Além de Irmandade escrita por Dricca


Capítulo 4
Cinzazuis




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Acordei dolorido vendo Daniel no banco da frente, com a cabeça virada para trás apoiada no encosto; ele não estava com o terno dele: apenas com a camisa branca, os primeiros botões abertos e a gravata frouxa.

Quando apoiei as mãos no banco para levantar, senti um perfume familiar e um peso aconchegante sobre minhas costas, imediatamente olhei para mim mesmo: eu estava coberto com o terno de Daniel, o perfume era o dele. Se eu não estivesse um pouco afetado pela bebida, ficaria impressionado com o gesto dele. Mas naquele momento só consegui achar aquilo docemente gentil e nada além.

Sentei no banco de madeira e senti minha visão dar voltas. Daniel percebeu que eu já estava acordado e ergueu a cabeça, olhando para mim.

— Por quanto tempo eu dormi? — perguntei olhando para os lados, perdido no tempo; cheguei a cogitar se a festa não teria acabado e se todo mundo não tinha ido embora, nos deixando para trás sozinhos.

— Uns quinze minutos — Daniel falou incerto. — Meia hora talvez... — ele coçou a cabeça. — Não sei, tô meio bêbado.

— Vamos voltar — tirei o terno de cima dos meus ombros e o estendi para Daniel; não queria que ele ficasse a mercê do vento da noite por minha causa. — Tá muito frio aqui.

— Ok — ele se levantou, tomou o terno das minhas mãos e o vestiu.

Quando firmei os pés no chão quase caí. Fiquei tão tonto que foi como se a força da gravidade tivesse aumentado de repente, me puxando para o chão. Segurei nas grades do coreto e, depois de respirar fundo, sugeri ao Daniel que fizéssemos uma parada no banheiro. Precisava jogar um pouco de água fria no rosto e esperar que minha fraqueza para bebida não acabasse em vômito.

Depois disso, antes ainda de voltarmos para a nossa mesa, Daniel e eu pegamos algumas garrafas de água no bar. Seria péssimo se Amora ou meu pai percebessem que nós estávamos bêbados, mesmo que não muito, porque eles realmente não eram do tipo que relevavam esse tipo de coisa, então era melhor ingerir a maior quantidade de água possível para eliminar todo aquele álcool do corpo o quanto antes.

— Tô mal — falei quando já estávamos os dois sentados à mesa, sentindo meu estômago revirar e uma sensação de queimação me afogar pelo esôfago.

— Não mandei você beber tanto — Daniel tomou um gole d’água.

Sem ligar para ele, varri o salão com os olhos. Ainda havia uma grande quantidade de gente andando de lá para cá ou simplesmente comendo doces e conversando animosamente nas mesas.

— Daniel? — chamei, olhando para ele.

— Quê? — ele estava mexendo no celular, os olhos grudados na tela.

— Pra quê a gente foi inventar de beber, afinal?

— Pra passar o tempo — ele deu de ombros.

Bufei. Aquilo tinha sido realmente muito idiota, ficarmos bêbados num lugar onde não tinha nada para fazer. Meus dedos tamborilavam na mesa, eu estava ansioso, precisava desperdiçar aquele álcool que corria nas minhas veias com alguma coisa interessante.

Volvi os olhos para a pista de dança. As luzes piscavam rápidas demais para o meu estado de lentidão, me deixavam um pouco tonto, mas ao mesmo tempo me faziam sentir vontade de mergulhar naquelas cores. Um tipo de música eletrônica esquisita tocava, e reconheci apenas alguns dos meus tios bêbados dançando, dando gargalhadas para o nada, com outras pessoas que eu não conhecia, e que eles também não, provavelmente. Estavam cheios daquelas tralheiras de perucas e pulseiras neon e colares piscantes que são distribuídas nesse tipo de festa.

