Além de Irmandade escrita por Dricca


Capítulo 17
Entre ondas e nuvens


Notas iniciais do capítulo

Aos amorzinhos das recomendações novas, @YbCruz e @DrommerHS, OBRIGADA! Eu me senti muito feliz e grata por todos os elogios, de verdade.



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A manhã nasceu opaca. Havia chovido de madrugada e a grama do jardim estava orvalhada e, provavelmente, pareceria mais verde se houvesse sol. Mas o tempo nublado fazia o dia parecer final de tarde. As nuvens estavam carregadas, o ar estava úmido. Algo dentro de mim também parecia estar úmido. Como o fim de uma tempestade, uma sauna fria, ou o vento molhado que vem do mar quando anoitece. Esse sentimento estava alojado no meu peito como o fragmento perdido de uma bala, que foi esquecido ali depois de uma cirurgia de retirada. Como se fosse para estar tudo bem, mas só eu pudesse sentir que não estava. Era uma sensação quieta e perturbadora.

Mesmo que Daniel e eu estivéssemos em bons termos, ainda existia uma barreira que me impedia de finalmente estar perto dele. Ainda que estivéssemos de ombros encostados, ainda que estivéssemos segurando a mão um do outro, a barreira estaria lá. Essa percepção veio me assombrar ao amanhecer, quando o alívio que se tem depois de acordar de um pesadelo não estava lá depois que o despertador tocou. O fim de semana não tinha sido um sonho maluco. Tudo era real, tinha acontecido, das partes boas às partes ruins. E pela primeira vez eu me vi pressionado a enfrentar um problema de verdade.

E não era como se eu pudesse tentar conviver com aquele transtorno até o dia em que eu estivesse ok o suficiente para enfrentá-lo, porque não envolvia apenas a mim. Eu precisava pensar em uma solução para enfrentar a Cecília porque quem mais estava pagando por tudo aquilo era o Daniel. Não era justo.

Mas eu não sabia o que fazer. Estava apavorado. Já era ruim demais (no nível torturante) ter que fingir uma vontade súbita de ir ao banheiro toda vez que o assunto na rodinha era relacionamentos, só para fugir daquele medo pavoroso de alguém juntar um mais um e perceber que eu não era tão interessado em garotas como as pessoas gostariam que eu fosse. Mas o problema-Cecília fazia isso parecer coisa de criança.

Até mesmo o simples ato de tomar café da manhã naquela segunda-feira nublada foi uma tarefa difícil. Talvez difícil não fosse a palavra. Era mais como triste. Daniel podia até parecer bem enquanto conversava com Amora, mexia no celular e dava goladas em seu café (sempre com três colheres de sopa de açúcar, um futuro diabético), tudo isso ao mesmo tempo. Mas eu conseguia ver que ele soava artificial. Como se estivesse muito preocupado em parecer despreocupado. Era de partir o coração.

Saímos cedinho de casa. Quando Amora nos levava ao Apus, tínhamos que levantar quarenta minutos mais cedo. Isso acontecia sempre que meu pai podia chegar mais tarde na imobiliária e, por isso, dormia um pouco mais ao invés de deixar Amora no trabalho. Por mais que eu gostasse de ir para o colégio quando o Daniel ia dirigindo, a presença de Amora naquela manhã foi um ponto de alívio em meio a toda tensão que me confinava naquele estado meio entorpecido.

Amora xingava quando ficava brava com algum maluco no trânsito, o que acontecia com frequência, já que para ela qualquer pessoa com um carro era um maluco no trânsito. Enquanto ouvíamos música da rádio preferida de Amora, Daniel ficava com o nariz enfiado na tela do celular, cheio de sorrisinhos para todo o tipo de coisa legal que seus fãs comentavam sobre os vídeos e sobre ele. E era assim o nosso trajeto até o colégio.

Naquela manhã, o pessoal da escola estava agitado. Daniel mal havia atravessado as catracas da entrada e já tinha um amontoado de gente comentando sobre o último vídeo dele. Claro, o vídeo da festa. Eu estava tão concentrado no problema-Cecília que não havia parado para pensar nisso. Levou alguns minutos para fugirmos dos fãs do Daniel.

— Você postou o vídeo ontem?

Daniel estava me acompanhando na parada obrigatória para pegar meus livros e apostilas do dia no armário: história, biologia, matemática e geografia (uma manhã longa).

Ele apenas assentiu, enquanto desembrulhava um chiclete de menta.

— A sua mãe não assiste os vídeos? — questionei, um tanto aflito. Seria o fim se Amora descobrisse da festa. A cereja que faltava no bolo da desgraça.

— Ela sabe só do canal de gameplays — Daniel respondeu, escorado de lado no armário ao lado do meu. Não parecia muito preocupado.

— Mas ela não é nenhuma vovó da internet — rebati, enfiando a apostila de história na mochila. — Como é possível que ela não saiba dos vlogs?

— Ela só não tem tempo livre pra ficar vendo meus vídeos.

Fechei o armário, depois de conferir se tinha pegado tudo, e então olhei para o Daniel.

— Você colocou a parte da polícia no vídeo?

Ele deu aquele sorrisinho de canto.

— Foi a melhor parte, por que eu não colocaria?

— Você sabe que se ela descobrir nós vamos ficar de castigo pro resto da vida, né?

Daniel apenas deu de ombros.

— Ela quase nunca vê os vídeos, Luca. Relaxa.

— Como você consegue ser assim? — minha voz saiu num tom quase indignado.

— Assim como? — perguntou, antes de estourar uma bola de chiclete.

— Você tá muito nem aí pra alguém que postou um vídeo enganando a polícia.

— Não foi nada de mais, não é como se fossem nos mandar pra cadeia. Tem tanta coisa pior no YouTube.

Eu ia retrucar, mas o celular de Daniel começou a vibrar numa ligação. Ele tirou o aparelho do bolso da calça do uniforme e conferiu a tela de bloqueio. Era a Cecília. Daniel me lançou um olhar esquivo, checando se eu tinha mesmo visto o nome da garota.

— Eu vou atender — ele disse, como se estivesse esperando que eu pedisse para não fazer aquilo. Mas nós dois sabíamos que seria pior não atender.

— Eu vou indo pra sala — falei, ajeitando a mochila nas costas.

Não adiantava nem ficar curioso sobre o motivo da ligação. Provavelmente Cecília tinha chegado no colégio e queria saber onde o Daniel estava para grudar nele feito um carrapato. Daniel assentiu e atendeu a ligação, virando de costas para mim, e seguiu pelo corredor a frente.

Soltei um suspiro audível e comecei a caminhar até a minha sala. Para minha surpresa, algumas pessoas que eu nunca tinha visto antes me cumprimentaram pelo nome, dizendo um “ei, te vi no vídeo do Daniel”. Era bizarro ser reconhecido por pessoas com as quais eu não tinha nenhum tipo de contato. Não era de todo ruim, mas me senti muito exposto. Quase como se eu estivesse dentro de um daqueles pesadelos horríveis em que eu usava meu pijama de criança na escola. Sem falar que era um problema ser reconhecido como alguém que engana a polícia. Não era o tipo de fama que eu queria para mim.

