Além de Irmandade escrita por Dricca


Capítulo 3
O casamento




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As duas semanas que antecederam o casamento passaram relativamente depressa, exceto, é claro, pelos momentos compartilhados na presença de Daniel, já que ele fazia questão de encher minhas paciências sempre que tinha uma oportunidade.

Talvez, se eu tivesse evitado ser grosseiro naquele dia tempestuoso em que nos vimos pela primeira vez, então ele também pudesse desconsiderar as grosserias que vinha fazendo comigo, como dar esbarrões em mim sempre que cruzava meu caminho, dar petelecos na minha testa quando eu ficava distraído, colocar sal nas minhas bebidas assim que eu não estivesse prestando atenção, ou falar para os meus amigos que eu ainda usava pijama de criança.

Dentro de duas semanas Daniel conseguiu me irritar como nunca ninguém havia conseguido ao longo da minha vida toda. Eu não conhecia, até então, um único ser humano com tanta criatividade para brincadeirinhas sem graça. E eu nunca revidava, na esperança de que Daniel se enjoasse de me provocar. Mesmo assim ele achava que o fato de eu acordar mais cedo para conseguir tomar banho antes dele era uma forma de vingança, e ficava socando a porta do banheiro até conseguir me fazer sair debaixo do chuveiro. Sinceramente, tudo o que eu mais quis naquelas duas semanas foi que Daniel me deixasse em paz, mas ele era um maldito enchedor de saco.

E era engraçado, porque nós nem conversávamos muito. O modo como Daniel levava seus dias era tão diferente do meu que nós não tínhamos tempo para nada além dessas breves provocações. Voltávamos da escola e nos trancávamos cada um no seu quarto. Eu com videogames e apostilas, e ele hora com novos amigos, hora gravando seus vídeos. O máximo que chegávamos a conversar era enquanto fazíamos as refeições com Amora e meu pai, arrumando a mudança, ou vendo TV, na sala – Daniel tinha uma mania insuportável de comentar tudo sobre qualquer movimento que os atores faziam, sobre suas roupas, ou como “aquele efeito especial tinha sido um lixo”. Comecei a evitar assistir TV ao lado dele.

Em compensação, eu estava feliz no Apus. Acho que se existe algum ser divino, ele ficou com pena da minha vida em casa e decidiu enviar alguns ótimos amigos na escola, para equilibrar meus sentimentos de forma que eu não me tornasse propenso a cometer suicídio ou, principalmente, assassinato.

De qualquer forma, como chegamos duas semanas atrasados na escola em relação aos outros, tentei estudar um pouco para conseguir acompanhar melhor as coisas. Já Daniel estava bastante ocupado em conseguir convidados para a festa. Ele já estava tão popular que tinha arranjado alguns “amigos” para mim da minha própria sala, sendo que eu só estava falando mesmo com Vitor e Nando desde que entrara na turma. Cadu e Madu também conversavam comigo, mas estavam tão ocupados em serem namorados que só olhavam para cara dos outros seres humanos quando um deles faltava à aula ou ficava um tempo fora, no banheiro. Isso quando eles não iam para o banheiro juntos.

Nando, Vitor e eu estávamos, por fim, nos parecendo mais com um trio inseparável a cada dia, e eu fiquei tão bem por causa disso que consegui até mesmo responder as mensagens do Matheus, que, devo dizer, não tinha ficado muito satisfeito com minha ausência. Mas como ele sempre foi um cara que não liga para absolutamente nada por muito tempo, era como se eu nunca tivesse feito a birra de não respondê-lo.