Levantei num impulso e puxei Daniel para pista de dança comigo. Mal tive tempo para pensar nos meus próprios gestos ou na reação dele, só sabia que queria dançar, encontrar algum motivo bobo para rir, me sentir um pouco mais tonto daquele jeito, para que ter bebido não tivesse sido em vão. Deixei que a música entrasse fundo na minha cabeça, e dancei como fazia quando me trancava em meu antigo quarto para pintar, quando olhava àquela tela em branco e colocava uma música qualquer, só para que eu pudesse mexer meu corpo dentro de algum ritmo, sentir as cores saindo do pincel como se fossem meus próprios dedos.

Daniel não dançava como eu, ficava prestando atenção onde punha os próprios pés, daquele jeito idiota que os garotos dançam música eletrônica. Ele, na verdade, estava era preocupado em olhar engraçado para mim, com uma expressão diferente, como se achasse divertido eu estar tão solto assim.

Eu já ia brigar com ele por causa disso quando, repentinamente, a nossa música eletrônica esquisita terminou num emendo com o início de outra música, muito mais agitada. Eu conhecia aquele som de algum lugar, e percebi que todos os convidados também, porque foram se levantando de suas mesas conforme a musica ia ficando mais familiar, e de repente eu e Daniel estávamos espremidos no meio de um mar de pessoas, todas empolgadas pelo ritmo da música. Fiquei confuso, eu nem sabia que ainda havia gente suficiente na festa para que a pista pudesse ser preenchida daquela forma.

— Que porra de música é essa, que deixou todo mundo desse jeito? — olhei com o cenho franzido para Daniel, tentando falar mais alto que a música, enquanto alguém fazia “o favor” de me empurrar contra ele.

Daniel apenas deu risada enquanto me segurava para que nós não caíssemos por causa do empurrão. Segurou meus braços e não soltou mais, começou a movimentá-los conforme as batidas da música.

— É Macarena — disse ele com deboche, perto da minha orelha para que eu pudesse escutar. — Odeio como todo mundo é obcecado por Macarena!

E então o refrão fez com que todos se movessem em conjunto, dando risadas. Fiquei parado olhando, era tão ridículo, e ainda sim nós estávamos ali no meio.

— Não vai dançar essa também? — Daniel perguntou, gritando por cima da música, erguendo as sobrancelhas.

— Eu não! — sacudi a cabeça. — Que vergonha!

— Achei que você estivesse bêbado! — ele riu, pegando mais firme nos meus antebraços para que me movesse como uma marionete de acordo com a coreografia boba da música.

— Não o suficiente pra ficar dançando Macarena no meio dos meus tios, que com certeza estão bem mais bêbados que eu!

Daniel deu risada e eu fiz o mesmo, olhando nos seus olhos enquanto ele continuava a balançar meus braços nos movimentos coreografados. Eu desejei não estar tão tonto, para poder olhar para o rosto de Daniel com mais nitidez.

Ficamos entre risos e meias coreografias até a música acabar, o que aconteceu realmente depressa. Tocaram mais duas músicas agitadas, e a movimentação de corpos era tanta que eu até esbarrei num dos meus tios, que caiu no chão. Houve uma pequena comoção para ajudá-lo a se levantar, já que de tão bêbado ele não conseguia ficar em pé. Logo depois disso, a maioria das pessoas saiu da pista quando viu que a próxima música começara lenta, e só restaram alguns casais, os bêbados sem senso de direção, e Daniel e eu.

Ele segurou minha cintura e com a outra mão ergueu nossos braços, começando a me conduzir no ritmo lento da música, como se estivéssemos dançando valsa.

— Não...! — murmurei um tanto surpreso, achando aquela aproximação totalmente alarmante; Daniel me trouxe mais para perto, parecia que estava sentindo que talvez eu pudesse fugir de vergonha.

— O que foi? — Daniel perguntou enquanto eu olhava para todos os lados, preocupado. — Ninguém tá prestando atenção — disse ele, parecendo adivinhar o meu medo.