A manhã passou como um borrão. Quando dei por mim, já estava no carro indo para casa. Eu não queria, mas acabei evitando todo mundo. Foi uma tortura ter que ver o Daniel passando o intervalo com a Cecília, de longe, sem poder fazer nada. Passei todas as cinco horas no colégio dentro da minha bolha pessoal, numa tentativa de autopreservação. Porque as chances se eu ser grosseiro a troco de nada eram muito grandes, se eu tentasse agir como sempre. Então, naquele momento, preferi me manter distante e dizer que estava com dor de cabeça quando perguntavam qual era a da minha cara de sofrido.

Passei o dia todo de molho no quarto. Terminei o dever de casa e procurei algo para ler, queria tirar da minha cabeça os pensamentos destrutivos, me distrair. Eu havia passado a manhã toda me pressionando a pensar em uma solução para nos livrar da Cecília, mas, em casa, me ocorreu que talvez a solução viria apenas quando minha cabeça estivesse limpa. Cheguei a pensar que ia ficar tudo bem enquanto virava as páginas do meu livro de ficção científica.

Era finalzinho de tarde quando fiz uma pausa para tomar banho. Amora logo chegaria do trabalho e eu estava ansioso pelo jantar. A comida dela sempre me fazia sentir melhor.

Naturalmente, Amora precisou ligar as luzes quando entrou em casa naquele entardecer. Eu não sabia se eu poderia considerar sorte ela não ter feito isso no domingo, logo depois de chegar da viagem. Teria sido, se tivéssemos trocado a lâmpada de luz negra da sala antes de ela perceber. Mas já era tarde demais quando fomos descobertos.

— Meninos! — Amora gritou do andar de baixo e eu nunca havia escutando aquele tom de voz vindo dela. — Desçam aqui agora!

Eu tinha acabado de tomar banho e só tive tempo de colocar meu roupão antes de sair do banheiro às pressas. Daniel abriu a porta do seu quarto um segundo depois, enquanto eu ainda estava amarrando a corda do roupão na cintura. Nós dois nos encaramos, dividindo a aflição e o medo de termos sido pegos.

Descemos as escadas, Daniel na minha frente. Quando chegamos até a sala, paramos um ao lado do outro, encarando Amora. Ela estava parada de braços cruzados e os olhos azuis cintilavam, ameaçadores. Àquela altura, ainda não sabíamos qual era o problema. Minhas mãos estavam suando frio.

— O que foi, mãe? — Daniel perguntou, tentando soar inocente. Ele quase me convenceu, mas tenho certeza de que não funcionou com a mãe dele.

— Algum de vocês pode me dizer o que significa isso? — Amora deu três passos até o interruptor de luz e, quando bateu na tecla, meu roupão branco ficou roxo.

Juro que tentei não parecer apavorado, mas acho que meus olhos arregalaram um pouquinho. Foi preciso apenas dois segundos de silêncio para que eu me convencesse de que o melhor a fazer era contar tudo para ela. Já ia abrir minha boca, mas o Daniel foi na minha frente:

— Ah, isso — ele franziu o nariz e balançou a mão, como se aquilo não fosse nada.

Olhei para ele, absorto. Ele ia inventar uma mentira e nos colocar em problemas. Eu já tinha montado o cenário catastrófico na minha mente: nós dois de castigo por tempo indeterminado. Não apenas por ter dado uma festa sem consentimento, mas por ter inventado uma mentira atrás da outra depois disso.

Eu não queria mentir para a Amora. Principalmente depois da conversa sincera que tivemos no domingo, sobre o Daniel ser uma boa pessoa e coisa e tal. Eu me perguntava até onde aquilo era mesmo verdade. E quis voltar no tempo para ter impedido aquela festa, que só causou problema para nós. De todos os tipos. A noite mais problemática de todos os tempos.

— Eu tava ajudando o Luca com um trabalho de arte — Daniel explicou, olhando para Amora com uma confiança que eu jamais teria em um momento daqueles. — Era uma pintura em neon que aparece melhor na luz negra — Daniel se virou para mim. — Não é, Luca?

Engoli em seco e assenti, inconformado por dentro. Não acreditava que realmente estava enganando Amora, eu odiava isso. Eu poderia simplesmente dizer a verdade, mas não conseguia. Naquele instante, estava sendo mais fácil mentir porque era só concordar com o Daniel. Parecia tão melhor do que levar bronca. Eu era um fraco.

— É — confirmei, a voz estava mais baixa e fina que o normal. — O Daniel trocou a lâmpada porque eu pedi.

Amora suspirou, estressada. Mas pareceu acreditar. Não sabia se ficava aliviado ou me sentia a pior pessoa do mundo.

— E essas manchas na parede? — Amora saiu da nossa frente, nos dando visão da parede atrás dela. Havia, no mínimo, umas dez impressões de dedos e mãos. Todas estavam feitas em tinta branca, e por isso se camuflaram na parede da mesma cor. Mas, naquele instante, elas estavam todas roxas igual ao meu roupão.

— Minha nossa — deixei escapar, num sussurro.

— É que eu e o Luca estávamos competindo pra ver quem fazia mais flexões.

— Na parede? — Amora perguntou, olhando para o filho como se ele fosse um animal exótico. Não deixava de ser.

— É, ué — Daniel deu de ombros. — Era só de brincadeira. O que tem de mais nisso?

— O que tem de mais é que a minha sala novinha tá cheia de marcas de dedo.

— Nós vamos limpar! — eu pronunciei, olhando para Amora da forma mais digna de piedade que eu sabia fazer. — Desculpe mesmo por isso.

Ela suavizou um pouco a expressão quando olhou para mim.

— Tudo bem, mas tomem cuidado da próxima vez — ela pegou a bolsa que estava no sofá. Eu não tinha percebido, mas o celular dela estava tocando. — Ah, é a sua avó, Daniel — ela se distraiu ao olhar para a tela do aparelho. — Limpem tudo, ok? E troquem a lâmpada. Eu vou atender minha mãe e já volto pra começar o jantar.

Daniel trouxe a escada para substituir a luz, enquanto eu fui buscar um balde de água e produto de limpeza na área de serviço.

O maldito fingiu que me ajudava a limpar a parede enquanto assistia TV. Ele só fazia alguma coisa quando Amora passava por ali, vigiando o nosso trabalho. Mas como ela ficou a maior parte do tempo preparando o jantar na cozinha, eu acabei fazendo praticamente tudo sozinho.

Daniel tinha que esperar eu acabar com as manchas antes de trocar a lâmpada, já que não tinha como enxergar as manchas sem a luz negra, então ele ficava me apressando porque queria voltar logo para o quarto. Como se eu não quisesse me livrar daquilo o quanto antes também.

— Por que ao invés de me apressar você não vem aqui e me ajuda? — era a provável décima vez que ele dizia para eu limpar mais rápido.