A única coisa que me incomodava no colégio, que eu não pensei que fosse me afetar de modo algum, era a popularidade de Daniel, vinda principalmente da fama dele no YouTube. As pessoas na minha sala vinham falar comigo só para perguntar se eu podia apresentá-las ao Daniel, e eu desconversava dizendo que faria isso quando eu pudesse, imaginando como elas teriam ficado sabendo sobre morarmos juntos. Além disso, quando Amora estacionava o carro em frente ao Apus no fim das aulas para nos levar para casa, era sempre a mesma coisa: eu tinha que atravessar o mar de gente que ficava ao redor de Daniel para dizer que estava na hora de ir, com vontade de, em vez disso, dizer para Amora que deixasse o filho e me levasse de uma vez. E no fim, ele sempre acabava por levar um pessoalzinho para nossa casa, e era um saco como eles não sabiam dar um passo sem fazer barulho. Aquele fuzuê que Daniel e os amigos dele faziam enquanto viam TV na sala me deixava com vontade de desligar a energia geral e dizer que fossem ver filme na casa de outra pessoa.

Cheguei a tentar resolver esse pequeno inconveniente com Daniel, e ele disse que aquilo duraria só até depois que ele conseguisse muitos convidados para que a festa fosse a melhor de todas e coisa e tal. Para mim, aquilo parecia uma desculpa esfarrapada para que eu ficasse quieto no meu canto e não atrapalhasse as “sociais” dele, porque, sinceramente, do jeito que as coisas estavam, qualquer um iria querer ir à festa do Daniel, e não mudaria nada o fato de a pessoa ter frequentado nossa casa umas vinte vezes antes disso.

Numa dessas tardes em que eu não conseguia estudar por causa do Daniel e os amigos farreando alto no andar de baixo, acabei indo conferir o canal dele no YouTube. Fiquei surpreso com a quantidade de inscritos que ele tinha – perto dos duzentos mil –, o que justificava aquela comoção toda quando Daniel passava pelos corredores do colégio. Se bem que no início não era exatamente assim, uma vez que o alvoroço veio depois que o pessoal que já sabia quem Daniel era – por costumar ver gameplays –, acabou plantando a fama dele para o resto das pessoas. Por fim, acabei vendo alguns vídeos dele também, e por mais que eu não quisesse admitir, eram bons. Ele editava bem e era engraçado. Pena que isso só ficava nos vídeos.

Finalmente, depois de duas semanas me acostumando com toda aquela nova rotina, o domingo do casamento chegou. E não sei se foi por causa das rezas de Amora, mas o sol tinha dado as caras. Na verdade, acordar com o sol batendo no rosto depois de tantos dias nublados ou chuvosos me deixou de bom humor, já que mesmo preferindo o frio, eu sentia falta do calor vez ou outra.

Eram cerca de duas da tarde quando me levantei sonolento e saí do quarto, só de samba-canção, e fui me arrastando até o banheiro. Topei com Daniel no corredor sem querer e olhei para ele, esfregando os olhos.

— Foi mal — falei rouco, notando que ele tinha acabado de sair do banho.

— Olha por onde anda — ele deu um peteleco doído na minha testa e saiu rindo.

— Cacete! — levei a mão até a testa. — Seu filho da mãe.

— Vai tomar banho de uma vez, nanico – ele disse voltando ao quarto, virei o corpo para olhar para Daniel, que andava usando apenas uma boxer cinza. — Nós vamos sair daqui três horas.

Murmurei uma concordância enquanto o observava caminhar de costas para mim. Sacudi a cabeça e andei rápido para o chuveiro, aflito. Não era bom para minha saúde mental que eu ficasse reparando na bunda de Daniel. Dei um tabefe na minha testa. Chega de reparar nessas coisas!

...

Duas horas depois eu já estava praticamente pronto, só precisava pôr os sapatos e fazer o nó na gravata, coisa que já havia me tomado meia hora em vão. Eu lutava contra aquela maldita gravata e me sentia um inútil quando via o resultado no espelho. Cheguei até a procurar na internet algum tutorial, mas mesmo seguindo os passos certos um por um, meu nó sempre parecia uma bola de pano mastigada.

Ouvi batidas na porta do quarto.

— Tá aberta — falei distraído com meu pequeno desafio particular.

— Seu pai tá te chamando lá em baixo — escutei a voz de Daniel e o som da porta se abrindo. — Ele não consegue achar as alianças e disse que você pode saber onde elas estão.