Olhei para Daniel, que estava tão confortável naquela situação me segurando pela cintura, com aquele sorriso de canto e os olhos claros refletidos nas luzes coloridas. E depois de todo aquele álcool, ele ainda cheirava a flor e noz-moscada. Fiquei um tempo absorvendo os detalhes do seu rosto.

— Você é tão bonito — eu disse, quase sem perceber.

E mesmo que Daniel nunca esboçasse muitas reações além de sobrancelhas levantadas e sorrisos de canto, aquele sorriso que ele deu foi diferente. Ele não riu de mim, como quase sempre, mas sorriu para mim.

Mas eu não estava totalmente feliz, porque eu estava com medo. Enquanto eu olhava para Daniel, pensava no meu pai. E se ele nos visse daquele jeito? E se ele percebesse que aquela mão na minha cintura me fazia ficar ansioso, com calor? E imediatamente pensei no meu avô, brigando comigo porque eu pensava de um jeito feminino demais, agia de um jeito feminino demais, e, pelo amor de Deus, isso era errado! “Goste de mulheres, mas não aja como elas!”, dizia meu avô, “não goste do que elas gostam”. Se não eu nunca seria feliz, nem em terra e nem depois que morresse. Eu iria queimar no inferno, me contava ele, se eu preferisse os homens. Seria contra o que meu avô ensinou ao meu pai, e o que meu pai havia me ensinado. Eles me olhariam terrivelmente, me colocariam para fora de casa e me diriam “não, você não é meu filho”, “você não é meu neto”, “você não faz parte da minha família”. E eu já tinha perdido minha mãe, não queria perdê-los. Não queria ser rejeitado por mais ninguém.

E, no entanto, eu estava ali, sendo segurando pela cintura, sentindo meu corpo ser puxado para o de Daniel, como se toda a força da gravidade estivesse dentro dele agora.

— Você também — respondeu Daniel ao meu elogio. — Você é lindo.

Meu corpo inteiro entrou em contradição, num paradoxo dolorido. Era a primeira vez que, quando alguém me falava isso, eu me sentia daquela forma. E não coube dentro de mim. Não dava para ignorar aquele gelo no estômago, mas também não dava para ignorar tudo o que eu tinha aprendido que era certo, só por causa daquela euforia toda, daquele calor.

Respirei fundo. Eu estava me sentindo tonto e enjoado. Era muita coisa para sentir. Maldito álcool. Maldito Daniel, com aqueles olhos de tempestade.

— Você tá bem? — Daniel perguntou, interrompendo a dança.

Eu não consegui responder. Fiquei paralisado olhando para o nada, e tudo o que eu conseguia pensar era “você está estragando esse momento, Luca, porque você é um idiota covarde”.

— Eu disse que você não deveria ter bebido tanto, nanico — Daniel disse, me pegando pela mão e me arrastando para longe dali.

Ele me levou até nossa mesa, me mandou beber água e me disse para ficar quieto, esperando a sensação ruim ir embora, como se tudo o que ele estivesse enxergando em mim fosse um mal estar por causa da bebida. E talvez fosse só isso mesmo, talvez minha mente estivesse toda maluca, me fazendo pensar coisas ruins porque eu fosse um daqueles tipos de bêbados depressivos. Aquele pensamento me fez sorrir de alívio. Aquelas sensações... Eu não era assim! Era tudo por causa da bebida.

— Você me faz sentir meio culpado por ter te convencido a beber — Daniel me fez despertar dos pensamentos. — Uma hora você tá todo agitado, depois fica com uma cara de quem vai vomitar, e agora tá sorrindo. E você nem bebeu tanto.

— Então você acha que eu não sou só do tipo bêbado depressivo?

Daniel soltou uma risada. — Você é do tipo que sente de tudo, e que dorme.

— Que merda.

— Nem é — ele balançou levemente a cabeça em negação. — É engraçado.

— Eu nem me sinto bêbado, pra falar a verdade — falei tedioso, mas me sentindo um pouco melhor. Não sabia se era o álcool, mas as sensações iam e vinham com muita facilidade, e nenhum sentimento conseguia ficar muito tempo preso em mim.