Daniel deu uma risadinha que depois se diminuiu em um sorriso de canto.

— Prefiro ficar olhando, obrigado.

— Você é um babaca.

— E você fica ótimo nesse roupão.

Senti meu rosto inteiro esquentar e ajeitei o roupão, que tinha se aberto no peito. Daniel deu risada do meu silêncio constrangido e depois nenhum de nós falou mais nada. Ele continuou assistindo televisão e eu continuei esfregando a parede.

Normalmente, Daniel conversaria com os personagens da série que estava assistindo, mas ele estava quieto. Não era exatamente estranho, porque eu sabia o motivo. Desde aquela nossa conversa da madrugada sobre Cecília ele estava assim, o seu olhar se perdia às vezes. Sem falar que no outro dia ele tinha vindo com aquele papo estranho sobre confiar nele.

Eu sentia no fundo do peito a vontade de dizer algo para confortá-lo, mas eu sabia que havia apenas uma coisa a ser feita para resolver o nosso problema, e dependia de mim. Mas eu não era corajoso o suficiente. Até mesmo limpar aquela parede sozinho parecia ser um tipo de autopunição que eu estava disposto a pagar porque eu sabia que, por minha culpa, Daniel estava sofrendo nas mãos da cobra.

Quando terminei, Daniel usou a escada e trocou a lâmpada. Amora veio em seguida, pedindo ajuda para pôr a mesa. Meu pai havia chegado mais cedo, enquanto eu ainda limpava a parede, e se juntou a nós para o jantar. Comemos em silêncio. Todo mundo pareceu sentir falta do Daniel implicando comigo. Principalmente eu.

...

Na terça-feira, Daniel não apareceu na sala de orientação. Wanda e eu ficamos esperando durante meia hora antes de desistirmos. Ele não atendia o celular e ninguém naquele colégio sabia onde ele tinha se metido.

Antes de ir embora, implorei para a Wanda não contar nada à diretora Eva. Ela disse que aquela tinha sido a primeira e a última vez que relevaria uma falta sem aviso prévio ou justificativa. Agradeci um milhão de vezes antes de sair da salinha e começar minha busca por Daniel no Apus, o que consistia em verificar se o carro de Amora estava no estacionamento.

Fui direto para o lugar que Daniel havia estacionado de manhã, e a vaga estava ocupada por outro carro. Daniel tinha me deixado no colégio sem nem me avisar. Mandei uma mensagem de ódio no celular dele e depois liguei para o meu pai, na esperança de que ele não fosse trabalhar à tarde. Às vezes, quando não havia muitos clientes, o sócio dele concordava em deixar ele passar um tempo em casa.

Luca?

Eu nunca ligava para o meu pai (nem para ninguém) se não fosse uma emergência. Então, a voz do meu pai soou preocupada quando ele me atendeu.

— Oi, pai. Vai trabalhar hoje à tarde?

Vou, por quê? Algum problema?

— Não — suspirei. — É só que o Daniel foi embora sem mim e eu pensei que você poderia vir me buscar no colégio. Mas se você vai trabalhar agora, então deixa pra lá. Eu pego o ônibus.

Por que o Daniel foi embora sem você, filho? Vocês brigaram de novo? Bem que eu achei o clima estranho ontem no jantar.

— Não pai, tá tudo bem. Ele deve ter esquecido, não sei.

Claro que eu achava que tinha dedo da Cecília nisso, mas o que eu poderia fazer? Se eu começasse a reclamar da garota para o meu pai, ele provavelmente voltaria com aquela ideia estúpida de eu gostar dela. Eca.

Depois vocês conversam e resolvem isso.

— É, sim... — falei, sem ânimo, pronto para me despedir dele.

Mas eu tenho uma boa notícia, você não vai precisar ir de ônibus pra casa.

— Não?

Eu vou almoçar em casa agora. Meu próximo cliente é só às quatro horas e a Amora disse que fez frango frito.

Dei risada. Amora sabia fazer o melhor frango frito do mundo.

— Você vai poder passar aqui, então?

Sim, eu tô saindo da empresa agora. Daqui a vinte minutos chego no seu colégio.

— Te amo, pai.

Interesseiro.

Almoçamos um pouco tarde por causa do desvio que meu pai fez para me buscar no Apus. Amora quase não tocou na comida porque estava preocupada com o sumiço de Daniel. Ele costumava ser bem solícito quando se tratava das ligações de Amora. Ele saía bastante e Amora não implicava com isso, desde que Daniel atendesse seus telefonemas. Era como um acordo. Mas, naquele dia, Daniel simplesmente não deu sinal de vida.

Eu já estava meio que acostumado a passar um dia inteiro sem notícias do Daniel, mas mesmo assim fiquei curioso. Ele sabia que seria problemático para nós dois se ele cabulasse uma das sessões com a orientadora. Eu me perguntava o que era tão mais importante do que isso. E tinha um pouco de medo da resposta. Me assustava pensar que, na verdade, eu sabia tão pouco sobre o Daniel que não fazia ideia dos lugares para onde ele ia quando não estava em casa ou no Apus.

Era noite quando ele chegou. Não quis dizer a ninguém aonde tinha ido e se trancou no quarto, com a desculpa de que estava atrasado para postar os vídeos no canal. Mais tarde, bati na porta do seu quarto e contei a ele que a Wanda não ia tolerar mais faltas. Daniel não pareceu se afetar muito, mas disse que aquilo não ia mais acontecer. E eu esperava que ele não estivesse falando da boca para fora.

Naquela noite, fui para cama me sentindo horrível. Daniel estava visivelmente mal e, mesmo que eu quisesse me convencer de que aquilo não tinha a ver com a Cecília, eu sabia que, no fundo, estava tentando me enganar, criando um falso conforto.

Na quarta-feira de manhã, Vitor veio me confrontar. Eu tinha prometido a ele que contaria toda confusão entre mim e o Daniel, mas a verdade é que eu estava evitando o assunto desde segunda-feira às sete e vinte, quando ele me perguntou sobre isso pela primeira vez, assim que entrei na sala de aula.

— Eu achei que seria bom desabafar, mas eu só quero ficar na minha por enquanto — expliquei, esperando que Vitor compreendesse meu martírio pessoal.

Às vezes as pessoas precisam de tempo até mesmo para botar o lixo emocional para fora. Era engraçado (de um jeito estúpido) como o ser humano podia se apegar a esse monte de porcaria sentimental. Eu me sentia como uma daquelas senhoras que perderam a sanidade depois de acumular tanto lixo dentro de casa que ficou impossível de caminhar da sala até o banheiro. Eu estava guardando tanta coisa não dita em voz alta dentro de mim que me fazia pensar que, assim que eu começasse a falar, não pararia nunca mais.

— Não precisa falar se não quiser, mas você tá péssimo — foi a resposta do Vitor. — Eu fiquei preocupado.