Não disse nada, ainda concentrado no espelho, tentando dar o maldito nó na gravata pela milésima vez. Ouvi uma risadinha e senti Daniel se aproximando. Sem hesitar ele pegou a gravata das minhas mãos e começou a ajeitar o nó para mim.

— Você, como homem, deveria saber fazer esse tipo de coisa, nanico — Daniel falou naquele tom intolerante que eu já tinha identificado como natural dele, como se eu fosse uma criança que ainda não tinha aprendido a fazer nada sem ajuda.

Ele estava muito perto, respirando na minha bochecha, por isso desviei o olhar para o reflexo dele no espelho em minha frente e respirei fundo, sentindo seu perfume. Era algo como cheiro de flor e noz-moscada.

— Eu evito gravatas e coisas relacionadas a gravatas, ou seja, festas — me justifiquei, colocando as mãos nos bolsos da calça, suspirando outra vez. — O seu perfume é bom, a propósito.

Percebi Daniel me encarar por um segundo, mas não olhei para ele, só para suas costas no reflexo do espelho. Sem comentar nada ele tornou a olhar a gravata e terminou o nó, ajeitando a gola da minha camisa. As mãos dele roçando no meu pescoço me deixavam nervoso.

Eu me senti estranho por ele não ter dito nada sobre o meu comentário em relação ao perfume. O silêncio dele transformou o clima leve daquele momento em algo mais pesado, diferente. Daniel me dava medo quando ficava quieto, não tinha como saber o quê ele estava pensando.

— Obrigado — falei enquanto analisava o resultado final no espelho e Daniel se virava para fazer o mesmo.

Eu mal olhei para o meu próprio reflexo: já tinha ficado meia hora de frente para o espelho reparando em como meus cabelos claros, ajeitados com um litro de spray para trás, tinham ficado legais, já que normalmente eu tinha cara de criança e desse jeito eu havia ficado sexy. O que eu parei para olhar, ou melhor, quem, foi Daniel. Ele me encarava também, pensativo. De terno ele conseguia ficar ainda mais notável, os olhos cinzentos hipnotizantes; ele era daquele tipo de pessoa que não passa despercebido.

Eu realmente não me dei conta de quanto tempo ficamos olhando um para outro, antes do meu pai nos chamar nervoso lá de baixo. Não havia sido tanto, mas muito mais que do que deveríamos.

— Meninos! — meu pai berrava. — Preciso de ajuda!

— Melhor colocar os sapatos — Daniel me disse antes de sair do meu quarto.

Os sapatos, verdade, quase tinha me esquecido deles.

...

Procuramos pelas alianças durante quarenta minutos, até que eu as encontrei na geladeira, detrás das cabeças de repolho que Amora mantinha ali para salada oriental que ela gostava de fazer.

— Achei! — gritei enquanto alcançava a caixinha preta de veludo ao mesmo tempo em que Daniel e meu pai surgiam na porta da cozinha cansados e descabelados de tanto procurar, soltando algumas exclamações de alívio e principalmente de surpresa ao notarem onde é que eu havia encontrado nosso objeto de procura.

Coloquei a caixinha gelada nas mãos do meu pai, que tinha os olhos arregalados, ao lado de um Daniel com cara de desentendido.

— Atrás dos repolhos! — eu disse bravo ao meu pai — Sinceramente, pai, você podia ser avoado todos os dias, menos no dia do seu casamento! Eu já tava achando que nós nunca mais iríamos encontrar essas alianças.

— É o nervosismo, filho — ele me lançou um daqueles olhares de vítima que ele sabia fazer enquanto guardava a caixinha no bolso interno do paletó. — Eu nem sei como é que isso foi parar lá.

— Se você não sabe, imagine eu — respondi irritado. — E você não deveria ficar todo nervoso, é só um casamento, não fique maluco por isso.

Meu pai apenas olhou para mim como se eu fosse o maluco por estar irritado por causa das alianças. Eu não tinha culpa por ficar bravo, foram quarenta minutos de procura para acha-las na geladeira!