— Mas você não tá bêbado mesmo, não chegou nesse ponto ainda.

— E acho que não quero chegar. Nunca. — franzi o nariz. — Já tô péssimo assim.

Nisso, senti alguém cutucando meu ombro e virei para o lado – de vagar para não ficar mais tonto do que já estava – e enxerguei uma silhueta contra as luzes coloridas que vinham da pista.

— Vocês estão bêbados, Luca? — esse alguém perguntou, era um garoto.

— Quem é esse? — Daniel perguntou olhando sério, de um jeito engraçado, para o garoto.

— Hã — forcei a vista e finalmente o reconheci. — Ah — exclamei. — É meu primo Jeff.

— Oi, primo Jeff — Daniel fez um aceno de cabeça. — Estamos bêbados, sim, quer dizer, mais ou menos.

Jeff olhou para Daniel com uma cara engraçada. Pelo menos parecia bem engraçada para mim, ou era só efeito do álcool. Comecei a rir.

— Você é o filho da noiva do Tony? — Jeff perguntou.

— Eu mesmo — Daniel disse e depois soluçou.

Comecei a rir ainda mais. Talvez eu fosse mesmo o tipo de bêbado que sente de tudo.

Jeff me olhou por um segundo e depois voltou sua atenção para Daniel.

— Como vocês conseguiram bebida? — ele arrastou uma cadeira e sentou-se à mesa com a gente. — Tô tentando descolar uma pra mim desde que cheguei.

— Nós roubamos — Daniel disse sério e depois soluçou outra vez; achei aquilo muito engraçado e continuei gargalhando.

Jeff olhou para mim desconfiado.

— Tá brincando que o Luca fez algo assim!

— Por quê? Normalmente ele é certinho demais? — Daniel quis saber.

— Tipo isso — Jeff assentiu me observando. — Você ainda tem daquela bebida que vocês roubaram?

— Nós não bebemos a garrafa toda, não — Daniel confirmou. — Mas nós esquecemos no jardim lá fora.

— No jardim onde?

— Vamos lá que eu te mostro, primo Jeff — e se levantou. — Levanta Luca, pelo jeito você já tá bem melhor.

Olhei para ele e franzi o nariz, irritado. Ele já estava amigo do Jeff tanto quanto eu. Suspirei e me levantei, arrastando as pernas até o jardim.

Quando passamos o lago eu avistei um bando de crianças brincando dentro do coreto e comecei a pensar se elas tinham reparado na garrafa de vodca debaixo do banco...

— Daniel — falei estático.

— Hm?

— Olha aquelas crianças lá — apontei.

— O que têm elas? — ele olhou para mim.

— Você não acha que... — comecei a falar, mas antes de terminar a frase avistei exatamente o que eu estava pensando: as crianças bebendo a vodca — Deus salve essas crianças! — gritei sem pensar e saí correndo atrás delas, tentando não cair de tonto.

— Luca! — escutei um dos garotos gritar, mas não parei.

Cheguei ao coreto e vi as criancinhas se embebedando. Era tudo minha culpa, pensei, fazendo uma careta de choro e arrependimento.

— Isso não vai prestar... — escutei Jeff falando atrás de mim; ele e Daniel tinham me alcançado.

— Criancinhas! – gritei para as crianças, tentando parecer legal. – Me deem essa garrafa, vocês não podem tomar isso.

— Podemos sim! — o garotinho que estava com a garrafa gritou e saiu correndo para o salão.

— Rápido! — falei para os dois enquanto corria atrás do moleque. — Antes que ele chegue lá dentro carregando aquela garrafa!

— Cacete! Volta aqui! — Daniel disse para o moleque, correndo ao meu lado.

— Ei, pirralho! — Jeff gritou, nos seguindo. — Era pra eu estar tomando essa vodca!