Realmente. Eu tinha dormido mal e estava com uma cara nada boa. Sem falar que depois da postagem do vídeo da festa as pessoas mais aleatórias estavam tentando se aproximar de mim. Era óbvio que a maioria delas não queria minha amizade, eles estavam interessados no Daniel. Aquilo estava sendo uma chatice. Eu tentei ser o mais legal possível enquanto dispensava todos, mas definitivamente não era meu melhor dia para lidar com pessoas.

O resto do pessoal não pareceu notar meu humor, o que eu considerei bom. Odiava ficar dando desculpas. O casal Dudu – como eu passei a chamar Madu e Cadu, porque era mais fácil do que citar um de cada vez – estava distraído um com o outro, como sempre. E Nando, aparentemente, tinha se dado bem com a Mei e ficava sorrindo como um bobo para o celular na maior parte do tempo. Mei passou o intervalo conosco naquele dia e eu meio que me aproveitei da atenção que estavam dando a ela para ficar quieto sem que ninguém achasse ruim.

Daniel nos trouxe para casa depois das aulas. Cecília tinha escoltado ele até o carro e o obrigou a levá-la para casa antes. E ela morava do outro lado da cidade. Eu tive que aguentar enquanto ela passava os dedos por entre os cabelos do Daniel quando queria.

Eu tentei escutar música no volume mais alto e me distrair com a paisagem, mas isso não conseguiu aliviar meu pânico de ficar ali, no banco de trás. Me arrependi de ter entrado naquele carro. Deveria ter pegado carona com Cadu ou simplesmente poderia ter voltado para casa de ônibus.

Cheguei em casa me sentindo muito mal. Não senti vontade nenhuma de comer e fui direto para o quarto. Dormi à tarde e, quando acordei, pensei que já era noite. Mas o céu só estava escuro daquele jeito porque as nuvens estavam carregadas para uma tempestade, coloridas num cinza-escuro melancólico.

Desci até a cozinha para comer alguma coisa, mesmo que ainda não estivesse com tanta fome. Acabei levando para o quarto uma caixa de bombom que achei fuçando o armário. Comi quase tudo enquanto fazia a lição de casa.

Foi quando comecei as resolver as atividades de biologia, as últimas do dia, que ouvi a voz de Amora no quarto de Daniel. Ela estava gritando e eu fiquei muito assustado. Comecei a imaginar por qual razão ela estaria tão alterada.

Fiquei num impasse angustiante, me questionando se deveria ir até lá, mas não tive tempo para raciocinar direito: meu pai entrou em meu quarto sem bater – coisa que ele nunca fazia – e disse que precisávamos conversar.

Era a segunda vez naquela semana que me falavam isso, e eu sabia que não me acostumaria nem se passasse por aquilo um milhão de vezes.

Primeiro, ele me contou o que estava acontecendo, enquanto ainda estávamos no meu quarto. Depois, nós fomos até o quarto do Daniel e lá nós quatro conversamos. Ou melhor: Daniel e eu levamos uma bronca. A bronca. O sermão do ano.

Amora tinha descoberto o vídeo da festa no YouTube.

A pergunta óbvia era: por que raios o Daniel foi postar isso se sabia que corria o risco de ser descoberto? Eu tinha tentado avisar, mas Daniel agiu como se nunca fosse ser descoberto. Tudo bem que ela não tinha nem ideia de que existia um canal secundário, cheio de vídeos aleatórios sobre as saídas do Daniel e todo aquele tipo de coisa idiota que ele aprontava na rua. Mas era um risco idiota de tomar, claramente. O vídeo ficou em alta, estava nos relacionados do canal de jogos dele e era muito difícil de não ser notado como sugestão na página inicial. Daniel tinha ganhado um ibope absurdo e, de brinde, muitos inscritos novos.

Levando a bronca, ali ao lado de Daniel, foi que eu percebi o quão idiota eu fui por ter deixado tudo aquilo acontecer. Não só a burrice absurda de postar um vídeo em que enganávamos policiais, mas de toda a ideia daquela festa. Amora estava triste comigo por ter mentido para ela no dia da lâmpada neon na sala. E meu pai nunca tinha me lançado um olhar tão decepcionado como aquele que me deu quando soube disso.

Como consequência dos nossos atos, ficamos de castigo, como eu já tinha previsto.

Daniel implorou para Amora, mas acabou tendo que excluir o vídeo de qualquer jeito. Ele postou no Twitter uma justificativa mais ou menos, dizendo algo como “me ferrei por causa do vídeo e tive que apagar, não brinquem com a polícia”. Ele também foi proibido de sair de casa durante um mês, mas isso não pareceu afetá-lo tanto quanto ter que tirar o vídeo do ar. Ele estava triste porque quem iria ganhar dinheiro com as views eram aqueles que fizeram download do vídeo para postar em seus próprios canais.

E, quanto a mim, meu pai disse que eu tinha que desenvolver meu senso de responsabilidade. Não era novidade que ele gostaria que eu assumisse seu lugar na imobiliária. Ele tinha 40% da empresa junto com outro amigo seu da época da faculdade, cujo avô tinha fundado a empresa quando era um jovenzinho empreendedor, como meu pai gostava de dizer. Era o sonho do meu pai que eu fosse trabalhar com ele e cuidasse de tudo no futuro, mas obviamente não combinava comigo. Não era o que eu queria fazer.

Mas, com o acontecido, o meu castigo era perder algumas tardes livres para acompanhar o meu pai no trabalho. Eu teria que visitar a imobiliária e aprender algumas coisas para começar a trabalhar com ele quando terminasse o colégio. Eu tinha a leve impressão de que eu havia me ferrado muito mais do que o Daniel.

Depois da bronca, voltei para o meu quarto e fui fazer o resto da lição. Não era como se eu pudesse me atirar na cama e chorar até dormir. Ninguém iria resolver as questões de biologia por mim, nem milagrosamente apagar a memória do pai e de Amora. Eu tinha um problema maior que aquele e precisava seguir em frente, começando com a lição de casa.

Acabei me distraindo com a tempestade que despencou de repente. Não chovia assim desde o dia em que conheci o Daniel, quando nos mudamos, havia pouco mais de um mês. Era uma daquelas tempestades que já começam com toda força. Num segundo, o barulho da cidade foi coberto pelo da chuva. Eu larguei minha lapiseira sobre a apostila e parei para contemplar os relâmpagos que riscavam o céu num branco-roxo.

Comecei a me balançar na minha cadeira giratória, meus pensamentos não queriam se fixar ali, na chuva ou no dever de casa. Só voltei para o presente quando meu celular vibrou na bancada, ao lado da apostila abandonada.

Arrastei a cadeira até lá e fiquei ansioso quando vi o nome do Daniel na tela.

Daniel:

“Luca”

“Daniel”

Daniel:

“Tá ocupado?”

“Ocupadíssimo”

Daniel:

“É sério, eu preciso de uma ajudinha”

“Mas eu tô falando sério”

Daniel:

“Tá ocupado com quê?”