— Vou arrumar meu cabelo e repassar desodorante; depois eu volto para te ajudar a se acalmar — eu disse, me virando para sair dali num suspiro.

Quando desci as escadas depois de fazer o que eu precisava para terminar de ficar pronto, encontrei meu pai no hall, tremendo de nervosismo em seu traje de noivo.

— Pai? — chamei, sentindo remorso por ter dado aquela pequena bronca nele por causa das alianças. — Tudo bem?

Ele me olhou e fez que não com a cabeça, seus olhos castanhos claros estavam ainda mais brilhantes que o normal, ou seja, estava prestes a chorar. A sensibilidade do meu pai era algo que eu definitivamente não tinha herdado.

— Pai, eu não entendo o porquê de tanto nervosismo, você vê a Amora todo o dia, dormem juntos, comem juntos e...

— Filho, é diferente — meu pai me interrompeu. – Quando você estiver casando vai entender.

— Mas você já fez isso uma vez — cocei a bochecha. — Pensei que isso ajudaria de alguma forma...

Meu pai respirou fundo, encarando os próprios sapatos. Depois olhou fundo nos meus olhos e apertou os meus ombros com as mãos.

— Luca, eu não estou assim apenas por mim, mas por você, porque eu me preocupo com você e com todos nós como uma família. Eu e Amora já percebemos que você e Daniel não se dão tão bem e já conversamos tanto sobre isso... Mesmo que tenhamos preferido não contar nem tentar consertar nada e deixar que as coisas se ajeitem com o tempo... — deixei que meus olhos se arregalassem com a surpresa de meu pai estar me contando algo assim, eu não tinha ideia que ele percebia ou sequer se preocupava com isso. — Eu me sinto responsável por esse nosso novo começo, assim como Amora sente-se responsável por também querer recomeçar com Daniel, tão longe de onde eles sempre viveram — ele suspirou tentando não chorar e sorriu fraco. — O que eu estou tentando dizer é... Obrigado por ter aberto mão da sua vida antiga para começar de novo aqui, para me ver feliz, filho. Obrigado.

— Ah — soltei travado e engoli em seco; meu pai não era assim, ele não falava abertamente sobre seus sentimentos, se eu quisesse descobri-los sempre precisava adivinhar. — Não se preocupe pai, eu conheci pessoas legais na escola e... Nossa casa antiga não tinha piscina e nem uma lareira — comecei a falar, tentando mostrar que aqui estava bom para mim; não sabia exatamente como lhe dizer que eu estaria feliz se ele também estivesse... Até perceber que era só falar isso do jeito que eu havia pensado. — Eu estou feliz se você também estiver feliz, pai.

Ele sorriu e então nos abraçamos. Fazia um bom tempo que não trocávamos palavras tão sentimentais. Meu pai sempre foi muito preocupado com o trabalho e passava tanto tempo perto de computadores e conversando com clientes que, provavelmente sem perceber, começou a me tratar como um deles. Eu nunca me importei tanto, pois sempre soube que ele me amava do seu jeito e eu era agradecido por ele ter sido forte e me criado sozinho. Apertei mais o abraço, contente, pensando em como de uns tempos para cá ele estava diferente, e se o motivo de tudo isso fosse Amora, eu não me importava de morar com Daniel longe dos amigos que deixei para trás.

— Nós temos que ir — falei quebrando o abraço, ajeitando o terno e alinhando a gravata fina. — Quer chegar mais atrasado que a noiva?

— Tem razão, é melhor irmos de uma vez – ele sorriu e se virou para porta.

...

Quando chegamos à igreja, um pouco antes das cinco da tarde, os bancos estavam todos praticamente preenchidos até quase o fim. Amora e meu pai possuíam muito amigos, e quase nenhum deles era comum entre os dois, o que fez com que o número de presentes na cerimônia fosse gigantesco.

Tudo estava bem arrumado, cheio de rosas brancas e vermelhas; no ar uma mistura dos perfumes dos convidados e o burburinho de gente conversando.