— Não fala a palavra vodca em voz alta! — mas eu gritei. — Você quer que nos descubram?

— Tarde demais — ouvi Daniel falar e olhei para ele. Vi que ele estava olhando para a porta do salão, onde o garotinho já entrava com a garrafa de vodca nas mãos.

Fiquei com vontade de chorar. Meu pai iria me matar por embebedar crianças depois de me embebedar.

— Eu conheço aquela peste — Daniel falou, jogando-se no gramado, bagunçando os cabelos escuros. — Ele vai direito contar pra mãe dele.

Respirei fundo, derrotado. Na mente me veio a cena do meu pai me dando bronca por eu ser o único e exclusivo motivo do insucesso do casamento. Eu não podia estragar as coisas. E em um ato impulsivo corri para as portas de vidro que levavam ao salão; ainda tinha tempo de salvar a situação toda e de me salvar.

— Luca! — Daniel berrou irritado.

— Tô atrás de você, primo! — ouvi a voz e os passos de Jeff atrás de mim, e talvez tenha ouvido mais um par de pernas correndo atrás de Jeff, mas não pude confirmar: além de só poder prestar atenção no salão agora, o mesmo estava tão barulhento que abafava qualquer outro som que vinha de fora. Aquele DJ era uma droga, ficava trocando de lenta para agitada, fazendo os convidados participarem de um tipo de morto-vivo de músicas.

Enquanto caminhava apressado entre os convidados, corri os olhos pela pista, pelas mesas e o Buffet. Nem sinal do baixinho. Depois de cinco minutos procurando, senti minha esperança de encontrá-lo diminuir até quase não sobrar nada. Já tinha visto Jeff e até Daniel entrarem e procurarem pelo garoto no salão, mas nada de ele aparecer. Se eu não estivesse meio embebedado ainda talvez enxergasse melhor.

Cheguei perto do Buffet e vi Jeff comendo igual a um sem teto.

— Jeff, isso é hora de comer? — tirei a comida da mão dele, era um tipo de folhado com recheio doce. — Você precisa me ajudar!

— Me deixa comer, primo! — ele tomou o folhado da minha mão de volta. —Pelo menos, se der merda, eu vou estar de barriga cheia.

Revirei os olhos. Quando aleatoriamente pousei meu olhar na pista, vi o maldito garotinho abraçando a garrafa de vodca. O coitado estava olhando às luzes, meio tonto. Arfei surpreso e corri até ele. Sabia que era maldade pensar isto, mas eu agradeci pela bebida ter deixado o pequeno perdido.

Quando ele me viu perceptivelmente se assustou — eu precisava admitir que eu deveria estar parecendo um pouco assustador, tamanho era meu desespero por tirar a garrafa das mãos dele. O menino tentou fugir, mas antes disso eu o agarrei pela manga do pulôver e na surpresa ele deixou a garrafa cair. Apenas ouvi em choque o som do vidro se espatifando em vários pedaços no chão.

O barulho, apesar de não se sobressair tanto sobre o som alto, chamou atenção das pessoas que estavam mais próximas. Tapei a boca do garoto antes que ele gritasse pela mãe ou qualquer coisa assim e observei um dos garçons atravessar a pista em nossa direção. Entrei em desespero, toda a adrenalina que eu estava sentindo se derreteu com o olhar severo do garçom. Eu estava muito tonto e nervoso para simplesmente mover meus pés com rapidez e sair correndo com o moleque nos braços. Meu momento de lucidez já tinha passado e minhas forças já tinham se esgotado só de correr do Buffet até o garotinho na pista.

O garçom parou em minha frente com um olhar inflexível e desconfiado.

— Por que essa criança estava com uma garrafa de vodca? — ele perguntou acusador.

Engoli em seco e comecei a gaguejar alguma coisa indecifrável.

— Quem disse que ela tava com a garrafa? — ouvi uma voz ao meu lado e olhei surpreso para Daniel.

— Eu sei o que eu vi — o garçom falou.