“Com o dever de casa”

“Me pergunto se você faz isso. E quando você faz isso”

Daniel:

“Às vezes as pessoas se oferecem pra fazer pra mim”

“E você aceita????”

Daniel:

“Sim?”

“Te desprezo”

Daniel:

“Ai. Doeu”

“Vou fazer a lição. Tchau”

Daniel:

“Luca, é sério”

“Eu não posso sair e não tenho o que gravar pro meu segundo canal”

“Você é muito criativo, tenho certeza que vai pensar em alguma coisa”

Daniel:

“Eu já pensei”

“Então por que tá falando comigo?”

Daniel:

“Porque você vai participar do meu vídeo”

“Haha”

“Não mesmo”

Daniel:

“Luca, você não tem noção de quanta gente quer que eu grave com você”

“Isso não muda minha vontade zero de aparecer na internet”

“Lembra de quando todo mundo me zoou com aquele vídeo de eu caindo no shopping?”

“Não superei isso”

“E eu tenho vergonha. Já foi estranho o suficiente quando vieram falar comigo na escola por causa desse vídeo maldito da festa”

Daniel:

“Luca, eu acho que você me deve isso”

“Eu tô tendo que aguentar a Cecília por você”

“Eu não acredito que você tá fazendo chantagem com algo sério”

“Eu te odeio”

Daniel:

“E quando gravamos o vídeo?”

“...”

“Pode ser amanhã? Eu realmente preciso fazer o dever”

Daniel:

“Perfeito”

“Foi ótimo falar com você”

“Tchau”

“Não ouse faltar a orientação amanhã”

Daniel:

“Não vou”

"Não vai o quê?"

Daniel:

"Não vou faltar, senhor certinho"

“Prometo”

Junto do “prometo”, veio uma foto do Daniel dando um sorriso engraçado e muito bonitinho, apontando o polegar para cima. Eu não conseguiria ficar de mal humor depois de ver algo como aquilo, nem se quisesse. Sorri e bloqueei a tela do celular, voltando para o dever. Suspirei. Amanhã seria um longo dia.

...

O último sinal para entrar tocou quando abri a porta do carro, a mochila escorregando do ombro por causa da pressa de sair dali. Se eu me atrasasse, seria uma visita à coordenação que eu, muito bem, poderia evitar. Quanto menos a diretora Eva ouvisse de mim e do Daniel, melhor. Estar preso às consultas com a orientadora já era castigo suficiente pelo resto do ensino médio.

Daniel travou as portas do carro azul com o controle e disparamos a correr em direção ao prédio principal. Do estacionamento até lá eram cerca de cinco minutos de caminhada. Com sorte, chegaríamos em dois.

O último sinal já era aquele para os atrasadinhos que estavam vagabundeando pelos corredores, e, por mais que eu estivesse correndo como alguém que tinha esperança de passar pelo inspetor, a verdade era que eu já estava esperando ter que assinar a lista de atraso. Aquela seria a minha terceira assinatura em menos de um semestre completo, o que significava uma advertência e ligação para os pais.

Meu pai até poderia parecer legal, mas isso só enquanto eu estivesse de ficha limpa na escola. Sem falar que receber uma advertência logo depois de levar uma bronca por falta de responsabilidade era pedir para ficar de castigo para sempre.

Fiz aquela corrida toda por entre os carros do estacionamento pensando no meu pai. Quase não ouvi quando Daniel gritou para eu ir mais depressa. Meio assustado, por pouco não tropecei nos degraus que levavam à porta de entrada do prédio. Subi de dois em dois, sentindo os cabelos da nuca começarem a grudar no suor. Eu precisava fazer exercícios com mais frequência.

— Podem dar meia-volta — disse o inspetor quando paramos, ofegantes, em frente à porta de vidro.

Ele era um homem muito magro e, apesar de ser calvo, tinha optado por ter o cabelo comprido, que sempre estava preso num rabo-de-cavalo baixo e desleixado. Ele lembrava muito o zelador rabugento de Hogwarts, era um consenso geral. Há tanto tempo que o chamavam de Inspetor Argo que já não se sabia qual era o seu nome verdadeiro. Eu me sentiria mal por ele se eu não estivesse sendo impedido de entrar no meu próprio colégio.

— Andem, agora é só pela coordenação — ele voltou a dizer, com uma carranca típica de gente impaciente. — Assinem a lista de atraso e esperem até a segunda aula.

Surpreso eu não tinha ficado. O Apus era toda aquela rigorosidade sempre, então nada fazia mais sentido do que ser proibido de entrar por causa de dois minutos de atraso. Ainda ofegante, olhei para Daniel. Ele parecia irritado, do tipo prestes a comprar briga com o inspetor. Toquei seu ombro, na intenção de lançar a ele um olhar de nem-pense-nisso. No mesmo segundo, ouvi uma voz familiar atrás de nós:

— Eles estão comigo, pode liberar a passagem.

Era Wanda, reluzindo autoridade pelos olhos dourados. Eu e Daniel olhamos para trás ao mesmo tempo, assustados com a aparição silenciosa e repentina. O inspetor Argo ficou inquieto.

— Não sei se o senhor ficou sabendo — ela continuou, com um sorriso. —, mas esses dois aqui estão sob minha responsabilidade, a pedido da diretora. Eu segurei eles por alguns minutos agora há pouco para resolver um assunto.

Eu nunca tinha reparado antes, mas a orientadora Wanda tinha um ar quase tão superior quanto ao da própria diretora Eva. O inspetor ficou calado e, depois de eu olhar prédio adentro, vi todos os funcionários que estavam passando por ali prestarem atenção exagerada nela. Era bem estranho, porque, geralmente, orientadores não tinham toda essa moral. No meu antigo colégio, o orientador era quase um renegado.

Me senti importante por ela ter mentido por nós. E mais ainda quando Argo deu um passo para o lado, nos dando espaço para entrarmos no prédio. Quando pegamos o elevador – eu geralmente preferia usar a escada, mas estávamos atrasados –, Daniel se ofereceu para levar a bolsa de Wanda, que na verdade era quase uma mala de viagem. Ela apenas negou com um sorriso, enquanto apertava os botões do segundo e terceiro andar, onde ficavam a minha sala e a de Daniel, respectivamente.

— Eu não tenho tempo para levar os dois até a sala — ela disse, enquanto tirava uma agenda pequena da bolsa, que tinha uma caneta presa na capa dura. — Por isso, eu vou escrever esses atestados e vocês mostram aos professores, caso eles proíbam vocês de entrarem.

— É bem legal da sua parte fazer tudo isso por nós — eu queria perguntar o motivo daquilo, mas achei meio indelicado. Então apenas falei aquilo num tom curioso.

Wanda sorriu mais uma vez, concentrada no que escrevia no papel.

— É um favor — ela disse, apenas.

— Um favor, tipo, vou querer algo em troca depois? — foi a vez de Daniel perguntar, de braços cruzados em frente ao peito e olhos desconfiados.

— A única coisa que eu espero de vocês é que colaborem comigo durante as nossas sessões, nada mais.