Enquanto meu pai fazia sua entrada, Daniel e eu nos acomodamos no último banco da direita, o único que estava livre para ficar perto do corredor. Ambos queríamos ver Amora quando ela entrasse. De lá também se podia ver meu pai mesmo ele estando longe, já que a área do altar, onde os noivos ficariam, era um pouco mais elevada que o piso da igreja.

— Deixa eu ficar na ponta — Daniel me segurou antes que eu sentasse no canto extremo do banco, que dava para o corredor. — Quero que minha mãe me enxergue quando ela estiver entrando.

— Tá — falei, me arrastando para o lado; eu até acharia Daniel chato por fazer isso, mas se fosse minha mãe eu também iria querer ficar o mais visível para ela possível.

Depois disso, nós ficamos sentados até às quase seis horas, quando as portas da igreja se abriram e Amora entrou. Ela estava lindíssima. De fato meu pai deu muita sorte de tê-la encontrado e agora estar se casando com ela. Não só porque ela era linda com aqueles cabelos negros, os olhos cinza, pele bronzeada e corpo escultural — uma versão mais velha e feminina do filho —, mas porque ela era doce, decidida e incontestavelmente amava meu pai, tanto que largou tudo e arrastou Daniel para viver com a gente. Amora sorriu para mim e Daniel quando nos viu e assim que ela passou por nós, aproveitei para olhar para meu pai.

Era engraçado como toda a vez que eu observava os noivos quando a futura esposa fazia sua entrada eles estavam quase se desmanchando em lágrimas. Nunca entendi direito essa emoção que parecia gigantesca, mas achava que era porque nunca tinha gostado o suficiente de nenhuma garota para imaginá-la em um vestido branco, casando comigo. Não parecia se encaixar muito bem no que eu queria para mim. E isso muitas vezes me deixava mal, porque eu queria ser como a maioria dos outros garotos...

Olhei para Daniel e notei que sua expressão enquanto mantinha os olhos fixos na mãe era de conforto e orgulho, o que me fez sorrir, porque era assim que eu me sentia sobre meu pai também, mesmo que ele não estivesse olhando todo emocionado daquele jeito para minha mãe de verdade. Eu sabia que minha mãe nunca mereceria um olhar assim dele outra vez de qualquer forma, então eu podia aceitar. Amora era uma boa mulher.

Fiquei quieto a cerimônia toda, e Daniel ao meu lado também. O padre era um cara legal e não enrolou tanto, fez até umas piadas não tão sem graça enquanto discursava brevemente sobre as responsabilidades que deviam ter os noivos. Quando dei por mim já estava saindo da igreja, encarando o céu azul-alaranjado do pôr do sol de verão.

Daniel e eu fizemos algumas fotos com Amora e meu pai e depois decidimos ir de táxi para o salão onde aconteceria a festa antes deles, já que os dois ainda iriam demorar um pouco por causa das fotos.

O motorista nos deixou no lugar meia hora depois. Nós não tínhamos trocado uma palavra até escolhermos uma mesa perto das janelas gigantescas de vidro, quando Daniel falou:

— Aposto como vai ser uma chatice.

— É, talvez — respondi, olhando para as árvores lá fora.

O lugar era um tipo de recanto no meio da cidade: verde, fresco e moderno. Notei que depois de um lago, havia um coreto — uma daquelas construções em formato redondo, com grades e luzinhas — bem no meio dos jardins.

— Você ficou chateado? — Daniel perguntou, me fazendo voltar a olhar para ele.

— Sobre o quê? — perguntei incerto.

— Sobre nossas meias-famílias se juntarem para formar uma inteira — ele respondeu; parecia estar prestando atenção exagerada nas minhas reações.

— Não — menti sério, e depois resolvi aproveitar para ser sarcástico. — Na verdade, estou adorando viver debaixo do mesmo teto que você.

Daniel revirou os olhos — Tanto que já conseguiu fazer a merda de deixar além do seu pai, a minha mãe preocupada; você deveria aprender a controlar esse ódio infantil por mim.