— Por isso mesmo sabe que quem vai se ferrar aqui é você e o seu chefe se contar para alguém que viu uma criança com uma garrafa de bebida alcoólica — Daniel ameaçou; o garçom não era muito velho e com certeza tinha medo de perder o emprego ou algo assim: não seria bom para ninguém relacionado ao bar que os noivos ficassem sabendo que uma criança tinha se embebedado.

O garçom olhou para ele pensativo, em seguida suspirou resignado e se agachou, começando a coletar os cacos de vidro da ex-garrafa. Suspirei aliviado.

— Vamos levar essa peste lá pra fora — Daniel pegou uma das mãozinhas do garoto e eu peguei a outra.

Começamos a andar, mas travamos, já que o menino não desgrudou os pés do lugar. Fazia menção de gritar ou chorar, mas achei que ele devia era estar se sentindo estranho por causa da bebida e não conseguia fazer birra nem se quisesse. Daniel revirou os olhos e os pousou em mim.

— Levante ele pelos braços — ele disse.

Levamos o garoto para fora enquanto ele balançava as pernas curtas no ar e dava risada, eu e Daniel erguíamos o pequeno pelos braços.

Dei risada com a cena, notando Jeff se juntar a nós. Chegamos perto do lago e paramos no gramado: Daniel, Jeff e eu de frente para o garotinho que piscava devagar. Esperava que ele ficasse bem logo.

— Garoto, toma essa coxinha — Jeff disse e enfiou um pedaço de qualquer coisa que ele tinha encontrado no Buffet na boca do menino. — Agora vai brincar — ele empurrou o moleque, que saiu correndo desengonçado enquanto tentava mastigar a coisa que Jeff havia dado para ele.

— Aquilo não era uma coxinha — falei, não sabia se alguém mais tinha percebido que no Buffet não estavam servindo coxinhas também.

— Eu sei que não — Jeff me lançou um olhar como quem diria “dã” — Mas crianças gostam de coxinhas; melhor que ele pense que isso é uma.

Daniel observou meu primo por algum tempo com uma “expressão de nada” e depois sacudiu a cabeça. Acho que ele tinha desistido de entender as coisas que saiam da boca de Jeff.

...

Meu celular vibrou no bolso e eu me surpreendi quando vi que era meu pai ligando. Deslizei o dedo na tela para desbloquear e atendi depressa.

— Pai?

Luca, onde você está? — pela voz ele parecia levemente irritado.

— Aqui fora do salão — respondi, olhando os meninos brincando de pega-pega com as criancinhas que antes tínhamos visto no coreto, só a movimentação me deixava tonto. — Com Jeff e Daniel... Por que ligou? Tem alguma coisa errada? — pensei logo no episódio do roubo da vodca e fiquei nervoso.

Eu só queria perguntar por que você disse pro barman que eu queria falar com ele, sendo que eu não falei nada disso pra você?

— É que eu... — tentei pensar em qualquer desculpa, mas eu era mesmo péssimo nisso e, ainda por cima, estava meio alcoolizado ainda; não costumava mentir para ninguém, muito menos para o meu pai... Quando estava quase contando a verdade, pronto para levar o sermão da minha vida, me lembrei de um detalhe aleatório que tinha percebido enquanto observava a movimentação da festa mais cedo. — É que eu vi que pra a madrinha da Amora faltou um talher na mesa de vocês, então fui chamar o barman para resolver isso.

Mas por que chamou justo o barman e não um garçom?

Engoli em seco. — Não vi nenhum garçom por perto, na hora.

E o barman foi falar comigo bem depois do talher faltar, Luca — meu pai disse desconfiado. — O que você tá escondendo?

— Nada, pai! — fiz uma careta de desespero e respirei fundo. — Eu falei com o barman na hora certa, se ele demorou ou esqueceu o problema não é meu!

Ouvi um suspiro do outro lado da linha. — Tudo bem... Falo com você daqui uma hora e meia, quando o salão fechar.

