não encontrara estradas ou rodovias, já que ouvira um trator tão perto de si. Por onde ele teria vindo, afinal de contas?


Após um dia de descanso, no qual reabasteceu seus suprimentos, ele seguiu sua caminhada. Dessa vez deu sorte e achou uma picada na floresta que o levou a uma estrada de terra batida. Logo, logo um carro apareceu. Só que não era um carro, mas uma carroça. Tentou falar com o carroceiro, mas ele não lhe deu atenção. E depois apareceu outro carroceiro, e mais outro. Ninguém o ouvia ou o enxergava. Será que ele havia morrido e não sabia?


Disposto a tirar essa estória a limpo, resolveu ficar no meio da estrada com os braços erguidos. Se ele fosse um espírito a carroça passaria direto por ele, sem o machucar. Se não fosse, aí então ele teria problemas mais sérios. Uma carroça veio chegando e ele ficou lá, plantado no meio da via, com os braços abertos. Antecipando o choque, ele fechou os olhos e virou o rosto. A carroça parou.


Ele então olhou para o milagre que produzira. Foi bem a tempo de se desviar da flecha disparada em sua direção. Logo mais outras flechas se seguiram, e ele não teve outra opção a não ser fugir pra se esconder no meio do mato. A carroça se foi. Ele suspirou aliviado. Não, ele não era um espírito. Estava bem vivo e disposto. E os carroceiros o matariam antes de ouvir qualquer pedido de ajuda. Resolveu fazer o óbvio: seguiu as carroças aonde é que iriam.


4.


O edifício a sua frente era imponente, um castelo medieval com tudo a que tinha direito: fosso, ponte levadiça, flecheiros e sinos nas torres de vigia, guardas armados com lanças nos portões principais. Todos estavam vestidos a caráter, como em uma feira medieval, ou em um jogo de LARP. Foi parado no portão.


"O que fazes aqui, ó rato de charnecas?"


"Hã?"


"Perguntei o que ... oh, és desmiolado. Que achas tu, meu bom Daltree?" O guarda perguntou para o outro sentinela.


"Ora, deixai passar o idiota, mais tarde podereis te divertir à custa deste pobre infeliz."


"Tens razão, colega."


E levou um chute do sentinela que o arremessou para dentro dos portões do castelo. Pensou em reclamar, mas uma olhada nas lanças que seguravam prendeu sua língua e ele achou melhor se afastar. Passou a explorar os arredores do castelo. Aquilo ali parecia surreal, como uma antiga pintura europeia, com aldeões vestindo roupas surradas, crianças sujas, animais amarrados, vendidos e esquartejados a céu aberto. Aqui e ali escutou o que falavam. Não tanto o que, mas como falavam. Uma mistura de sotaque arrastado e palavras antigas, como se ele estivesse escutando galeses nascidos na Jamaica. Ou vice e versa. Não era uma língua difícil de entender, mas com certeza difícil de imitar. O melhor mesmo seria fingir-se de doente mental, como o sentinela o fez parecer.


Ficou esperando encontrar algum sinal de realidade, com alguém gritando "isso é uma pegadinha" mas nada disso aconteceu. Não havia energia elétrica, nem banheiro público. Não havia carros ou fiações. Nada que lembrasse uma existência normal do século 21, mas sim a acre e dura vida do século 12. Um pensamento cruzou sua mente, mas isso era impossível. Esse tipo de coisa era impossível. Sacudiu a cabeça para espantar essa ideia, murmurando "não, não, não".


Escutou crianças rindo a sua volta. Alguns deles apanharam pedras e ele começou a correr antes de se dar conta. As crianças correram em seu encalço. Ele concluiu que os doentes mentais nesta comunidade levavam uma existência terrível.


Mais tarde ele se aproximou das pessoas e juntou as duas mãos na frente, como se fazendo uma concha. Esperou que alguém entendesse que ele queria comida. Alguns reagiram mal, apanhando paus para lhe bater, nessas horas ele corria, para reiniciar novamente a pedir comida. Foi com grata surpresa que ele viu alguém colocar um pedaço de pão em suas mãos. Ele olhou para cima e viu uma velha desdentada sorrindo para si.


"Obrigado" ele murmurou e correu para comer seu pão em paz. Encontrou uma árvore frondosa e sentou-se à sua sombra. Aquilo era sobreviver como um animal. Ele teria mais sorte se voltasse para a floresta e cultivasse frutas e verduras para sua sobrevivência, longe daquelas pessoas cruéis. Talvez porque estivesse exausto da viagem, ou talvez porque o pão teria sido envenenado pela madrasta da Branca de neve, ele foi tomado de langor e um sono profundo o arrebatou.


Sonhou que estava no ôvo de metal e que ele se abriu em plena avenida movimentada, com letreiros de neon a sua volta. E ele sorriu extasiado porque havia voltado para casa.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Murmúrio do tempo" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.