— Infantil? Eu? — olhei raivoso para Daniel, que pareceu se divertir com minha reação; pelo jeito ele tinha escutado toda aquela conversa sentimental que tive com meu pai antes de sairmos. — É você quem fica me chamando de nanico, organizando festas escondido e colocando o pé pra eu tropeçar! — olhei para o lado, emburrado, enquanto Daniel abria um sorriso cínico. — Eu nunca reclamei, e apenas te ignoro porque eu sou muito maduro. Mas meu pai não vê isso, acha que eu faço isso justamente porque sou infantil.

— Escuta bem uma coisa — Daniel olhou sério para mim, me assustando um pouco, nunca tinha visto aquela expressão nele. — Eu não vou mudar o meu jeito só porque você fica todo irritadinho, e não tô falando para você fazer isso, mas... — ele desviou o olhar por um segundo, pareceu fazer isso para recarregar a paciência comigo, como se estivesse falando com uma criança. — Eu quero que as coisas deem certo, e como parte de tudo isso você podia tentar colaborar.

— Colaborar? — perguntei, achando injusto que ele exigisse isso de mim.

— É, tentar me responder como uma pessoa civilizada no jantar ou não sair da sala quando eu entrar, sabe? — ele suspirou. — Pelo menos quando Tony e minha mãe estiverem por perto.

— Hm — desfoquei minha visão dele por um segundo, observando o coreto lá fora enquanto pensava sobre o que ele havia dito; apesar de Daniel ser daquele jeito meio largado no mundo, ele se importava com Amora tanto quanto eu o fazia com meu pai, e respeitei isso da parte dele. — Acho que posso tentar... Ver meu pai feliz era uma coisa que não acontecia muito antes de ele conhecer sua mãe, e eu posso fazer um esforço para que continue assim.

— Por quê? — ele perguntou. — O que aconteceu com a sua mãe?

— Depois que ela traiu meu pai e nos largou sozinhos, ele meio que andava para lá e para cá sem rumo, parecia que estava morto. — falei, encarando a vela no centro da mesa, me lembrando dos tempos difíceis. Eu era só uma criança, mas já podia ver a tristeza nos olhos do meu pai.

Quando percebi que Daniel não iria falar nada, resolvi perguntar sobre a vida dele também:

— E o seu pai?

— Ele morreu – Daniel respondeu opaco. — Num acidente.

— Ah — respondi, e antes que eu pudesse dizer qualquer outra coisa, um garçom se aproximou, perguntando o que nós iriamos querer beber.

— Cerveja — Daniel respondeu, como se realmente tivesse idade para beber.

— Quantos anos você tem? — o garçom perguntou.

— Dezoito – Daniel mentiu convincente, como se o mundo inteiro já devesse saber que ele tinha aquela idade; ele era tão bom em mentir que eu mesmo quase acreditei por um segundo.

— Hm — o garçom levantou as sobrancelhas, aceitando a mentira, e então olhou para mim — E você? Tem quantos anos?

— Quase dezesseis – respondi aborrecido, querendo parecer mais velho, deitando sobre os meus braços na mesa enquanto olhava para Daniel. – Mas não se preocupe, eu só quero uma Coca.

— Com gelo e limão?

— Com gelo e limão.

...

Bebi três garrafas de Coca, fui ao banheiro duas vezes e aguentei todo aquele fuzuê casamenteiro, isso tudo antes do jantar. Depois de comer, comecei a ficar depressivo porque além de tudo, tinha que aguentar a música alta dos anos oitenta martelando nos meus ouvidos. Daniel e eu tentamos ir até a área mais afastada porque ficar sentado naquelas cadeiras já começava a fazer nossas bundas doerem, mas encontramos alguns casais se pegando lá e resolvemos voltar para mesa. Por que meu pai tinha que fazer tanta questão que eu ficasse até o final para se despedir de mim? Era só se despedir antes. Ou nem precisava, eles só passariam duas semanas e meia na lua de mel, longe da gente.

Estava pensando sobre isso, os olhos fechados, a cabeça sobre os braços em cima da mesa, quando Daniel me deu um peteleco na testa.