— Tá bom, até depois — falei aliviado, enquanto observava Jeff atravessar as portas de vidro de mãos dadas com uma garotinha que parecia se contorcer de vontade de ir ao banheiro, dei risada da expressão do Jeff de “sobrou para mim” enquanto gesticulava com ela, provavelmente tentando convencê-la de que ele não podia entrar no banheiro feminino para ajudá-la a se aliviar.

Até — meu pai respondeu por fim, quase tinha me esquecido dele.

Desliguei a ligação e voltei a olhar para as crianças correndo pelo gramado no exato momento de flagrar a cena mais engraçada da noite: uma garotinha alcançando Daniel e puxando as calças dele, com cueca e tudo. Por causa de sua camisa ser grande para baixo, nada que não deveria ser visto em público apareceu de fato, mas a cara dele foi muito engraçada. Eu já estava com meu celular ali em mãos, não pensei duas vezes antes de clicar na câmera e tirar uma foto dele naquela situação hilária. Como o flash estava ativado desde a última vez que usei a câmera, Daniel notou que foi fotografado, levantou as calças e veio correndo raivoso atrás de mim. Comecei a rir, tentando fugir dele.

— Te peguei — Daniel falou enquanto segurava forte o meu braço e arrancava o celular das minhas mãos com um ar de superioridade mordaz. — Agora tá com você — ele disse sorrindo ao mesmo tempo em que pegava impulso para correr, como se também estivéssemos brincando de pegar.

— Fala sério! — gritei indo atrás dele, tentando correr o mais depressa possível antes que a diferença da distância entre nós fosse grande demais, afinal ele era bem mais rápido do que eu, eu pude notar pela rapidez com que ele havia me alcançado. — Esse celular é meu!

— Por isso mesmo que quem tem que correr pra pegar agora é você — ele respondeu em voz alta e ofegante por causa da corrida. — Enquanto você tenta me alcançar, eu vou excluir aquela foto minha que com certeza serviria de chantagem num futuro próximo.

— Eu não iria colocar na internet, ou fazer chantagem, nem nada! — exclamei ofegante. — Eu juro! Me devolve!

— Foi mal, não dá pra acreditar em você — ele disse, deixando-me cada vez mais para trás.

Resolvi parar de tentar convencê-lo verbalmente porque isso, além de estar gastando minhas energias – as quais eu poderia estar usando para correr mais depressa sem cansar tanto – nunca daria certo com Daniel. Ele era do tipo que não escutava ninguém. Apressei o passo e regulei a respiração. Talvez, se eu não estivesse meio bêbado ainda, eu não teria levado essa brincadeira tão a sério, mas naquele momento eu só queria alcançá-lo e agarrá-lo.

— Meu Deus! — ele exclamou virando-se para mim, correndo de ré. — Você é muito lerdo! — e gargalhou de um jeito que fez meu estômago gelar, nunca tinha visto Daniel sorrir daquele jeito tão sincero. — Desse jeito não tem graça brincar com você.

Provocado com o que ele disse, observei Daniel guardar meu celular no bolso da calça social e então voltar a correr normalmente, dando as costas para mim. Chegamos perto do lago e Daniel teve que desacelerar à medida que passava pelo contorno que a água fazia na grama, para não cair. Tentei me beneficiar com isso, acelerando ainda mais minha corrida, coisa que não deu muito certo.

Quando senti que correr mais depressa no contorno do lago era babaquice, já era tarde. Pisei em falso em algum tipo de falha no que antes eu havia pensando ser tão plano e nivelado quanto o resto do chão e jurei que cairia na água de bruços. Preparei-me o quanto pude naquele mínimo espaço de tempo e fechei os olhos. Mas, ao mesmo tempo, mãos me suspenderam no ar, me agarrando a cintura por trás. Abri os olhos drasticamente e enxerguei nosso reflexo no lago. Daniel praticamente me abraçava por trás; tinha me salvado de cair.