Daniel com certeza sentiu a indireta. Depois dessa, achei que ele não iria querer experimentar faltar a sessão de novo.

As portas do elevador abriram no segundo andar e Daniel as segurou para mim, enquanto Wanda destacava da agenda o meu atestado. Quando peguei a folha em mãos, notei que o papel era timbrado, com o brasão do Apus. Tinha um carimbo e, logo acima, estava a assinatura de Wanda, com um W bem bonito e enorme. O sobrenome começava com M, mas não consegui decifrar por causa daquela caligrafia enfeitada de assinatura.

— Obrigado — tentei sorrir, mas eu estava me sentindo um pouco nervoso.

Era para eu ter perguntando ao Daniel se iríamos almoçar juntos antes da sessão de hoje ou se ele estaria ocupado demais com a nova namorada. Meu peito se apertava cada vez que eu tinha que trazer isso à tona. E agora Wanda estava ali, nos observando. Seria estranho simplesmente perguntar sem demonstrar toda a tensão óbvia entre a gente.

Olhei para o Daniel, e era como se ele soubesse o que eu tinha acabado de pensar. Me aprumei para fora do elevador e segurei as portas mesmo que Daniel já estivesse fazendo isso desde que elas tinham aberto.

— Te vejo no intervalo? — arrisquei.

— Luca, no intervalo eu não posso — ele parecia bem incomodado por me recusar, ao menos isso era um pouco agradável de perceber.

— Pode quando, então?

— Eu não sei ainda, isso vai depender... — da Cecília, eu sei. — Bom, você sabe.

— Posso te ligar no final das aulas?

— Deixa que eu te ligo, é melhor.

— Ah, entendi — assenti, me sentindo terrivelmente triste. Cecília não podia nem me ver ligando para o Daniel. Grande droga.

Deslizei meu braço para fora do alcance do elevador, sentindo ele pesar mais do que o normal, junto com o restante do meu corpo, que parecia preenchido de chumbo em vez de sangue.

Daniel acenou, incerto, me olhando como se quisesse garantir que eu ficaria bem. Sorri com os lábios mais para baixo do que para cima e acenei de volta. A porta começou a fechar e encarei Wanda. Ela tinha aquele olhar de detetive, e eu não me preocupava mais em ser descoberto. Eu só estava cansado e sabia que, se Vitor descobriu, Wanda não demoraria a saber também.

As portas se fecharam e eu fiquei parado no corredor, olhando para elas. O prateado mostrava um reflexo deformado do meu corpo. Era como se refletisse a verdade.

— Daniel, será que você vai me desculpar por ter te colocado nisso? — sussurrei para o vento, antes de virar os calcanhares e caminhar para a sala de aula.

...

— E aí, Luca — ouvi a voz do Nando ao meu lado.

Virei a cabeça na direção do garoto, observando enquanto ele arrastava uma cadeira para se sentar ao meu lado. Ele ajeitou a apostila e o estojo junto dos meus materiais sobre minha mesa e, até então, eu achava que ele estava ali apenas para fazermos os exercícios juntos.

Era aula de química e, por mais que tudo fosse muito rígido quando se tratava de estudar no Apus, o momento de fazer os exercícios em sala era bem liberal. Podíamos fazer como quiséssemos, inclusive em grupos. Fazia parte do método de ensino e era meu momento preferido.

Todo mundo sabia que ficaríamos sem nota se usássemos esse tempo para ficar à toa, então ninguém conversava muito. Mas, ainda assim, a sala perdia aquele ar de necrotério de tão silenciosa, e passava a ganhar um burburinho agradável.

Tínhamos, geralmente, metade de uma aula para fazer as atividades e metade para corrigir junto do professor, que nos mandava ir até o quadro para escrevermos as respostas. O nome de quem tinha que ir até o quadro era tirado em um sorteio, então todo mundo levava a lição a sério, por medo de passar vergonha na frente de toda turma. Os professores não pegavam leve.

Eu me habituei a fazer a tarefa sozinho ou com a Madu. O fato de ela sentar na minha frente era quase um milagre, considerando o mapeamento obrigatório, feito para separar os grupinhos. Vitor gostava muito de fazer a lição sozinho, quase nunca se juntava a nós. E o Nando e o Cadu geralmente faziam um com o outro, por sentarem relativamente perto um do outro.

Nesse dia, no entanto, o casal Dudu tinha se juntado na mesa da Madu. Nando se achegou do meu lado e perguntou se eu já tinha começado.

— Eu já fiz as duas que não precisam de conta — respondi; eu sempre começava pelas mais fáceis.

— Me explica a resposta? — ele juntou as mãos, fazendo um olharzinho pidonho.

Dei risada e expliquei como tinha chegado às respostas para ele. Depois, fizemos juntos as outras questões. Terminamos antes do prazo e passamos a conversar sobre a Mei.

— Falamos o dia todo, praticamente — Nando contou, todo orgulhoso. — Ontem, pela primeira vez na minha vida, não liguei o videogame. Dá pra acreditar?

Dei risada.

— Que bom, ela tá te salvando de ser um viciado.

Ele riu também.

— Mas é sério, Luca, eu não estaria conversando desse jeito com ela se não fosse você aquele dia na festa — Nando sorriu tão de verdade que seus olhos sorriram junto. Ele ficava realmente bonito assim. — Você me deu a maior força.

— Na verdade, nós tivemos sorte. Foi a Mei que ligou lá em casa.

— Mas mesmo assim, era só você atender e ponto. Mas você me deu o telefone pra falar com ela. Isso mudou tudo.

— Bom, você tomou a iniciativa de chamar ela pra festa — lembrei. — E, inclusive, você nunca me contou como foi quando você foi lá buscar ela.

Nando ficou animado e deu uma risadinha sapeca. Ouvi a risada da Madu e, quando olhei para frente, percebi que ela estava prestando atenção na conversa, se ajeitando debruçada sobre os próprios braços na minha mesa. Cadu estava ao lado, de costas para nós, ainda terminando de fazer as atividades.

— Ajudei a Mei a pular a janela do segundo andar — Nando revelou.

— E como você fez isso? — perguntei, genuinamente curioso.

— Tinha uma escada no jardim, nos fundos. E ela me mandou buscar, falando baixinho assim, pros pais dela não acordarem. Mas eu acho que eles já estavam acordados porque foram eles que ligaram pra polícia, né? — concordei, balançando a cabeça, com um sorriso. Sempre que Nando nos contava alguma história, era muito divertido. — Mas, enfim, eu fui buscar a escada. Só que a escada não alcançava a janela dela.

Madu deu risada. — Se eu não soubesse que deu tudo certo, eu estaria preocupada agora.

— Pois é, eu fiquei assim na hora — Nando olhou para Madu, concordando.

— E o que vocês fizeram? — questionei.

— A Mei disse para eu apoiar a escada na árvore.

­— Tem uma árvore na história? — Madu indagou.

— Tem. Enorme. Do lado da janela dela.