— Luca — ele chamou.

— Quê? — olhei para ele com os olhos faiscando de raiva.

— Preciso de uma bebida mais forte para aguentar isso aqui — ele fez uma careta de tédio olhando para a festa ao redor.

— O que eu tenho a ver com isso? — indaguei.

— O garçom perguntou pra minha mãe quantos anos eu tinha e ele descobriu que eu não tenho dezoito, agora não posso pedir mais nada alcoólico do bar.

— Tá, mas o que eu tenho a ver com isso? — parecia que Daniel queria falar comigo, mas ao mesmo tempo não estava nem aí para o que eu falava.

— Você precisa me ajudar a roubar alguma coisa de lá pra beber.

— Eu não vou fazer isso — simplifiquei.

— Eu divido com você.

— Não, obrigado — revirei os olhos.

— Ah, vamos — ele levantou de sua cadeira e veio até minha frente, me puxando pelas mangas. — Ainda tem muito tempo até que isso aqui acabe; você também vai precisar beber um pouquinho pra suportar essa chatice.

Olhei para ele pensativo e suspirei.

— Que seja — ele tinha razão, afinal de contas, eu estava muito entediado; tudo bem que eu nunca tinha bebido mais que uma taça de champanhe no Réveillon, mas era legal fazer alguma coisa diferente vez ou outra. — O que você espera que eu faça?

Ele sorriu e me levantou da cadeira, arrastando-me até perto do bar.

— Dê um jeito de o barman sair dali, então eu entro e pego uma vodca — Daniel falou como se fosse a coisa mais fácil do mundo.

— Como eu vou fazer o cara sair de lá? — olhei para ele com uma careta.

— Sei lá, dá um jeito – ele me empurrou e saiu de perto, escorando-se na parede ao lado do bar.

Olhei para ele com raiva, que fez um sinal com as mãos para eu me apressar. Revirei os olhos e fui até o bar, que graças a Deus não ficava em um lugar tão chamativo para que notassem o Daniel quando ele fosse dar uma de ladrão viciado.

— Você não pode beber — disse o barman assim que sentei em frente à bancada, em uma das banquetas altas.

— Eu já sei disso — falei, tentando parecer indiferente ou qualquer coisa que não fosse nervoso. — Eu só tô aqui porque o noivo mandou te chamar.

— E quem é você? — ele me olhou com uma sobrancelha levantada enquanto secava um copo de vidro.

— O filho dele – respondi.

— O que ele quer comigo? — o homem largou o copo no balcão e jogou a toalha sobre o ombro, meus olhos foram para os seus braços extrafortes.

— Eu sei lá – respondi dando de ombros, voltando a encará-lo da forma mais natural possível. — Ele só pediu para eu te chamar, não fiquei perguntando por que.

O barman suspirou pensativo, apoiando seus braços no balcão. — Será que tem a ver com eu ter deixado um dos garçons ter dado bebida pro filho da noiva? — ele perguntou coçando a cabeça; estava caindo na minha mentira.

— Pode ser mesmo — respondi apoiando o queixo na mão direita. — Meu pai é meio certinho com esse tipo de coisa.

Ele olhou para os lados, não tinha ninguém para ficar no lugar dele.

— Você pode dar uma olhada aqui no bar pra mim?

Pensei um pouco.

— Tô precisando ir ao banheiro, minha bexiga vai estourar — me ajeitei na banqueta para que eu parecesse mesmo apertado. — Vou tentar ficar aqui o quanto der.

— Ok, obrigado — agradeceu ele, jogando a toalha no balcão, saindo dali.

Daniel chegou logo depois e tirou uma garrafa de vodca do freezer, com a maior naturalidade, enquanto eu o observava da bancada. Ele colocou a garrafa no balcão me lançando um sorriso malandro, empurrando-a para que eu a pegasse, e voltou para o freezer para pegar de lá duas garrafinhas de refrigerante e mais dois copos depois disso.

Nós dois corremos para fora dali, ele rindo e eu quase chorando.