— Te peguei – ele disse novamente, dessa vez perto da minha orelha; alguma preocupação estava implícita em seu tom de voz, coisa que me fez lembrar o porquê de ele estar ali, me segurando por mais tempo do que o necessário.

Virei-me de frente para ele, suas mãos seguraram meus braços com firmeza. Daniel parecia se divertir com a surpresa de eu ter quase caído, ou a surpresa de ele ter conseguido me segurar. Olhei para seu bolso esquerdo, cheio de segundas intenções.

— Não — contestei, fazendo suas sobrancelhas franzirem em confusão. — Eu te peguei — declarei enquanto pescava rapidamente meu celular do bolso de Daniel, sorrindo manhosamente para sua careta de espanto.

Soltei-me do agarrar fraco pela surpresa dele e corri sorrindo, o celular nas mãos, ouvindo seus passos firmes e rápidos atrás de mim.

— Por que tá me perseguindo? — questionei achando graça, mas com medo de ser pego. — Você já excluiu a foto.

— Eu mesmo vou te atirar no lago, seu trapaceiro de merda — ele gritou sua resposta.

Comecei a rir enquanto corria, coisa que diminuiu drasticamente minha velocidade. Não conseguia parar de rir, então tive que parar de correr, minhas pernas estavam bambas. Toda a situação era engraçada e eu estava bêbado e tonto. Quando parei totalmente, não demorou quase nada para que Daniel me alcançasse e viesse para cima de mim, nos jogando contra o chão gramado.

— Não dê risada — Daniel mandou irritado, enquanto prendia meus braços contra a superfície de grama.

— Mas é engraçado — falei entre risos.

— Deve ser engraçado enganar os outros — ele me encarou de cima, o cenho franzido, os olhos cinza irradiando irritação; estava quase sentando sobre minhas coxas, me prendendo contra o chão.

Aos poucos, enquanto Daniel me encarava bravo, fui parando de rir. Respirei fundo e senti o ar da noite misturado com o perfume dele, ao mesmo tempo em que comparava seus olhos com as pequenas estrelas cravadas no plano de fundo que era o céu noturno. Não eram totalmente cinzas, nem completamente azuis. Eram cinzazuis. Olhar para dentro deles era revigorante e confuso, fazia meu estômago gelar outra vez.

— Eu não te enganei — disse finalmente, quando me senti capaz de fazê-lo. — Eu iria cair de verdade, mas acabei me aproveitando — sorri de canto, meio sem jeito. Daniel encarou-me por alguns segundos demorados, aquilo me deixava impaciente.

— Irritante — ele exalou forte o ar e me libertou do seu toque, saindo de cima de mim.

Daniel jogou-se deitado na grama ao meu lado, sem dizer mais nada. Alguns minutos se passaram enquanto eu aguardava algum tipo de grosseria teimosa da parte dele, mas nada veio. Então apenas decidi continuar em silêncio por tempo o suficiente para ficar com vontade de fechar os olhos e dormir ali mesmo.

— Obrigado — sussurrei sonolento, cansado depois de tudo o que tinha acontecido naquele domingo. — por não ter me atirado no lago — sorri preguiçoso virando de lado, como sempre faço antes de dormir, e senti a ponta do meu nariz roçar na orelha de Daniel; eu estava com tanto sono que não senti necessidade de me afastar. — E desculpe pela trapaça — continuei a falar arrastando as palavras —, mas não queria que você continuasse a pensar que não tem graça brincar comigo...

Senti algum tipo de reação vir do corpo de Daniel. Um leve sobressalto, uma surpresa suave. Talvez pelo fato de eu estar muito perto, falando os meus pensamentos tão abertamente, ele tenha reagido assim. Mas eu estava bêbado e cheio de sono. Na terceira vez que pisquei, já não mais conseguia desgrudar as pálpebras uma da outra e meus sonhos rapidamente tomaram o cenário, substituindo minha visão próxima dos cabelos escuros de Daniel.


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