— Ela subiu na árvore direto da janela? — arregalei os olhos.

— Sim, mas eu precisei ajudar — Nando começou a desenhar uma arvorezinha no canto da página de sua apostila e depois desenhou a janela do quarto da Mei. — A árvore não chegava a encostar na janela. Ficava nessa distância — ele apontou para o desenho e eu a Madu demos risada; não era como se desse para saber a distância certa com um desenho bobo daqueles. — A Mei me disse pra subir na árvore, pra servir de apoio quando ela fosse pular da janela até a árvore.

— Vocês são malucos — Madu cobriu o rosto com as duas mãos, como se estivesse angustiada só de pensar na cena.

— Vocês poderiam ter caído e se quebrado — comentei.

— Não era tão longe assim. Até que a árvore era bem perto, mas não ia ter apoio quando a Mei fosse pisar no galho.

— Nunca mais façam isso — Madu disse.

— Espero que a gente não precise, mesmo — Nando riu. — Deu certo, mas na hora eu tava me tremendo todo.

Eu e Madu demos risada.

— No final, eu peguei a mão da Mei e ajudei ela a descer da árvore.

— Nando, o herói das garotas festeiras — Madu brincou e nós três rimos.

— E na volta? Como foi? — perguntei.

— Foi a mesma coisa, só que ao contrário. Eu ajudei ela a subir na árvore e ir pro quarto.

— Não rolou nada? — Madu quis saber, com um sorriso de canto, enquanto eu ria da última resposta de Nando.

— Não — ele estava corando e eu me segurei para não rir por causa da fofura. — Eu tô superando minha timidez aos poucos.

— Ah, que chato! — Madu fez um bico.

— Madu! — chamei a atenção dela, recebendo um revirar de olhos. — Tudo no seu tempo, não se preocupe, Nando — dei batidinhas nas costas dele.

Ele riu, ainda com vergonha.

— Mas me conta, Luca — ele olhou para mim. — Por que o Daniel excluiu o vídeo da festa? Vi o tweet dele mas fiquei sem entender direito.

Dei uma risada meio sem graça.

— Ficamos de castigo.

— Ih — Nando fez uma careta.

— A mãe do Daniel descobriu o vídeo e contou pro meu pai.

— Mas até você se ferrou? — Nando perguntou.

— Meu pai ficou decepcionado porque não contei a verdade antes.

— E qual seu castigo? — Madu quis saber.

— Vou ter que ir pra empresa com meu pai. Ele quer que eu assuma o lugar dele. O que não tem nada a ver comigo.

— Que droga — Nando torceu os lábios para baixo.

— Pode ser menos chato do que parece — Madu deu de ombros. — Nunca se sabe. Não fique triste ainda.

Suspirei.

— Espero que você esteja certa. Mas duvido muito — encolhi os ombros. — Nunca me vi fazendo o que meu pai faz.

A verdade é que eu tinha medo de me tornar um protótipo de Tony e ter a vida dele refletida na minha. Eu esperava coisas diferentes para mim.

Nesse momento, o professor chamou atenção de todos. Estava na hora de corrigir os exercícios no quadro. Madu bagunçou meus cabelos e me deu um sorriso de tudo-vai-ficar-bem, antes de se virar para o lado e brigar com Cadu porque ele ainda não tinha terminado de resolver os exercícios. Enquanto se levantava, Nando imitou Madu de propósito e bagunçou meus cabelos. Quando Cadu viu Nando fazendo isso, fez a mesma coisa também. Todos deram risada da situação que ficou o meu cabelo, provavelmente um ninho. Logo então, o professor mandou os meninos sentarem de uma vez.

Observei enquanto os dois iam, apressados, para suas mesas. Cadu não deixou de continuar a fazer a lição mesmo enquanto andava. Madu deu risada daquilo, e eu olhei para ela, sentindo algo bom e quente preencher meu peito. Eu adorava todos eles. Eram bons amigos.

...

Almocei sozinho depois das aulas. Todos os meus amigos foram para casa, como de costume, e Daniel não estava lá para almoçarmos juntos. Ele não tinha respondido minhas mensagens e eu achei melhor não ligar, por causa do que ele tinha dito antes, no elevador. Talvez seria pior se Daniel estivesse com a Cecília e ela percebesse que eu estava procurando por ele. Sabe Deus o que aquela garota poderia obrigar Daniel a fazer só por estar com um pouco de ciúmes.

Era um sanduíche meio mais ou menos o que eu comi, mas eu não liguei, já que não estava com fome. Só decidi almoçar porque, na verdade, eu não tinha outra coisa para fazer até dar o horário de ir falar com a Wanda.

Eu me sentei no jardim, debaixo da mesma árvore que eu passava o intervalo com o pessoal todos os dias. Era bem agradável ali, o dia estava ensolarado e fresco, a grama parecia mais verdinha depois da chuva do dia anterior. Fiquei observando enquanto as crianças chegavam para estudar no período da tarde. Elas mal chegavam e já procuravam uma bola ou inventavam um jeito novo e esquisito de brincar de pega-pega.

Quando o sinal indicando o início das aulas bateu, dei graças a Deus. O período de almoço era longo e eu já não aguentava mais levar bolada das crianças brincando de futebol. Eles nem me pediam desculpas, só davam risada. Se Daniel estivesse ali, se mataria de rir junto com elas, sem dúvida. Eu odiava sentir falta dele.

Suspirei, me preparando mentalmente para ver Wanda. Era desgastante ter contato com ela, mesmo que fosse o mínimo. Wanda tinha aquela aura avaliadora, e eu nunca conseguia ver nela um olhar distraído. Era sempre aquele tipo de olhar felino, que arrancava um pouco da minha energia apenas por tentar me esquivar. Eu não duvidaria se alguém me dissesse que ela sabia ler mentes.

Esperei até que todas as crianças tivessem ido para suas salas e, só então, comecei a caminhar até a sala de orientação. Andei pelos corredores vazios, escutando os professores tentando acalmar os ânimos das crianças agitadas dentro das salas de aula.

Olhei para os meus All Star. Da última vez que caminhei sozinho até a sala da Wanda, significou que Daniel tinha arranjado coisa melhor para fazer. E eu estava rezando para que aquilo não se repetisse. Wanda tinha ficado uma fera, mesmo que do jeito controlado e elegante dela. Daniel tinha prometido que não faltaria dessa vez.

Eu jurei para mim mesmo, naquele instante, que se ele me deixasse plantado esperando mais uma vez, eu desistiria das sessões e abriria o jogo com meu pai sobre essa encrenca toda. Eu já estava de castigo mesmo, não tinha como ficar pior. Não fazia o menor sentido concordar em fazer as sessões se Daniel não estivesse lá.

A dois metros da porta da sala de orientação, ouvi passos apressados pelo corredor vazio. Me virei para trás, sobressaltado. Era o Daniel, correndo em minha direção.