— Isso vai dar problema — falei, passando a mão livre pelos cabelos.

— Pare de ser chato — ele disse, depois olhou para mim e deu risada.

— Que foi? — olhei para ele.

— Até que você sabe mentir — ele disse. — Não achei que você fosse conseguir, sempre é tão transparente.

— Aquilo foi sorte — protestei emburrado enquanto passávamos o lago que eu tinha visto da janela enquanto estava na festa.

Chegamos até o coreto e entramos nele, sentando em um dos bancos de madeira. Mesmo que as luzinhas o fizessem chamativo, ninguém nos veria ali, daquele ângulo. Todos estavam lá dentro dançando e se embebedando e o barman não poderia deixar o bar só para nos procurar, pelo menos era o que eu esperava.

— Meu pai vai sacar que isso foi um plano — falei enquanto ele abria as garrafas. — E o barman também.

— Não dê uma de arrependido, Luca — Daniel encheu os copos metade com refrigerante, metade com vodca e me entregou um. — Relaxe.

Começamos a tomar o refrigerante batizado em silêncio. Nenhum de nós disse nada por bastante tempo, até que eu, me sentindo um pouco mais solto, resolvi quebrar o silêncio.

— Em que tipo de acidente seu pai morreu? — perguntei, continuando o assunto de horas antes, absorvendo as luzinhas que iam ficando mais bonitas conforme eu bebia.

— Ele era piloto — Daniel contou deixando o copo com bebida de lado. — O avião dele teve algum tipo de problema técnico e caiu.

— Ah — tomei mais um gole. — Quando foi?

— Eu tinha doze anos.

— Bom — olhei para os olhos tempestuosos dele passeado de lá para cá — Pelo menos você sabia que ele gostava de você, mesmo que tenha morrido.

— É — ele concordou, compreendendo o que eu queria dizer – Sinto muito pela sua mãe, deve ser difícil ser abandonado por alguém que você ama.

— Obviamente — ergui as sobrancelhas e voltei a beber, estava gostando daquela sensação de leveza, nunca tinha bebido tanto antes disso, mas sabia que eu era fraco para esse tipo de coisa.

— Luca, você não acha que é melhor parar? — Daniel disse sobre a bebida — Até eu já me cansei de beber, cara.

— Não acho, não — respondi enchendo meu copo mais uma vez; já tinha perdido a conta de contas vezes tinha feito isso, o refrigerante já tinha acabado, e eu bebia vodca pura.

— Tá, você quem sabe — Daniel deu de ombros levantando-se do banco.

O observei ir até o outro extremo do coreto e observar o céu noturno, de costas para mim.

— Não é estranho? — perguntei; minha voz já estava arrastada.

— O quê? — ele se virou totalmente, apoiando as costas nas grades, prestando atenção em mim.

— Nós dois aqui, no casamento dos nossos pais — falei, sentindo-me estranho por estar confessando em voz alta esse tipo de coisa que eu normalmente apenas pensaria. — Quer dizer, agora nós somos tipo meio irmãos, temos que morar juntos e ir pra uma escola diferente — suspirei. — Ainda não me acostumei.

— Achei que já tivesse, depois daquela conversa com seu pai antes do casamento.

— Não — sacudi a cabeça. — Aquilo foi só para deixá-lo melhor... Na verdade odeio mudanças — falei triste.

— Por quê?

— Tenho medo delas.

Daniel não disse nada, só ficou me observando. De repente fiquei muito, muito cansado. Pisquei os olhos de vagar, escorreguei pelo banco de madeira e fechei os olhos. Depois de alguns segundos já adormeci, sentindo frio.


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Notas finais do capítulo

Sobre essa coisa toda de bebidas e direção que vão aparecendo durante a fic: como eu não usei um lugar que existe na vida real para os cenários e tudo o mais, também não usei nenhuma lei para isso, mas as regras do mundo da história são: pode beber com dezoito e dirigir com dezesseis. Só para vocês ficarem sabendo :p
Até o próximo capítulo! xxx