Os cabelos negros estavam uma bagunça, e, ainda assim, mais bonitos do que se estivessem arrumados. Eu me perguntava se ele sabia o quão bonito era. Provavelmente sim, já que era um metido.

— Luca — ele parou quando chegou a minha frente, estava ofegante.

Seu cheiro de noz-moscada aumentou a sensibilidade de todos os meus sentidos. Seu olhar estava diferente. Encarei de volta, tentando entender o motivo daquela afobação toda. Antes que eu pudesse perguntar qualquer coisa, senti seus braços me trazendo para perto.

Demorei um segundo ou dois para entender que Daniel estava me abraçando. Eu não entendi o porquê, mas logo percebi que aquele tipo de coisa não precisava ter um motivo para acontecer. Os melhores abraços eram ilógicos, repentinos. Eu só abracei de volta. Agarrei com os meus dedos necessitados a camisa do uniforme de Daniel, que sempre ficava tão bonita nele. Senti a textura dos botões contra minha bochecha, que estava prensada contra o peito dele. Era tão bom.

Aquele tipo de calor que vinha do corpo de Daniel me fazia ter a sensação de entrar em um esconderijo. Lá fora, poderia estar fazendo sol, frio ou chovendo. Se eu estivesse nos braços dele, eu tinha certeza, seu calor seria sempre bem-vindo. Eu estaria protegido de tudo o que era ruim. Poderiam me chamar de qualquer coisa. Pensar qualquer coisa de mim. Daniel estava ali e era tudo o que parecia fazer sentido.

Ficamos daquele jeito por algum tempo. Eu não saberia dizer quanto.

— Luca — Daniel me chamou mais uma vez, quebrando o silêncio. Sua voz saiu baixinha e bem mais calma do que antes.

— O quê? — apertei Daniel com mais força, com medo de que ele quisesse desfazer aquele abraço para falar o que quer que fosse. Ouvi ele soltando um risinho.

— Luca, estamos atrasados — ele disse calmamente, passando os dedos pelos meus cabelos; meu coração estava agitado como um barquinho pequeno no meio de uma tempestade.

— Não tem problema — me aninhei melhor contra Daniel, ouvindo ele rir outra vez.

— Isso saiu mesmo da boca do senhor certinho?

— Não sou o senhor certinho — resmunguei, manhoso.

Era impressionante como meu lado infantil gritava quando eu estava com Daniel. Era como se meu corpo necessitasse que Daniel visse em mim alguém que precisava ser mimado e protegido como um bebê. Eu não me orgulhava disso, mas não era como se eu fosse admitir uma coisa dessas em voz alta, então estava tudo bem.

— Luca, olha pra mim — Daniel segurou meu rosto com as duas mãos, me fazendo encará-lo.

Pisquei um bocado de vezes, tentando não me distrair absurdamente com seus olhos bonitos. As cores das pupilas brincavam de nuances entre o cinza e o azul, que se encontravam em nuvens que também pareciam ondas.

— Nós temos que contar tudo pra Wanda — ele disse, havia muita certeza em seu tom de voz.

Arregalei os olhos, me afastando de seu toque por instinto.

— Tudo... Tudo?

Daniel assentiu, sério.

— Você tem certeza, Daniel? — desviei meus olhos dos dele, imaginando para onde aquela história toda com aquela garota maluca iria nos levar. — E se a Cecília descobrir? E se ela te forçar a fazer alguma coisa?

— Luca, escuta bem — Daniel me interrompeu, alcançando minhas mãos, segurando ambas com firmeza. — A Wanda é inteligente. Ela já deve ter sacado sobre a gente. Ela pode nos ajudar a pensar sobre o que fazer, sei lá — Daniel suspirou, antes de continuar. — Qualquer coisa é melhor do que ficar do jeito que tá, Luca. Tente ver o meu lado também.

Sim, ele deveria estar dando tudo de si para aguentar a Cecília. Seria o mínimo fazer isso por nós dois, desabafar com alguém em quem podíamos confiar. Talvez fosse realmente nossa melhor (e única) alternativa.

Assenti várias de vezes, meio atordoado com a ideia de que em alguns minutos eu precisaria me abrir com alguém. Contar quem eu era de verdade. Olhei nossas mãos juntas. Eu tinha que crescer e começar a lutar por aquilo que eu acreditava, por quem eu era e por quem eu gostava.

— Eu só... nunca disse sobre mim pra ninguém — engoli em seco, encarando o vazio a minha frente. Com Vitor tinha sido diferente, ele apenas descobriu tudo sozinho e eu não precisei falar muita coisa.

— Não precisa ser difícil — Daniel sacudiu nossas mãos juntas, me fazendo volver os olhos para ele. — Nós vamos lá, juntos, conversar. Eu tô aqui com você, Luca. Você não tem que fazer nada sozinho.

Respirei fundo, soltando o ar pela boca. Assenti novamente, tirando minhas mãos das de Daniel. Ele me lançou um sorriso fofo de propósito, me fazendo sorrir.

— Vamos logo, então — pedi. — Já ficamos muito tempo aqui.

Daniel fez que sim com a cabeça e foi na minha frente, enfiando as mãos nos bolsos da calça do uniforme. Dava para ver que ele estava um pouco tenso também. Mas ele era legal o suficiente para querer parecer forte na minha frente. Isso já amansava meu coração, que parava de se apertar por medo e passava a se ocupar de sentimentos inundantes sobre o Daniel.

Ele deu duas batidinhas na porta e girou a maçaneta redonda. Avistei, por cima dos ombros de Daniel, as plantas de Wanda sob a luz da janela. Me permiti respirar fundo uma última vez antes de entrar.


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Notas finais do capítulo

Acho que a gente não pode chamar esse mistério de O MISTÉRIO, mas meu foco nunca foi ficar fazendo coisas difíceis de entender. É mais sobre como passar pelas coisas difíceis de viver. Nesse momento, vocês já devem saber o que a Cecília tá aprontando. De qualquer forma, isso vai ser explicitado no próximo capítulo. Aguardem!
Sobre esse capítulo: eu reescrevi e se tornou uma coisa totalmente diferente da primeira versão. Eu quis trazer mais do ambiente do Apus porque eu acho que tava faltando um pouco dessa sensação dos amigos-no-colégio. Espero que vocês tenham aproveitado.
Pra quem ainda não fez uma pergunta pro vídeo do Daniel (ou quer fazer mais), AINDA DÁ TEMPO. Eu AMEI demais as perguntinhas que vocês mandaram, sério. Vai ficar um vídeo muito divertido de escrever.
Gente, como usei todo meu tempo livre de cansaço e faculdade pra escrever, acabei não conseguindo responder todo mundo. Mas eu prometo que vou responder assim que der! Geralmente é mais fácil responder pelo celular, quando eu tô numa aula meio soninho, mas meu celular estragou e só vou conseguir outro mais pra frente :(
Até lá, vou me focar em escrever um próximo capítulo bem legal pra vocês!
Enquanto isso, me mandem memes sobre esse capítulo lá no tt: @wtfapus.
Até a próxima ♥



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